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Revogação da lei 10.820/24 no Pará mostra força do movimento indígena e da educação no campo contra desinformação e silêncio midiático

Cobertura tendenciosa da imprensa local não conseguiu diminuir pressão que levou à revogação legislação antieducação

Brasil de Fato | Belém (PA) |
Indígenas de diversas regiões do Pará ocupam desde o dia 14 de janeiro a sede da Secretaria Estadual de Educação, em Belém - Jander Arapium/Cita

Após 30 dias de ocupação da Secretaria de Estado de Educação do Pará (Seduc), indígenas, quilombolas, ribeirinhos e trabalhadores da educação conseguiram revogar a lei estadual 10.820/2024 após firmar um acordo com o governador do estado, Helder Barbalho (MDB). O acordo, além da derrubada da lei na Assembleia Legislativa do Pará (Alepa), incluiu a não punição dos trabalhadores em greve e a criação de um Grupo de Trabalho para redação da nova lei para o magistério estadual.

Para quem acompanha as notícias por meios hegemônicos de comunicação, o movimento de indígenas e trabalhadores da educação que ocupam a sede da Seduc, em Belém, e a rodovia BR-163, em Santarém, pareceu menor do que ele de fato é. Isso porque, além do governo do Pará financiar emissoras de rádio e TV, revistas, jornais e sites em todo o estado, a família Barbalho é proprietária de alguns deles. É o caso do grupo RBA, composto pelo site DOL, pela RBA TV (afiliada da TV Bandeirantes no Pará), jornal Diário do Pará e rádios Clube, Diário e 99 FM.

A deputada federal Elcione Barbalho (MDB) é acionista da RBA, ao lado de seu ex-marido, o senador Jader Barbalho, e seus dois filhos, Helder Barbalho (MDB), o governador, e Jader Filho (MDB), ministro das Cidades. O controle midiático da família Barbalho foi citado na pesquisa Eleições 2024: mídia e violência nas eleições municipais, realizada pelo Intervozes e que identificou 46 candidaturas ligadas a donos de rádio e TV no país, a exemplo de Igor Normando (MDB), primo do governador e que se elegeu prefeito.

Além disso, Elcione Barbalho é uma das citadas na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 379, que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) e questiona a violação do artigo 54 da Constituição por políticos donos de mídia. O processo se baseia no entendimento de diversas organizações da sociedade civil, dentre as quais o Intervozes, de que, sendo as emissoras de rádio e TV um sistema de concessão pública, a existência de políticos donos de mídia ocupando qualquer cargo político gera um conflito de interesses.

Prova disso é a cobertura feita pelos veículos do grupo RBA sobre o movimento pela revogação da lei 10.820/2024. O Diário do Pará, por exemplo, estampou na capa do jornal uma matéria, no dia 15 de janeiro, sobre o resultado positivo de estudantes da rede pública na redação do Exame Nacional do Ensino Média (Enem). Ao mesmo tempo, o periódico não trouxe nenhuma informação sobre a ocupação na sede da Seduc, que se iniciou no dia anterior.


Jader Barbalho, Jader Filho, Elcione Barbalho e Helder Barbalho, sócios do grupo RBA / Reprodução/Redes Sociais

Em 27 de janeiro, após o governador se reunir com lideranças do movimento, o jornal publicou que Barbalho garantiu a criação de uma lei para a educação indígena. O encontro, no entanto, terminou sem um acordo, uma vez que o movimento indígena leva em consideração os impactos da lei sobre outras populações, como quilombolas e ribeirinhos. 

"Nossa proposta segue a mesma, que era a saída do secretário Rossieli Soares. Ele não quis aceitar a proposta. A revogação da lei ele também não quis. Ele ficou se esquivando, não quis dialogar com nós para tratar a pauta. Então resolvemos sair sem acordo", disse o cacique Dadá Borari, em vídeo divulgado ao fim da reunião.

Enquanto a imprensa da família Barbalho ignora as pautas de quem luta pela educação do campo, é na mídia popular que as lideranças do movimento conseguem reverberar seus posicionamentos. Veículos como Amazônia Real, Tapajós de Fato, Amazônia Latitude e Carta Amazônia têm acompanhado de perto o dia a dia das ocupações e reportado o que a mídia hegemônica faz questão de esconder.

Essa discrepância entre o noticiário dos grandes veículos e a cobertura popular não é por acaso. A ideia é criar uma zona cinzenta entre o que é informação e o que é desinformação, levando intencionalmente a opinião pública à confusão sobre o movimento, suas reivindicações e as negociações envolvidas.

Na última semana, a Defensoria Pública da União (DPU) e o Ministério Público Federal (MPF) denunciaram a propagação de desinformação por Helder Barbalho a respeito da mobilização. O governador afirmou falsamente, dentre outras coisas, que jamais teria havido a possibilidade de ensino virtual indígena; que teria atendido 100% das demandas das comunidades indígenas; que os manifestantes representam apenas uma etnorregião do Pará; que o movimento de ocupação causou danos ao prédio da Seduc; e que os funcionários da Seduc estão impedidos de trabalhar por causa da ocupação.


Capa do jornal Diário do Pará em 4 de fevereiro de 2025 / Reprodução/Diário do Pará

Para a DPU, as falas do chefe do Executivo, repercutidas pelo grupo RBA, contradizem documentos oficiais e representam um ataque à mobilização indígena, podendo incentivar discriminação e xenofobia contra essas comunidades. "O estado do Pará claramente tenta criar uma narrativa para colocar a opinião pública contra o pleito das comunidades indígenas, o que é atentatório à dignidade desses povos", pontua a ação.

A pesquisa Amazônia Livre de Fake, do Intervozes, também revelou a falta de transparência em relação aos gastos com mídia do governo do Pará. Após solicitação via Lei de Acesso à Informação (LAI), as respostas recebidas foram classificadas como genéricas e insatisfatórias. 

O uso privado da mídia como forma de apoio ao desmonte da educação pública é apenas mais um lembrete da urgência do debate por uma nova regulação midiática que tenha como base fundamental a ideia da comunicação como um direito humano. Enquanto, nas mãos da família Barbalho, o governo do Pará reproduz caminhos de concentração midiática, desinformação e falta de transparência, o corajoso exemplo da comunicação popular amazônica na cobertura da ocupação na Seduc e na BR-163 aponta o caminho.

A história que não coube na mídia hegemônica

Além de todas essas desinformações, identificamos na narrativa do grupo RBA – e demais mídias hegemônicas do país –, um grande silêncio sobre o teor da lei 10.820/2024. Em linhas gerais, a legislação proposta possibilitaria que comunidades distantes das cidades e de difícil acesso contassem com o Ensino Médio na modalidade Educação à Distância (EaD). A lei revogada, um evidente ataque ao direito à educação contextualizada, se insere em um cenário nacional de fechamento de escolas do campo e desfinanciamento dessa modalidade de ensino. 

A pedido do MPF, o Ministério da Educação (MEC) emitiu uma nota técnica sobre a lei 10.820 em que afirma a impossibilidade de oferta de educação básica na modalidade EaD para populações tradicionais e comunidades do campo em geral. "Em atenção aos fundamentos constitucionais e legais da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), a oferta da Educação a Distância e seus derivados, como 'modelo de aulas telepresenciais' ou sistemas interativos de oferta educacional, especificamente para comunidades rurais em sua diversidade, não encontram sustentação nos marcos legais da educação", diz a nota.

Em reunião com o governador e o secretário de Educação, o MPF destacou que a legislação estadual põe em risco a educação no campo e ressaltou a necessidade de consulta prévia a indígenas e povos tradicionais para a aprovação de leis que digam respeito a seus direitos.

Educação no/do Campo

Embora pareça um problema muito localizado, é preciso entender que esse ataque à educação do campo paraense se insere em um contexto maior. E para entendê-lo, é preciso entender o que é e o que deveria ser a educação do campo no Brasil. O conceito nasceu da luta e da prática dos movimentos sociais e organizações populares que lutam pelos direitos dos povos do campo, das águas e das florestas. E diz respeito ao direito dessas populações serem educadas em seus territórios (educação NO campo) e que essa seja uma educação pensada desde o território, vinculado à cultura local (educação DO campo).

Ao substituir as professoras e professores em sala de aula por televisões com aulas gravadas ou computadores que transmitem aulas on-line, o governo do Pará desconsidera a construção social de anos de luta desses povos. Não é só a substituição de pessoas por máquinas que mediam as relações – o que por si só já é problemático –, mas é também substituir uma educação com os pés fincados no território, que leva em consideração desde a diversidade de línguas indígenas até a diversidade alimentar, passando por todos os sentidos culturais que isso engloba, por uma educação homogeneizante, desde cima.

Um levantamento feito pelo Fórum Nacional de Educação do Campo (Fonec) mostra que, entre 2002 e 2022, foram fechadas 106.410 escolas do campo, mais do que o dobro da quantidade de escolas urbanas fechadas no mesmo período. A criação de uma lei como esta no Pará se inscreve, portanto, em um contexto mais amplo de ataque aos direitos de povos do campo e comunidades tradicionais. Coisas que, por motivos óbvios, não foram contadas nas matérias da mídia hegemônica.

"A educação não se resolve por si mesma e nem apenas no âmbito local: não é por acaso que são os mesmos trabalhadores que estão lutando por terra, trabalho e território os que organizam esta luta por educação", é o que afirma  Roseli Caldart, no verbete Educação do Campo, do Dicionário da Educação do Campo.

Em sua prática, a educação contextualizada no/do campo tem servido ao fortalecimento dos laços comunitários, de culturas e línguas de povos tradicionais, dos laços dessas populações com a terra, as águas e as florestas, sendo, portanto, contra o agronegócio e os grandes empreendimentos que impactam esses territórios. Por isso, concordamos com Roseli Caldart, que “o Estado deve ser pressionado para formular políticas que garantam [a educação] massivamente, levando à universalização real e não apenas princípio abstrato”. E, talvez seja preciso ainda dizer que o uso de TVs e computadores em lugar de professoras e professores não significa, em absoluto, universalizar a educação para os povos tradicionais. 

Olhando para tudo isso, entende-se o sentido do recorte escolhido pela mídia hegemônica para construir essa narrativa. E também faz sentido o esforço das mídias populares e independentes em disputar essa narrativa, contando outras histórias.

*Alfredo Portugal é jornalista, educador e comunicador popular, mestre em Educação do Campo (UFRB), doutorando em Educação (UFBA), integrante do conselho diretor do Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação Social

**Gabriel Veras é jornalista, pesquisador, educador popular, cofundador da Abaré Escola de Jornalismo (AM) e associado ao Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação Social.

***Gabriela Amorim é jornalista, agricultora, mestre em Literatura (UFS), doutoranda em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo (UFBA).

****Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

Edição: Thalita Pires