O ano de 2024 terminou com uma disputa aberta em torno da economia brasileira. De um lado, o mercado exigindo cortes nas despesas públicas, aumento da taxa de juros e mudanças nas regras que financiam saúde e educação. De outro, o governo federal ostentando bons números na inflação, geração de empregos, consumo e crescimento econômico.
Nessa disputa, o mercado não teve atendida sua principal exigência – o fim dos pisos constitucionais de saúde e educação – mas tampouco saiu de mãos abanando: a inclusão do salário-mínimo nas regras do novo arcabouço fiscal e as mudanças na concessão do Benefício de Prestação Continuada (BPC) foram concessões amargas, que vieram acompanhadas de medidas administrativas para aumentar a arrecadação.
Mas a disputa sobre os rumos da economia continuou no início de 2025. Após a "crise do Pix" gerada pelas fake news difundidas em torno das novas medidas de fiscalização sobre transações, que culminou no recuo do governo e em mudanças na comunicação institucional da gestão federal, e o aumento da taxa de juros na primeira reunião sob a presidência da Gabriel Galípolo, o tema da vez é a inflação dos alimentos e seu impacto na popularidade da gestão do presidente Lula. O problema é real e afeta, sobretudo, os mais pobres. Mas afinal, de quem é a culpa?
De quem é a culpa?
A inflação dos alimentos tem três fatores principais: clima, câmbio e os preços das commodities cotadas no mercado internacional.
Com a ocorrência de eventos extremos cada vez mais frequentes, como as chuvas que atingiram o Rio Grande do Sul em 2024, as queimadas que afetaram o Norte, o Sudeste e o Centro-Oeste, além das longas estiagens, o impacto sobre a produção de alimentos tem se tornado cada vez maior.
Sabemos que as mudanças climáticas têm como causa a ação humana através da emissão de gases de efeito estufa. Mas essas emissões não podem ser atribuídas a governo A ou B, embora seja forçoso reconhecer que tivemos no Palácio do Planalto nos últimos anos visões muito distintas em relação às políticas de preservação ambiental por parte dos governos Lula e Bolsonaro.
Com eventos climáticos cada vez mais extremos, safras têm sido perdidas, impactando a oferta e aumentando a pressão inflacionária. Mas o clima é só uma parte do problema. Outro fator está no câmbio. A desvalorização do real frente ao dólar impacta diretamente a dinâmica das exportações brasileiras. Com o dólar valorizado, se torna mais atrativa para os produtores a venda no mercado externo ao invés da comercialização no mercado nacional.
Além disso, parte dos insumos necessários à produção – como máquinas pesadas e fertilizantes – são importados em dólar, o que encarece os custos e impacta no preço final. Ademais, com uma safra menor entre 2023/2024, diminuiu a entrada de dólares na economia, o que também contribuiu para a desvalorização do real. Ao todo, a moeda brasileira fechou o ano valendo -21% em comparação com o início de 2024. O ataque especulativo criado artificialmente no fim do ano e "turbinado" pelas incertezas geradas com a posse de Donald Trump na presidência dos Estados Unidos também contribuiu para desvalorizar nossa moeda e estimular a exportação dos alimentos, desequilibrando a oferta.
Por fim, mas não menos importante, a política dos governos Temer e Bolsonaro de eliminar os estoques reguladores tirou do governo atual um importante instrumento de combate à inflação de alimentos. Sem esses estoques o governo não tem como ampliar a oferta vendendo alimentos e baixando a pressão inflacionária gerada pela demanda de uma economia aquecida.
A volatilidade do preço internacional das commodities também afeta o preço dos nossos alimentos aqui no Brasil. A sua variação é determinada principalmente pela oferta e demanda internacional, funcionando como um indicador para o negociador conhecer os possíveis cenários ao preço da commodity.
A culpa da inflação dos alimentos, portanto, não pode ser atribuída unicamente ao atual governo. Ela se deve à desvalorização do real frente ao dólar, ao aumento dos eventos climáticos extremos e os prejuízos por eles gerados, além da desestruturação dos estoques reguladores. Isso não significa, no entanto, que a atual equipe econômica esteja de mãos atadas. É possível – e mais que isso, necessário – agir para conter a alta no preço dos alimentos que tem penalizado os mais pobres.
O que não funciona?
Diante de qualquer tipo de inflação – seja ela de demanda ou de custos – os economistas ortodoxos sempre tiram da cartola a mesma solução: aumento da taxa básica de juros. Segundo eles, com taxas mais elevadas a economia perde dinamismo, com recursos sendo drenados da economia produtiva para os ganhos financeiros, o que diminui a demanda por produtos e consequentemente a inflação, mesmo que as consequências sejam o desemprego e a fome.
O problema desse raciocínio reside no fato de que, apesar de uma economia aquecida, a inflação dos alimentos não está relacionada à demanda, mas como já vimos, aos custos de produção e ao câmbio. Nenhum dos dois problemas pode ser resolvido no curto prazo com a alta da taxa de juros, especialmente com a ameaça de uma mudança na política de juros do Banco Central dos Estados Unidos.
Segundo artigo intitulado "Transmissão Assimétrica da Política Monetária sobre a Inflação por Grupos do IPCA: Uma Análise Empírica", publicado por um grupo de pesquisadores do Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da Universidade de São Paulo, a elevação de 1% da Selic reduziria os preços dos alimentos em 0,05% em… vinte quatro meses! Ou seja, o aumento dos juros como forma de controle dos preços dos alimentos no curto prazo é ineficiente.
Outra suposta solução que aparece em momentos de alta dos alimentos é a famigerada proposta de "controle de preços". A experiência remonta aos anos 1980, quando a inflação brasileira estava fora de controle. A medida, no entanto, é de difícil operacionalização. Segundo Pedro Rossi, professor livre-docente do Instituto de Economia da Universidade de Campinas, além dos elevados "custos políticos", o controle de preços é quase impraticável num mercado com múltiplos produtores como é o caso do Brasil.
O que funciona?
Se o controle de preços e o simples aumento da taxa de juros não resolvem o problema, o que fazer? É preciso combinar medidas de curto e médio prazo. Entre elas, podemos citar:
– Manter e ampliar a desoneração da cesta básica, condicionando o benefício fiscal à oferta no mercado interno;
– Ampliar benefícios sociais a pessoas em situação de vulnerabilidade econômica, como feito durante a pandemia. Um reajuste do Bolsa Família, ao contrário de gerar uma "explosão da inflação de demanda", como afirmam alguns economistas, pode ajudar a aliviar o peso da inflação e estimular a venda no mercado interno. O problema aqui é que a concepção predominante no Ministério da Fazenda hoje é de redução de gastos a todo custo;
– Retomar a política de estoques regulatórios: a Conab foi desmontada no governo anterior, mas a expectativa para o ano de 2025 é de uma safra recorde. É a oportunidade para retomar as compras públicas e baratear a oferta de alimentos;
– Imposto sobre exportação: segundo Pedro Rossi, essa é a solução mais corriqueira, utilizada amplamente em outros países. O problema é que essa medida esbarra no debate fiscal e na pressão contra uma suposta "sanha arrecadatória" por parte do governo federal. Um prato cheio para a oposição;
– Medidas para fortalecer o Real: iniciativas para controlar a especulação, como um período mínimo de carência para retirada de dólares do país, que já foram utilizadas em outros governos, podem diminuir a volatilidade e fortalecer nossa moeda.
Como podemos ver, o aumento da taxa básica de juros é o remédio errado para a doença que busca tratar. Mas é claro que o parte do mercado – que errou 95% das projeções sobre a economia brasileira no ano passado – sabem disso. A inflação dos alimentos é um tema grave, que deve ser encarado como responsabilidade. Usar a carestia como um elemento de pressão para atender outros interesses é uma verdadeira sabotagem contra o país.
* Fernanda Lima é economista-chefe na Barra Peixe Investimentos e mestranda em Gestão e Políticas Públicas na EAESP/FGV.
** Juliano Medeiros é Doutor em Ciência Política, professor convidado na FESP-SP e presidente do Conselho do Instituto Futuro.
*** Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.