O processo de reconstrução do Brasil após o desmonte ocorrido entre 2016 e 2022 encontra obstáculos que já eram previstos, mas as dificuldades parecem ser maiores para alguns setores da máquina pública. Nessa lista, os museus nacionais são um exemplo de como a combinação de orçamentos limitados, contingenciamentos e falta de mão de obra pode piorar o cenário e atrasar ainda mais o processo.
Das quase trinta instituições que hoje estão sob responsabilidade do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), nove estão fechadas ou operando parcialmente. Na lista, estão espaços importantes para a história do país e para a manutenção da memória nacional. Alguns estão em obras e têm prazo para reabrir, outros não têm data definida e há situações em que as portas estão fechadas por simples falta do básico.
É o caso do Museu Regional de São João Del Rei, que fica na cidade mineira e existe desde a década de 1960. Em novembro passado ele fechou as portas para visitação por questões administrativas, como o encerramento de contratos de limpeza, recepção e apoio administrativo. Há previsão de normalização das atividades ainda este mês, mas até agora sem data específica.
A situação do espaço causa ainda mais consternação frente a história de luta para que o casarão, construído em 1859, se tornasse uma instituição artística. Nos anos 1930, ele foi tombado junto com todo o conjunto arquitetônico da cidade. No entanto, uma campanha que envolveu políticos, uma empresa privada, famílias ricas e a imprensa local tentou reverter o processo e demolir o prédio histórico para construção de um hotel e de um terminal rodoviário.
Somente em 1947, o governo federal determinou a desapropriação do local. As palavras do jurista Afonso Arinos, que analisou o caso na época para embasar a decisão, dão o tom das dificuldades para garantia do espaço público.
“O prefeito municipal, por uma compreensão talvez sincera, mas tacanha, primária e provinciana do que ele considera ser progresso de sua cidade, não duvidou em dar a mão a capitalistas mais ciosos dos seus lucros do que respeito às leis. Juntos empreenderam uma campanha de imprensa não longe de terrorista”.
De volta aos dias atuais, não é só o histórico museu da pequena cidade mineira que passa por problemas. Outros espaços igualmente importantes para a história brasileira vivem situações semelhantes. No Rio Grande do Sul, o museu das Missões vive um ciclo de abandono. Em 2016, um tornado destruiu parte de sua estrutura, levando a um fechamento de três anos. Reabriu brevemente em 2019, mas foi fechado novamente por causa da pandemia. O local tem apenas dois servidores e não possui nenhum contrato de limpeza e segurança.
Ele é o único museu brasileiro que guarda a memória das missões jesuítas e dos modos de vida dos povos originários da região. Está localizado dentro do Sítio Histórico São Miguel Arcanjo, território simbólico para o povo Guarani-Mbyá, pois abriga a alma da ancestralidade nas crenças dessa população.
Além de ter o maior acervo de esculturas missioneiras em madeira policromada do Mercosul, o que restou das edificações das missões do período colonial é considerado Patrimônio Cultural da Humanidade. As peças têm origem nos séculos 17 e 18 e estão abrigadas em um complexo projetado pelo arquiteto e urbanista Lúcio Costa, um dos responsáveis pela construção da Brasília.
No Rio de Janeiro, o Museu da República também está com as portas fechadas ao público. Ele fica no Palácio do Catete, que foi residência dos presidentes republicanos até 1960. Foi lá que o Brasil declarou participação nas duas guerras mundiais, em 1917 e 1942, e que Getúlio Vargas cometeu suicídio, em 1954. O local, que tem infiltrações e muros e gradis deteriorados, está fora de funcionamento para obras de reestruturação. A reabertura está prevista para maio.
Há quase um ano, a cidade também perdeu o acesso ao Museu Villa-Lobos. Em fevereiro de 2024, parte da estrutura externa superior de uma das janelas do segundo andar desabou. O incidente ocorreu fora do horário de funcionamento e nenhuma pessoa ficou ferida, mas o espaço segue fechado sem previsão de reabertura.
Ainda na capital Fluminense, outra importante instituição está em condições precárias. O Museu Histórico Nacional está inoperante desde o fim do ano passado. Na mesma época, o telhado da chamada Casa do Trem, que fica na instituição, desabou. O fechamento, que já estava previsto para obras estruturais, teve que ser adiantado.
Para os servidores e servidoras do Ibram, o desabamento tem ainda um peso simbólico. O espaço abrigava também o escritório que era responsável por administrar financeiramente os museus nacionais que ficam no estado do Rio de Janeiro. Computadores e mobiliário do cotidiano de trabalho foram perdidos. O incidente aconteceu na mesma semana em que o governo federal publicou a portaria de reestruturação do Instituto, que acabou com as administrações por região e centralizou o trabalho em Brasília.
Já na cidade serrana de Petrópolis (RJ), o Museu Imperial vive anos de problemas por causa de infiltrações. A estrutura do século 19 e o aumento das chuvas na região impulsionam o estado crítico. No final de janeiro, um vídeo circulou nas redes sociais mostrando uma infiltração, que se transformou em um vazamento de água incessante em uma das salas da instituição. A visitação ao Palácio, que foi construído a mando de Dom Pedro II, teve que ser suspensa por causa da mini cachoeira. A questão pontual foi resolvida e o espaço voltou a funcionar na semana seguinte, mas os gargalos estruturais permanecem.
Paradoxalmente, ele é o museu que mais gera receita ao Ibram – R$ 1,5 milhão em 2024 – mas os recursos retornam como parte do orçamento total do instituto, sem direcionamento integral para sua própria manutenção.
Em outros locais do país, museus nacionais vivem a repetição da falta de estrutura, equipes e conservação. O Museu do Diamante, que fica em Diamantina (MG), reduziu o horário de visitação no fim do ano passado e não abre mais aos fins de semana. O motivo oficial é administrativo, mas informações de fontes do Ibram apontam o detalhamento: cortes nos contratos de vigilância.
A cerca de 400 quilômetros dali, o Museu da Inconfidência, em Ouro Preto (MG), está fechado temporariamente para obras no sistema elétrico. A previsão é de reabertura até o fim deste mês. Em Sabará (MG), o Museu do Ouro/Casa de Borba Gato parou as atividades em janeiro de 2024, após laudo técnico da defesa civil da cidade apontar risco de desabamento.
Os números que explicam o colapso
Parte da explicação para esse cenário parece estar no orçamento do Ibram. Em 2024, 4% dos cerca de R$ 180 milhões empenhados foram para investimentos em obras, instalações, equipamentos e material permanente, segundo dados do Tesouro Gerencial, coletados pelo Brasil de Fato. A maior fatia (R$ 104 milhões) foi consumida por despesas correntes, como material de consumo, serviços de tecnologia e terceirizados. O contingenciamento cortou 25% dos recursos previstos no Projeto de Lei Orçamentária (PLOA).
Em resposta a um pedido de informações enviado por e-mail pelo BdF à Coordenação de Comunicação do Ibram, o órgão afirmou que as atividades finalísticas receberam 23% do “orçamento primário discricionário”, no ano passado. A reportagem repassou novo questionamento ao órgão com objetivo de entender os detalhes que compõem o cálculo, mas não obteve resposta. Ainda de acordo com o Instituto, o contingenciamento no ano foi de 4%, embora as informações obtidas pelo Brasil de Fato mostrem um índice superior.
Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, a integrante do Departamento de Educação e Cultura da Confederação dos Trabalhadores no Serviço Público Federal (Condsef), Ruth Vaz Costa, afirma que a questão orçamentária é crítica. Ela ressalta que em 2023 o orçamento melhorou muito, mas parte disso foi perdida por falta de pessoal para execução dos trabalhos.
“Temos que lembrar que nos primeiros governos Lula, o ex-ministro da Cultura, Gilberto Gil já falava sobre haver uma disponibilidade orçamentária fixa para a cultura proporcional ao Produto Interno Bruto (PIB). Estamos falando que custamos muito pouco e produzimos muito para o Brasil. O orçamento para a cultura é ínfimo em relação a uma demanda que garanta a qualidade da prestação desse serviço para a população brasileira. Cultura é direito constituinte. Queremos garantir que isso aconteça para a população brasileira, mas para isso acontecer tem que haver investimentos”.
A dependência de receita própria agrava o cenário. O Museu Imperial, por exemplo, gerou R$ 1,5 milhão em 2024 com ingressos, mas o dinheiro vai para o caixa único do governo. De maneira simplificada, é como se a instituição pagasse para existir, mas não recebesse nada de volta. Somente esse espaço tem custo anual de cerca de R$ 13 milhões, dinheiro que cobre apenas os contratos ativos.
“Eu entrei no Ibram em 2014 e, desde então, não houve um ano em que estivemos tranquilos de orçamento. Tivemos um ano bombástico, que foi 2023 e que veio com um orçamento tão grande que não tivemos gente para cumprir. Devolvemos muito dinheiro, o que foi uma tristeza para nós, porque sabíamos que havia falta de pessoas para organizar os gastos”, aponta Ruth Vaz Costa
Em 2025, a situação pode piorar. Dos R$ 180 milhões previstos no orçamento, só R$ 5,2 milhões são para investimentos, menos de 3%. Para este ano, o IBRAM solicitou mais de R$ 90 milhões, destinados exclusivamente à área meio, que engloba a manutenção de contratos de limpeza e segurança. No entanto, mesmo esses contratos são considerados subfinanciados em relação às reais necessidades dos museus.
Falta gente para trabalhar
A reestruturação do Ibram, iniciada em 2023, aprofundou o problema. Cargos essenciais de direção e conservação não podem ser preenchidos por falta de concursados e concursadas, enquanto funções administrativas foram centralizadas na sede do Instituto em Brasília. Embora tenha equalizado cargos e responsabilidades, a reforma inviabilizou a gestão de alguns museus, especialmente no interior, devido à falta de servidores e servidoras para ocupar cargos específicos.
Ruth Vaz Costa ressalta que o cenário também causa uma sobrecarga de trabalho a quem está na ativa. “Existem demandas que são mais emergenciais do cotidiano. Dividimos o trabalho em área meio e área fim. Para manter o museu aberto, o mínimo que precisamos é equipe. Temos que ter uma constância na prestação de serviços de limpeza, de serviço de monitoria das exposições, da segurança. Essas contratações são terceirizadas, elas são a parte meio, mas que acaba tomando muito mais do nosso tempo”.
Na conversa com o BdF a servidora traz dados alarmantes sobre a falta de servidores e servidoras. “O Ibram tinha uma previsão de cerca de 759 na sua composição. Nós devemos estar agora com menos de 350. Estamos trabalhando com menos de 50% da força de trabalho prevista para o órgão”.
Segundo ela, uma parte do funcionalismo previsto para o órgão vinha do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e estava na ativa desde a promulgação da Constituição. São pessoas que já se aposentaram ou estão em processo de aposentadoria. Ainda assim, não há previsão de remanejamento de pessoal.
Na resposta ao pedido de informações enviado pela reportagem, o Instituto afirmou que “hoje, há no quadro de pessoal do Ibram 321 servidores efetivos e 64 servidores em abono de permanência. Inicialmente, foram solicitadas um total de 376 vagas no Concurso Nacional Unificado, mas foram autorizadas 28 vagas para o corrente ano”.
Além disso, o BdF questionou o órgão sobre quantos museus nacionais estão de portas fechadas no momento. A reposta citou apenas o Museu Histórico Nacional, o Museu Nacional de Belas Artes, o Museu da Inconfidência e o Museu da República, que passam por obras de recuperação. Não foram repassadas informações sobre as outras instituições mencionadas nesta reportagem e nem sobre o prazo para reabertura dos espaços.