“Figuras como Musk e Zuckerberg deixaram muito evidente que vão utilizar todos os recursos tecnológicos disponíveis para influenciar a política de outras nações”, afirma Zhuang Fei, diretor de conteúdos da empresa chinesa de mídia Wave Media. Para ele, a China e mais países devem acelerar as pesquisas e iniciativas em matéria de soberania digital e colaborar entre si.
A China pode aproveitar os seus pontos fortes para se envolver numa cooperação mais profunda em nível mundial, compartilhar experiências e ajudar outros países a resistir e a combater a hegemonia tecnológica e digital dos EUA, afirma o especialista em tecnologia e internet na China.
Em entrevista exclusiva com Brasil de Fato/TVT, Zhuang explica que à diferença dos EUA, o desenvolvimento da IA na China está focado em aplicações práticas para vida e a produção industrial.
“Ao contrário do que muitas pessoas podem supor, a gestão da opinião pública nas redes sociais pelo governo chinês é mais transparente e sistemática em comparação com a abordagem adotada nos Estados Unidos”, diz Zhuang Fei.
Ele considera que há uma ideia de defesa total da liberdade de expressão em relação aos EUA, que não condiz com as revelações do apoio do Google para Israel e as diversas denúncias de censura do Meta – como do The Intercept e do Centro Árabe para o Avanço das Mídias Sociais – de posicionamentos em defesa da Palestina.
Diferente do que disse o diretor da Meta, Mark Zuckerberg, no começo de fevereiro – quando anunciou mudanças nas políticas de verificação de informações –, suas plataformas não foram censuradas na China.
Antes de virar notícia com seus pares magnatas das Big Techs na posse presidencial de Donald Trump, Zuckerberg anunciou mudanças nas políticas da plataforma. Ele disse que está desmantelando o programa de verificação de fatos e que as plataformas agora contarão com um sistema de notas baseadas na comunidade, semelhante ao implementado no X (Twitter). Em seu anúncio, Zuckerberg disse que a mudança será implementada para “restaurar a liberdade de expressão em nossas plataformas”.
Ele argumentou que os “EUA têm as proteções constitucionais mais fortes para a liberdade de expressão no mundo”. Depois de dizer isso, o CEO disse que “a China censurou nossos aplicativos de até mesmo funcionarem no país”.
Zhuang Fei afirma que os requisitos que o governo chinês colocou para empresas como as de Zuckerberg, são básicos, como proteção de dados pessoais e supervisão do processo de instalação da empresa.
Em 2018, um ex trabalhador da Cambridge Analytica denunciou o uso ilegal, por parte dessa empresa, de informações de 50 milhões de perfis do Facebook para influenciar eleitores nos Estados Unidos e Reino Unido, de certa forma, confirmando a necessidade de cautela do lado chinês, como afirma Zhuang Fei. Leia abaixo a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato/TVT: O que você achou do que o Zuckerberg falou sobre o seu país?
Zhuang Fei: As declarações que Zuckerberg fez são, de fato, previsíveis do ponto de vista das autoridades chinesas. Embora o Facebook nunca tenha entrado oficialmente no mercado chinês, o Zuckerberg é bastante conhecido do público e das autoridades chinesas.
A partir de 2012, Zuckerberg fez vários esforços de lobby junto ao governo chinês por meio de diversas atividades na China. O objetivo dele era introduzir o Facebook e outros empreendimentos comerciais de sua empresa aqui. Entre 2012 e 2016, Zuckerberg apareceu frequentemente na mídia chinesa. Ele visitou a China várias vezes e, em 2016, até fez uma corrida por Pequim para mostrar boa vontade. Uma vez, ele chegou a dizer em uma entrevista: “Eu amo a China”, como parte de seus esforços de relações públicas.
Naquela altura, muitos meios de comunicação, acadêmicos e funcionários chineses reconheceram as ações de Zuckerberg como estratégicas, destinadas a facilitar a entrada do Facebook na China. No entanto, durante as negociações, ele se recusou consistentemente a cumprir os requisitos básicos da China para as plataformas de redes sociais, o que acabou sem nenhum progresso substancial, apesar dos seus gestos públicos.
No final das contas, o Facebook não conseguiu entrar no mercado chinês. Depois de 2016, Zuckerberg abandonou os esforços de lobby. E a partir daí ele mudou de posição, se tornando abertamente crítico da China. As declarações sobre a suposta falta de liberdade de expressão na China, entre outras, foram um afastamento significativo do seu tom anterior.
“É ótimo estar de volta a Pequim! Comecei minha visita com uma corrida pela Praça Tiananmen, passando pela Cidade Proibida e indo até o Templo do Céu”, postou o CEO da Meta em 2016.
As declarações de Zuckerberg agora se alinham com a avaliação original que as autoridades chinesas tinham feito. A China está aberta à colaboração com empresas estadunidenses, incluindo gigantes da tecnologia como a Apple e a Tesla, lideradas por CEOs como Tim Cook e Elon Musk, desde que operem com base na Justiça e no cumprimento das regulamentações chinesas.
Estas colaborações alavancam os pontos fortes dessas empresas, ao mesmo tempo que promovem o desenvolvimento dos setores mais fracos na China. Mas em comparação com Cook e Musk, Zuckerberg é visto como menos pragmático e mais focado na autopromoção retórica. Isso acabou dificultando negociações substantivas. O que Zuckerberg declara agora é percebido como motivado politicamente, com o objetivo de se alinhar com as políticas da era Trump para obter favores. Ao mencionar a China na sua retórica, Zuckerberg é visto como alguém que a utiliza como uma ferramenta política para a sua própria agenda.
Ao observar a sua mudança de tom – de oposição a Trump para apoio –, as autoridades chinesas e o público veem agora o não envolvimento com a empresa de Zuckerberg como uma decisão prudente, que evitou uma cooperação com um CEO considerado insincero e egoísta.
Você pode detalhar por que os aplicativos como Instagram e Facebook não funcionam aqui na China?
O governo chinês tem há muito tempo algumas ideias sobre o conceito de soberania digital. Embora muitos países, incluindo países europeus e o Brasil, estejam discutindo agora a soberania digital, este conceito não era bem compreendido quando a Internet estava apenas começando a se desenvolver no início do século 21. Naquela altura, alguns especialistas em informação do governo chinês reconheceram que as plataformas de redes sociais estavam intimamente ligadas a esta ideia crucial de soberania digital.
Eles perceberam que permitir que uma plataforma de redes sociais estrangeira, especialmente uma de um país que possa ver a China como um potencial concorrente, opere livremente dentro das fronteiras da China poderia levar a ações prejudiciais aos interesses nacionais. Embora os mecanismos reguladores da soberania digital da China ainda não estivessem totalmente desenvolvidos naquele momento, foi estabelecido um objetivo claro: qualquer plataforma estrangeira que desejasse alojar servidores e operar serviços de redes sociais na China teria que fazer isso sob a supervisão e orientação do governo chinês. Isso se tornou um requisito mínimo.
Durante as negociações com a China, o Facebook e o Google afirmaram ser totalmente neutros e justos. No entanto, os conflitos internos entre Trump e o Partido Democrata em 2020 expuseram muitas questões de bastidores, como a profunda cooperação do Google com o FBI e o governo dos EUA.
Olhando em retrospectiva, a cautela do governo chinês foi completamente justificada. Como mencionei anteriormente, se uma empresa concordar com alguns requisitos básicos estabelecidos pelo governo chinês, a cooperação será bem-vinda. Por exemplo, a Apple aceitou essas condições ao concordar em armazenar dados de usuários chineses na China por meio do projeto iCloud Guizhou. A Apple localizou seus servidores em Guizhou para armazenar dados de usuários chineses, o que foi considerado pela empresa como um pedido razoável. Da mesma forma, o TikTok nos Estados Unidos concordou em armazenar dados de usuários estadunidenses no Texas.
Em contraste, a atitude dos EUA em relação às operações do Facebook e do Google na China têm sido inconsistente. Quando estas empresas dominavam completamente, os EUA enfatizaram que as suas plataformas deveriam ser irrestritas e universalmente acessíveis. No entanto, à medida em que as plataformas chinesas como o TikTok cresceram, a narrativa mudou, e os EUA começaram a falar de preocupações de segurança nacional e assim por diante. Isto explica por que o Facebook e o Instagram não operam na China. Seja devido à pressão do governo dos EUA ou aos mecanismos internos da empresa, estas plataformas não podem ou não vão cumprir os requisitos legais da China.
As exigências e regulamentos da China são totalmente razoáveis, e algumas empresas, como a Tesla, manifestaram vontade de cooperar com estas condições. Elon Musk, por exemplo, declarou abertamente a sua disponibilidade para trabalhar dentro do quadro estabelecido pelo governo chinês, o que também beneficiou as operações da Tesla na China. Se um produto não puder ser lançado na China, é provavelmente devido a questões de gestão interna da empresa ou a mecanismos de back-end [a parte de um aplicativo que o usuário não consegue acessar, responsável por armazenar e manipular dados], e não a problemas do lado do governo chinês. Em última análise, isto reflete desafios dentro das próprias empresas, e os acontecimentos atuais mostram que este não é um problema do governo chinês.
No seu argumento de que existe uma espécie de tendência global de “censura” das redes sociais, Zuckerberg também falou sobre a América Latina, dizendo que “os países latino-americanos têm tribunais secretos que podem mandar de forma silenciosa que as empresas retirem coisas”. No Brasil, agora muitos especialistas estão preocupados porque as mudanças representam mais uma ameaça às instituições e à democracia (ao permitir ainda mais discursos de extrema direita). Agora, muitas pessoas olham para a China e valorizam a importância de não depender das redes sociais que pertencem a uma minoria poderosa dos Estados Unidos. Qual a importância para a China de ter soberania sobre as redes sociais?
Esta é uma questão que o governo chinês e os seus cidadãos têm em alta consideração. O conceito de soberania digital está se tornando cada vez mais significativo. Com a ascensão de Trump ao poder, bilionários como Elon Musk e Mark Zuckerberg têm sido mais flagrantes no aproveitamento da sua influência e capital na nuvem para garantir maiores benefícios pessoais.
Por exemplo, Musk usou abertamente a sua influência em plataformas como o Twitter [X] para influenciar a dinâmica política em países como o Brasil e alguns países europeus. Desde a ascensão de Trump, tal comportamento tornou-se ainda mais transparente. O governo chinês reconheceu este problema desde o início e implementou medidas e regulamentos preventivos. Apesar destes esforços, os EUA continuam utilizando a guerra de informação na Internet para criticar o modelo de governança da China e a questão de Taiwan, tentando provocar ações de “revolução colorida” na China. Esta é uma área de foco persistente para as autoridades e agências de segurança cibernética da China.
Durante a pandemia da covid-19, por exemplo, a China encontrou o que chama de “exércitos da Internet”, que são chamados de 1450 [foram usuários contratados pelo governo de Taiwan] na China, e também dos EUA, da Europa e de outros países e regiões. Estas entidades são especializadas na condução de guerra de informação contra a China. Embora a infraestrutura da Internet da China esteja entre as mais avançadas a nível mundial, abordar questões como a guerra de informação online continua sendo um desafio significativo. Muitas vezes leva a divergências ou outros problemas sociais. Portanto, o conceito de soberania digital é extremamente importante.
Se certas plataformas de redes sociais ou tecnologias relacionadas com a IA que gerem grandes quantidades de dados funcionassem inteiramente sem supervisão ou regulamentação governamental, os danos poderiam ser enormes.
Há dez anos, plataformas como o Twitter podiam influenciar diretamente acontecimentos como a Primavera Árabe. Sem capacidades de regulamentação robustas, os desenvolvimentos futuros na inteligência artificial poderão levar a ameaças mais insidiosas, ou seja problemas que estão ocultos e são mais difíceis de detectar em comparação com os desafios visíveis colocados por plataformas como o Twitter.
Consequentemente, a ênfase repetida hoje na soberania digital é inteiramente justificada, não apenas para as nações europeias, mas também para os países do Sul Global, como o Brasil.
À medida em que a inteligência artificial avança, os países desenvolvidos liderados pelos EUA poderão explorar grandes modelos de IA para ações que ameaçam a soberania digital de outras nações. Sem capacidades tecnológicas adequadas, essas ações podem se tornar impossíveis de monitorar ou combater.
Figuras como Musk e Zuckerberg deixaram muito evidente que vão utilizar todos os recursos tecnológicos disponíveis para influenciar a política de outras nações. Esta questão está agora aberta. Outras nações, incluindo a China, devem acelerar as suas pesquisas e iniciativas em matéria de soberania digital, ao mesmo tempo que promovem a colaboração internacional. A China pode aproveitar os seus pontos fortes para se envolver numa cooperação mais profunda a nível mundial, compartilhar experiências e ajudar outros países a resistir e a combater o hegemonismo tecnológico e digital dos EUA.
Como funcionam as regulamentações sobre discurso de ódio, violência e questões nas redes sociais chinesas?
Ao contrário do que muitas pessoas podem supor, acredito que a gestão da opinião pública nas redes sociais pelo governo chinês é mais transparente e sistemática em comparação com a abordagem adotada nos Estados Unidos. Nos EUA, o sistema alega defender a total liberdade de expressão, mas muitas vezes não possui supervisão genuína.
Por exemplo, após o conflito Gaza-Israel, o Partido Democrata propôs sugestões para moderação de conteúdo. No entanto, revelações de documentos internos, incluindo e-mails do Google, revelaram que agências dos EUA como o FBI, e a Casa Branca se coordenam de forma privada com empresas como o Google e o Facebook, orientando o que deve ser promovido ou removido. Isto demonstra que a abordagem dos EUA não é tão livre como quer parecer; em vez disso, opera sob o véu da liberdade de expressão, ao mesmo tempo que se envolve em negociações nos bastidores. Google e Facebook se apresentam como defensores da liberdade de expressão mas, na prática, cumprem as diretivas das autoridades governamentais estadunidenses.
Em contrapartida, a China aplica um sistema de gestão de dupla camada para conteúdos da Internet.
A primeira camada envolve o governo chinês moderando diretamente o conteúdo em plataformas como o Sina Weibo e outros sites de redes social nacionais, excluindo postagens ou contas. Agências como a Administração do Ciberespaço da China (CAC) estabeleceram um conjunto abrangente de regras que abordam conteúdos violentos, explícitos, de ódio ou intencionalmente falsos. Essas regras não se destinam a usuários individuais da Internet, mas sim a grandes empresas de tecnologia como Tencent, Sina e ByteDance.
Os diretores destas empresas participam regularmente em reuniões em Pequim com o CAC, onde questões de governança da Internet são discutidas abertamente.
Aqui, “aberto” refere-se a discussões envolvendo representantes de todas as empresas das principais plataformas de redes sociais. Nessas reuniões, os participantes analisam os problemas encontrados no último mês e propõem melhorias. Embora esta abordagem possa não ser perfeita, é relativamente transparente.
Em contraste, as reivindicações de liberdade de expressão não regulamentada nos Estados Unidos – defendidas por figuras como Elon Musk – mascaram frequentemente uma falta de supervisão que leva a outras formas de manipulação.
A enorme complexidade da Internet, com o seu enorme volume de informação, torna difícil para o usuário médio discernir conteúdos fiáveis. Para nações menores ou em desenvolvimento com recursos técnicos e financeiros limitados, combater a influência de poderosas figuras ou corporações tecnológicas é particularmente desafiador.
Nestes contextos, enfatizar a “liberdade de expressão” sem moderação apenas amplia o domínio dos gigantes da Internet, permitindo que exerçam um poder irrestrito sobre indivíduos e governos.
A abordagem da China para regular as grandes empresas tecnológicas consiste em estabelecer regras claras e adaptáveis. Estas regras evoluem ao longo do tempo, mas permanecem publicamente disponíveis e transparentes. Empresas como Tencent e Sina estão bem cientes dessas regulamentações e as cumprem.
A segunda camada envolve plataformas individuais que desenvolvem as suas próprias estratégias para gerir conteúdos com base nas regras gerais definidas pelo governo. Essas estratégias geralmente variam dependendo do foco da plataforma. Por exemplo, algumas plataformas que servem principalmente como centros de entretenimento podem impor controles mais rigorosos sobre assuntos políticos para manter o alinhamento do seu conteúdo com a sua natureza orientada para o entretenimento.
Por outro lado, plataformas como o Weibo [similar ao Twitter], que possuem uma gama mais ampla de tópicos, podem adotar uma abordagem mais branda em relação às discussões políticas, resultando numa maior presença desse tipo de conteúdo. Embora as regras específicas e as estratégias de implementação possam diferir entre as plataformas, todas elas operam sob a orientação do quadro regulamentar oficial.
Se a conta de um usuário for suspensa ou seu conteúdo for removido, ele normalmente poderá recorrer para entrar com uma apelação. Se isto se revelar ineficaz, os usuários podem recorrer judicialmente através dos canais legais.
Por exemplo, se uma plataforma desativar injustamente uma conta, o usuário tem o direito de buscar a reintegração por meio do sistema jurídico. Casos desta natureza estão se tornando cada vez mais comuns na China, especialmente quando a conta em questão possui um valor comercial ou econômico significativo. Muitos usuários restauraram suas contas com sucesso por meio de processos judiciais.
Neste contexto, a abordagem da China para equilibrar a moderação de conteúdos – visando o discurso de ódio, o assédio online ou a influência estrangeira hostil – ao mesmo tempo que promove a colaboração com plataformas como Douyin [TikTok], demonstra um modelo regulamentar estruturado, mas em evolução.
Embora não seja isento de falhas e de espaço para melhorias, este sistema de camada dupla serve como um exemplo de governança relativamente eficaz da Internet. Comparado com os mecanismos promovidos pelos Estados Unidos, que muitas vezes enfatizam uma abordagem laissez-faire à moderação sob o pretexto da liberdade de expressão, o modelo da China parece mais estruturado e pragmático. Oferece ideias que podem ser valiosas na definição de práticas globais de governança da Internet.
Parte dos problemas das redes sociais dominadas pelos EUA é que elas estão sendo usadas para influenciar a política em países (na América Latina) por meio de robôs e IA. A China é um dos principais países que insiste em estabelecer regras para uma governança global sobre IA. Qual é a relevância e urgência desse debate neste momento?
O presidente Xi Jinping também disse que a inteligência artificial deveria ter uma “abordagem centrada no povo e para o bem” há muito tempo. A China leva muito a sério a gestão e o desenvolvimento global da IA. Como eu disse antes, Musk e algumas outras empresas de tecnologia dos EUA – o que chamo “hegemonia tecnológica”–, estão muito preocupados com isso. Musk está fazendo tudo o que pode para promover a IA da Tesla; Zuckerberg também está envolvido com IA há muito tempo; e a IA do Google também é muito poderosa.
Penso que há dois aspectos da IA da China que valem a pena discutir. Primeiro, a China é mais forte na aplicação da IA, o que é diferente da IA dos Estados Unidos. É claro que, em termos do nível técnico da IA, os EUA ainda podem liderar o mundo. Embora a China também esteja se desenvolvendo rapidamente, no geral, podemos estar ligeiramente atrás dos Estados Unidos. No entanto, no que diz respeito à aplicação da IA, podemos dizer que a China está fazendo mais e melhor do que os Estados Unidos. Desde 2013, a China conseguiu cerca de 38 mil patentes relacionadas à IA, o maior número em nível mundial.
Portanto, deste ponto de vista, penso que a China está mais focada em como fazer com que a IA possa ser útil na vida real, na produção industrial comum e na vida social, o que considero muito importante, porque temos visto um fenômeno preocupante: a IA dos Estados Unidos está se desvinculando cada vez de aplicações práticas. Em outras palavras, as grandes empresas estão utilizando cada vez mais a sua IA para finanças, moedas virtuais e como censor de algumas redes sociais. Claro, isto está alinhado com a busca de valor das empresas.
Estas aplicações abstratas ou intangíveis têm maior probabilidade de gerar benefícios econômicos imediatos, fornecer feedback mais rápido sobre os preços das ações e criar uma história de capital mais convincente. Isto é em grande parte determinado pelo contexto nacional dos Estados Unidos e pelo seu mercado impulsionado pelo capitalismo. O que é diferente na China é que temos sido guiados e valorizados pelo Estado, que está muito focado na indústria. Agora temos Indústria 2.0 e Indústria 4.0. Também estamos focados em como aplicar IA em áreas como carros inteligentes, uso de energia, fábricas de robôs e assim por diante.
O que quero enfatizar é que a estratégia do governo chinês no desenvolvimento da IA é mais propícia à cooperação entre a China e a comunidade internacional, especialmente os países em desenvolvimento e os países do Sul Global. Acredito que a abordagem equivocada da IA nos Estados Unidos tem maior probabilidade de fazer com que muitas pessoas percam seus empregos.
Muitas pessoas estão preocupadas que a IA traga demissões em massa, já que muitas tarefas podem não precisar ser realizadas por humanos, o que acredito que só acontecerá quando a IA for separada do uso prático. No entanto, se aplicarmos plenamente as capacidades da inteligência artificial na indústria real, como o que a China está fazendo agora, isso não causará esse desemprego preocupante, mas criará novos empregos.
Um dos principais desafios enfrentados por muitos países em desenvolvimento hoje é a falta de capital e a insuficiência de capacidades de governança social. Isto resulta na incapacidade de muitas indústrias ou empresas básicas sobreviverem nestes países relativamente subdesenvolvidos. É claro que também existem muitos fatores objetivos em jogo, incluindo a instabilidade política dentro dos governos.
No entanto, a aplicação da inteligência artificial poderia ajudar precisamente em algumas destas questões. Portanto, acho que se a inteligência artificial puder ser plenamente aplicada de algumas formas práticas, poderá ajudar os países em desenvolvimento e os países do Sul Global a alcançarem os países desenvolvidos em muitas áreas. Em geral, a inteligência artificial é muito boa e favorável para toda a humanidade, e a China está disposta e é capaz de cooperar com os países do Sul Global neste domínio.
Isto nos leva de volta à ênfase do Presidente Xi Jinping numa “abordagem centrada no povo” na “inteligência para o bem”. A “abordagem centrada no povo” significa que o propósito da inteligência artificial é, em última análise, servir o povo. Por isso, estamos colocando mais ênfase na aplicação da IA a cenários práticos na China.
Em muitas partes da China, os veículos elétricos e os carros inteligentes já são comuns, e até a presença de robôs inteligentes pode agora ser vista em lugares como hotéis e ruas. Muitos turistas estrangeiros ficam surpreendidos ao descobrir quão extensivamente a IA já foi aplicada na China. Outro exemplo é a integração em larga escala da inteligência artificial na área médica pela China. Hoje, quase todos os hospitais na China adotam sistemas eletrônicos baseados em dados, e estas instalações são atualizadas quase todos os anos.
Como cidadão chinês, posso dizer por experiência própria que é muito diferente visitar o mesmo hospital este ano e no próximo. Estas são áreas priorizadas pelo governo chinês onde o desenvolvimento da IA pode trazer maiores melhorias. Na área médica, por exemplo, a IA pode diagnosticar rapidamente doenças ou desconfortos menores, permitindo um tratamento rápido.
Esta tecnologia reduz significativamente a carga de formação de novos médicos, abordando a escassez crítica de profissionais médicos devido à grande população da China. Estas aplicações médicas são altamente adequadas para serem compartilhadas com outros países do Sul Global, como o Brasil, outras partes da América do Sul e especialmente África, onde a escassez de médicos qualificados e de infraestruturas médicas é comum. Isto incorpora a “abordagem centrada no povo”, destacada pelo presidente Xi, e também representa uma direção fundamental para os próximos passos da China na cooperação com os países do Sul Global: encontrar formas de compartilhar a aplicação da IA com mais nações.
Outro ponto que vale a pena mencionar é a experiência do governo chinês na gestão da inteligência artificial, que considero também muito importante, porque hoje em dia, embora o desenvolvimento tecnológico da inteligência artificial dos EUA esteja muito avançado, com a volta de Trump ao poder, a capacidade de gestão do governo dos EUA pode se deteriorar gradualmente.
É possível concluir que, diante de grandes empresas tecnológicas como as de Musk, Zuckerberg e Bezos, a capacidade de gestão ou de orientação do governo se tornou muito limitada. Na verdade, nos EUA hoje, os gigantes da tecnologia, como Musk, podem agir sem restrições, utilizando os seus recursos de IA para desenvolver o que quiserem.
Nesta perspectiva, acho que apenas o governo chinês tem a vontade e a capacidade de gerir eficazmente a inteligência artificial. Porque nos quase 20 anos de desenvolvimento da Internet, o governo chinês tem uma vasta experiência na gestão destas empresas e no tratamento das suas operações comerciais. Portanto, acredito que o governo chinês pode contribuir neste sentido para o esforço global para explorar como regular a inteligência artificial de uma forma que apoie melhor o desenvolvimento da inteligência artificial na indústria, ao mesmo tempo que melhore continuamente as regras e leis relevantes.
A China é o primeiro país do mundo a legislar sobre IA generativa, ao mesmo tempo que refina as estratégias de gestão através de legislação e normas governamentais. Na minha perspectiva, esta abordagem é a única forma de adaptação ao desenvolvimento global da inteligência artificial no futuro, porque a IA irá certamente facilitar uma maior troca e circulação global de informações.
Portanto, à medida em que se desenvolve, se não conseguirmos incorporar a IA no quadro da soberania digital, os países menores, inclusive algumas nações europeias, pelo seu atraso na IA, podem tornar-se vulneráveis à influência ou danos de gigantes empresariais ou tecnológicos como Musk. Já podemos ver os ataques flagrantes de Musk à Europa, usando a sua influência digital e recursos de IA para atingir o Reino Unido e a França com tweets que não são exatamente desinformação, mas são impulsionados pela IA. Sem um conjunto abrangente de capacidades tecnológicas e regulamentares, será impossível prevenir ou resolver tais problemas.
Portanto, acredito que estes dois pontos – a capacidade da China de aplicar a IA na prática e a experiência da China na gestão da IA–, são formas de serviço público que podemos oferecer a muitos outros países ao redor do mundo. O Presidente Xi Jinping e o governo chinês estão dispostos a trabalhar com mais países, especialmente os do Sul Global, para participarem conjuntamente na regulação e governação global da IA. Nesta perspectiva, consideramos que a iniciativa de IA da China é muito positiva.
A China não só tem a vontade, mas também a responsabilidade e a capacidade para empreender esta tarefa. Além disso, acreditamos que, no futuro, a China deverá ser capaz de chegar a um consenso com mais países sobre inteligência artificial e soberania digital. Isto, especialmente no contexto de instabilidade política nos Estados Unidos, será um pré-requisito crucial para garantir que mais países em todo o mundo possam manter um desenvolvimento estável. Vemos isso como uma tendência muito promissora.