Maria Bethânia Viana Teles Veloso, Berré, Maricotinha... Abelha Rainha, Dona do dom, corda vocal insubmissa, menina dos olhos de Oyá... As imagens da menina de Santo Amaro e da rainha em cena nos palcos se misturam no imaginário de parcela massiva de brasileiros e brasileiras que admiram sua arte. São quase 79 anos de vida e 60 anos de uma carreira atravessada por imagens duais, por vezes míticas, construídas em torno de uma das maiores intérpretes da música popular.
Os superlativos são diversos, muito embora ela mesma seja reticente aos títulos, reconhecendo sua pequenez diante deste mundo-vasto-mundo, como ela mesma escreveu e recitou por ocasião dos seus 50 anos de carreira em 2015: "agradecer a cada folha, a toda raiz, as pedras majestosas e as pequeninas como eu, em Aruanda". Contudo, não é esta a tônica da mídia e da cultura de fãs que se desenvolveu nesses 60 anos de carreira. Ao contrário, não é exagero afirmar que há quem se comporte como um verdadeiro séquito da abelha rainha.
Essa cultura de fãs entre os fiéis apreciadores de Bethânia por vezes pode ser comparada ao fenômeno atual do tratamento dispensado às divas do pop. Fato incontestável é que na conjuntura atual, marcada pela efemeridade das curtidas e do "engajamento" nas redes sociais, toda uma geração acostuma-se com a equiparação dos números ao talento e à qualidade do trabalho de um artista. Nem sempre foi assim. Bethânia, por exemplo, gravou seu primeiro disco em 1965 e só recebeu o primeiro prêmio de "disco de ouro" pelas vendas anos depois, com o Pássaro Proibido, em 1976. Seu álbum de sucesso nacional, Álibi, vendeu um milhão de cópias e foi lançado em 1978, dezoito anos após o disco de estreia. A quadra histórica em que gravadoras apostavam e financiavam projetos/discos que não apresentavam lucro imediato cessou ainda nos anos 1970.
O tempo que projetou Bethânia já não existe mais. Na dinâmica da indústria cultural, tal como Chico Science denunciou com os versos de Fred 04, "computadores fazem arte, artistas fazem dinheiro", estimulando que músicos busquem "viralizar" com canções curtas, lançamentos de singles em detrimento dos álbuns, coreografias e refrãos para embalar as "tendências" reproduzidas nas mídias sociais e gerar engajamento. As gravadoras disputam com as plataformas que hospedam milhões de vídeos e músicas, sendo que a maior veiculação das canções no universo do streaming está vinculada ao alcance dos artistas nas mídias sociais. Diante deste quadro, artistas diversos da geração de Bethânia têm renovado seus públicos, fazem shows esgotados para grandes plateias, são regravados por jovens artistas, gravam parcerias e percorrem o Brasil em festivais de música. Nos últimos anos Bethânia foi homenageada no carnaval pela Mangueira, foi tema de vários documentários, gravou e apresentou programas de TV e podcast, sua arte inspira a formação de blocos de carnaval pelo país, está em turnê com o irmão Caetano Veloso fazendo uma série de shows em estádios em todas as regiões do país, com público estimado em mais de um milhão de pessoas (se considerarmos a apresentação na virada do ano em Copacabana)...
Diante dessas mudanças, o que torna a obra de Maria Bethânia perene ao tempo? Os superlativos construídos nos imaginário cultural brasileiro são suficientes para explicar tamanha longevidade?
Fiel a si própria, Bethânia construiu sua carreira marcada por elementos que a fazia pulsar de emoção ao escolher canções em que podia interpretar com vigor e verdade. Manteve-se com certa distância dos compromissos com determinados movimentos estéticos na música, seja com a vanguarda tropicalista ou com os acenos ao pop, tão comum entre os artistas da sua geração na década de 1980. A coerência, portanto, é um fator determinante para a longevidade de uma carreira. Mesmo na contra tendência do mercado (como ocorreu nos anos 1980), Bethânia se reposicionou e, incessantemente, gravou discos, lançou o próprio selo pela gravadora Biscoito Fino (ao se afastar das empresas multinacionais que operam na música) e seguiu percorrendo o Brasil fazendo shows, em geral, esgotados. Para se ter dimensão histórica, entre 1965 e 2021, Bethânia lançou 60 discos, sendo 22 registros de apresentações ao vivo e 38 em estúdio.
Somente a coerência ao seu intento de evidenciar verdade e emoção no seu trabalho não basta. Outra característica que faz de Bethânia uma artista de envergadura é a sua originalidade. Ao chegar no Rio, em 1965, se impressionaram com os contrastes em relação ao que era presumido às mulheres: seu timbre de voz contralto, sua aparência andrógina e sua postura violenta ao cantar Carcará. Mas, o que cravou originalidade em sua obra foi o cruzamento intertextual entre o cancioneiro popular brasileiro, a literatura (em especial a poesia) e os elementos teatrais. Esse verdadeiro continuum proporcionado pelo veio dramático, pelo encontro com grandes nomes da cena (da estirpe de Boal, Fauzi e Bibi) e pelo apreço à literatura fez da cantora uma intérprete sui generis, a atriz da canção e do "espetáculo de música teatralizado" (palavras do professor Renato Forin Jr.) tão bem consagrado em Rosa dos Ventos (1971) mas que já se desenhava em Comigo me desavim (1967).
Por fim, Bethânia consegue, nesses 60 anos dedicados à senhora música, trazer em seu canto a beleza e o espanto de ser inteiramente brasileira. Vinda de um terra banhada pela Baía de Todos os Santos, berço histórico do que chamamos de Brasil, Bethânia também se entranhou no Rio, outro polo cultural deste país tão dilacerado pela desigualdade, pelo racismo, pela violência e toda forma de iniquidade. Cantar o samba de roda do Recôncavo e o samba carioca, louvar os orixás e a devoção ao catolicismo popular, se embrenhar nos boleros, nas canções de amor tipicamente urbanas, ecoar as vozes do sertão, do que muitas vezes ouvimos como "Brasil profundo" que não é nada além do que o próprio Brasil que não está no eixo Rio/São Paulo, evocar os povos indígenas e os dilemas da nossa questão agrária e ambiental. E Bethânia buscou fazer isso de um modo nada panfletário ou protocolar. Sua intenção está na visibilidade que as coisas miúdas podem oferecer, ou seja, o valor da pedrinha miudinha que não está nos retratos da história oficial, aspecto que Luis Antônio Simas enfatizou em diálogo que tivemos sobre a obra do intérprete.
Chico César sintetizou em palavras, que aqui devemos tomar emprestadas, duas figuras de linguagem para se referir à Bethânia: "serafim de procissão do interior", em Dona do dom e "corda vocal insubmissa", em Arco da velha índia. A dualidade entre o serafim e a insubmissão muito nos interessa, expressa a complexidade e a peculiaridade da estética construída por Bethânia ao longo dos últimos 60 anos. Chico captou, para além dos superlativos da realeza, elementos centrais da obra de Bethânia: sua coerência, originalidade e seu enraizamento na cultura nacional. A intérprete que gravou Alteza (1981) e cantou “sou uma rainha que voluntariamente / abdiquei cetro e coroa”, certamente não se incomoda de ser a nossa abelha rainha, contudo, tem ciência de que as insígnias que acumulou só fazem algum sentido se lastreada na sua trajetória como mulher e trabalhadora, como ela própria enfatizou em seu discurso na Universidade Federal do Ceará na cerimônia que lhe concedeu o título de Doutora Honoris Causa.
Talvez tenha sido Ferreira Gullar uma das primeiras pessoas a entender a dimensão da contribuição de Bethânia para a música popular e para o Brasil. Para além de uma discussão ociosa sobre números, técnica vocal, performance e engajamento, me lembro aqui da observação do poeta maranhense: o que a torna uma grande cantora é a sua capacidade de construir interpretações definitivas, dentro de um momento histórico, das canções de um país. Bethânia, nas palavras de Gullar "é uma cantora nacional, deste país, enraizada nele". Nestes 60 anos, ao cantar o amor e as agruras deste país, Bethânia também canta um pouquinho sobre todos nós, aspecto que fez e faz dela, sem dúvidas, uma das grandes intérpretes do Brasil.
*Leonardo Nogueira é doutor em Serviço Social, professor do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Ouro Preto e coordenador do Trem da História: grupo de pesquisa e extensão.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.
Edição: Thalita Pires
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