Na última semana, foi retomado o julgamento do Agravo em Recurso Extraordinário (ARE) 969520 no Supremo Tribunal Federal (STF), que analisa se uma prova obtida por meio de revista intima ou vexatória é ilegal e, logo, inválida. A ação possui repercussão geral, portanto muito está em jogo. Até o momento, o placar computa 6 a 4 para determinar a prática enquanto ilegal. No entanto, um pedido de vista abriu um cenário preocupante: o julgamento passa a ocorrer em sessões presenciais, podendo continuar a qualquer tempo com a reversão dos votos já proferidos.
Durante a leitura do voto do ministro do STF Alexandre de Moraes na última quinta-feira (6), foi possível compreender a gravidade do que está em curso. Os argumentos foram aviltantes, com teor racista e misógino, além de fundamentados em (in)verdades e mitos, aos quais aqui pretendemos, ainda que de forma breve, esclarecer.
Primeiro, a visita não é um favor ou benefício, mas, sim, direito do preso e da família ao convívio, portanto não deve ser flexibilizada. Isso está previsto nas Regras de Mandela, nos Princípios e Boas Práticas para Proteção de Pessoas Privadas de Liberdade da Organização dos Estados Americanos (OEA), na Lei de Execuções Penais e no Estatuto da Criança e do Adolescente. Mas por que uma revista impediria a visita e o convívio familiar?
Diferente da revista pessoal, que ocorre, por exemplo, em estádios e aeroportos, a revista íntima ou vexatória começa com desnudamento forçado na frente de terceiros, o que por si só já é vedado. É ainda agravada pelo agachamento com exercícios de força no ventre, por vezes colocando espelho para ver o interior do corpo da pessoa que está sendo revistada, somados a pedidos para que ela abra seus órgãos genitais e anus e até mesmo toques por parte de agentes.
Não devemos normalizar que mães, avós, filhas, companheiras de diversas idades, e até mesmo crianças de colo possam ser submetidas sistematicamente a tal tipo de violação. Estas mulheres, em sua maioria negras, faveladas e/ou periféricas, estão sendo expostas a tal indignidade toda e cada vez que visitam um familiar ou amigo e não repudiar é sedimentar uma realidade do país que tolera tortura como procedimento padrão.
Inicialmente cabe mencionar que tortura, crime imprescritível, não pode ocorrer sob nenhuma hipótese. Nem em guerra ou estado de exceção. Ela é considerada, mundialmente, uma conduta tão grave que qualquer país pode julgar quem a cometa. Além da tortura, é condenável qualquer correlato tratamento cruel, desumano e degradante.
Conforme recentemente levantado pelo Grupo de Trabalho Mulheres e Meninas Privadas de Liberdade do Comitê Estadual para Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro, a revista vexatória, reiteradamente, já foi considerada como tratamento desumano, degradante e cruel, podendo cumular em tortura sexual por órgãos do Sistema Interamericano de Direitos Humanos e pela Organização das Nações Unidas (ONU). A ameaça de uma decisão contrária a essa determinação representa um grave risco de retrocesso na proteção dos direitos humanos no Brasil.
Mas quantas pessoas serão impactadas por essa decisão? Segundo dados da Secretaria Nacional de Política Penal do Ministério da Justiça, há 888.272 pessoas em comprimento de pena no país, das quais 668.051 estão em celas físicas, 663.367 em presídios e 4.664 em outras carceragens. Desses e dessas 424.315 são negros (63,5%). No entanto, isso é somente uma foto de um momento do sistema. Só no primeiro semestre do ano passado, 2024, foram 1.206.866 entradas e saídas do sistema prisional. Esses presos estão submetidos a ficarem nus forçadamente, pelo menos duas vezes por dia, uns na frente dos outros, passando por revista coletiva vexatória que ocorre cada vez que se entra e se sai da cela, seja para banho de sol ou visita.
O ministério também indicou que, no primeiro semestre de 2024, foram registradas 3.849.846 visitas, sendo 797.935 pessoas visitadas. Não existem dados precisos de quantos visitam, podendo essas visitas terem ocorrido várias vezes pelas mesmas pessoas ou cada visita ser feita por alguém diferente. Essa grande quantidade de familiares está sob o risco de passar pela mesma violência.
Cabe explicar que toda unidade tem como regra uma lista de itens que podem ou não entrar na visita, e tudo que não pode é apreendido e (supostamente) descartado. Entre o que é proibido, por exemplo, pode ser a cor da escova de dente, a forma como foi embalado o sabão em pó, a cor do chinelo ou camiseta, o biscoito ser recheado, assim como drogas e celulares.
Quando o ministro Alexandre de Moraes cita um número de 650 mil itens apreendidos, é preciso lembrar que os itens irregulares não são necessariamente ilegais. Não precisa tratar-se de armas, drogas ou sequer celulares, mas qualquer item fora de um sistema de regras para lá de arbitrário. Assim, o número citado, sem nenhum contexto, pode induzir ao erro, fazendo crer que há um gargalo maior do que realmente existe nas visitas.
A Rede de Justiça Criminal em 2015, quando do Boletim Especial da Campanha Pelo Fim da Revista Vexatória, apresentou um levantamento feito pela própria Secretária de Administração Penitenciária de São Paulo entregue à Defensoria Pública em 2012 – ano em que a revista vexatória era generalizada – que indicou a realização de aproximadamente 3,5 milhões de revistas vexatórias no Estado, das quais somente em 0,02% dos casos referem-se a drogas ou celulares achados.
Tampouco há quaisquer correlações entre a prática e rebeliões. No Rio de Janeiro, por exemplo, que é o local em que foi dada estrutura para efetiva interrupção da prática com compra de scanners, houve uma única rebelião em 20 anos sem nenhum ferido. A interrupção da prática há 10 anos não afetou a segurança de nenhuma unidade, e muito menos exigiu a flexibilização das visitas, já que existe raquetes de detector de metal, banquinhos e tantas outras formas de realizar a revista que não seja a tortura sexual.
Sendo assim, não há dados factuais que justifiquem adotar qualquer medida mais severa em relação às visitas, muito menos para instituir práticas que violam os direitos humanos das populações mais vulnerabilizadas.
O que percebemos pela movimentação no STF é que há uma tentativa de emplacar uma proposta consensual entre os ministros, um acordo para autorizar exceções, mesmo já havendo formado (a princípio) a maioria para a prática ser considerada ilegal. Nesse cenário, parte da atual conformação da Corte, majoritariamente masculina e completamente branca, parece achar possível a aplicação da revista vexatória em mulheres, que em sua maioria são negras, como pesquisa publicada pelas organizações Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), Agenda Nacional pelo Desencarceramento e outras.
Nesse sentido, a Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares vem afirmar o papel constitucional na proteção de direitos e garantias fundamentais, especialmente diante de violações de lesa humanidade, não sendo possível, repisa-se, negociar ou criar exceção. Em um país que possui uma trajetória de tortura como o nosso e uma desigualdade abissal em relação à classe, raça e gênero esse é um debate urgente. Valorização da dignidade da pessoa humana, vedação à tortura, individualização da pena, vedação do retrocesso em direitos humanos não são meros desejos, são mínimos existenciais para um Estado Democrático e de Direito.
*Natália Damazio é doutora em teoria de Estado e direito constitucional pela PUC-Rio, professora substituta do NEPP-DH UFRJ, integrante da RENAP-Rio, do Coletivo Coletes Rosa e do GT Mulher e Meninas Privadas de Liberdade do CEPCT/RJ
**Fernanda Maria Vieira, doutora pelo CPDA/UFRRJ, professora do PPDH e NEPP-DH/UFRJ, Co-coordenadora do Najup Luiza Mahin-UFRJ
***Anna Cecília Faro Bonan, doutora pelo PPGD/PUC-Rio, professora da Pós-graduação em Advocacia Criminal da UERJ, Advogada Popular do Movimento Unido dos Camelôs, integrante da RENAP-Rio e do Coletivo Coletes Rosas.
****Thamires Azeredo Chaves, é bacharel em ciências sociais pela UFF, bacharelanda em direito pela UFRJ, pesquisadora e extensionista do NAJUP Luiza Mahin/UFRJ, integrante da RENAP-Rio, do Coletivo Coletes Rosas e do GT Mulher e Meninas Privadas de Liberdade do CEPCT/RJ
*****Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.