Doutor em Física pela UFRGS com pós-doutorado na Université Catholique de Louvain, na Bélgica, o professor Gustavo Gil da Silveira esteve na Organização Europeia para Pesquisa Nuclear (CERN), localizada em Genebra, Suíça. Foi continuar o trabalho com sensores ultrarrápidos de diamante, projeto que a UFRGS vem desenvolvendo junto ao Detector Compact Muon Solenoid ou CMS. É uma tarefa realizada através de parceria com diferentes laboratórios do Instituto de Física e com uma empresa privada.
A CERN é considerada pela comunidade científica mundial como sinônimo de excelência em pesquisa e um modelo de colaboração científica internacional, pois desenvolve tecnologias nas mais diferentes áreas, bem como forma e educa estudantes e profissionais tanto europeus quanto do restante do mundo.
O Brasil se tornou estado membro associado da CERN em 2024. É o primeiro país das Américas a integrar oficialmente a organização. No caso específico do Brasil, a mudança de status de um acordo de cooperação firmado na década de 1990 para associado em 2024 é uma ação importante e muito esperada pela comunidade científica brasileira. Na Suíça, Brasil de Fato RS conversou com o pesquisador para entender o significado dessa mudança para a ciência brasileira.
Brasil de Fato RS: Conte sobre sua história profissional e de sua atuação junto ao CERN.
Gustavo da Silveira: Tudo começou quando iniciei meu pós-doutorado na Bélgica, depois de terminar meu doutorado no Brasil. Então, fiz o meu primeiro ingresso no CMS em 2012 e, desde então, venho fazendo diferentes tipos de trabalhos com o Detector Compact Muon Solenoid ou CMS. É o experimento em que trabalho aqui no CERN, até chegar na UFRGS, onde a gente começou novos projetos e desenvolveu novos temas, inclusive com os estudantes de pós-graduação.
Temos que estudar como cresce esse cristal, que é o diamante artificial produzido no laboratório
Que trabalho a UFRGS está desenvolvendo junto ao CERN?
Nele, a gente envolve tanto a parte do estudo de física com análise de dados, como também desenvolvimento de software, que é algo que fazemos remotamente a partir do Brasil. Como também fazemos tecnologia com desenvolvimento desses sensores de diamante que usados no CERN e que queremos desenvolver também no Brasil.
Na UFRGS, vários laboratórios (estão envolvidos) para fazer esse desenvolvimento. Temos que estudar como se cresce esse cristal, que é o diamante artificial produzido no laboratório, e como vamos qualificá-lo seu uso no experimento. Vários laboratórios estão envolvidos para realizar vários tipos de medidas, vários estudos para conseguir colocá-lo como um sensor a ser usado no CERN.
Como é o financiamento desses projetos que a UFRGS desenvolve com o CERN?
O desenvolvimento, em particular para esses sensores que queremos trazer para o CERN, está sendo majoritariamente financiado com recursos de agências de fomento de governo, seja o CNPq, seja a CAP, seja a Fapergs, que é uma agência estadual. Com esses recursos, estamos conseguindo desenvolver essa parte do sensor. O interessante é que a empresa que trabalha conosco quer qualificar o seu produto para que possamos usá-lo como sensor, também é parceira. Ela nos fornece material sem custo no momento, já que é também interessa a ela. Futuramente esperamos qualificar esse material para sermos um fornecedor para o CERN de material feito no Brasil.
É uma tecnologia muito particular e que talvez ainda não tenha atraído completamente a atenção
Você falou da empresa que participa como parceira da UFRGS no desenvolvimento do projeto do sensor. Você acredita que os empresários brasileiros têm consciência da importância de desenvolver esse tipo de projeto?
No Brasil, historicamente, o setor privado tem interesse em trazer tecnologia para desenvolver diferentes tipos de produtos. Especialmente nessa parte de física com que trabalhamos no CERN. É uma tecnologia muito particular e que talvez ainda não tenha atraído completamente a atenção. São aplicações muito particulares de sensores, de proteção à radiação. Vários produtos diferentes que usamos. Empresas internacionais, da Europa e dos Estados Unidos, fazem e fornecem esses produtos que eventualmente podem ser feitos no Brasil.
Uma vez que temos agora o acordo do CERN com o Brasil, esperamos que os nossos trabalhos locais nas universidades possam desenvolver, talvez em parceria com as empresas, novos produtos, tecnologias e materiais que possamos usar como um trampolim para algo comercial. O interesse desse desenvolvimento dentro do laboratório é que se a empresa parceira encontrar um nicho interessante para aplicar aquele produto, material, desenvolvimento, quem sabe o Brasil possa tirar proveito disso. Pode levar anos, mas se for consistente, se for sistemático, se conseguirmos um parceiro privado ou parceiro público que nos financie, esse produto pode surgir.
A CERN é considerada pela comunidade científica mundial como sinônimo de excelência em pesquisa e um modelo de colaboração científica internacional / Foto: Mônica Cabanas
Qual a importância destes projetos que vocês desenvolvem para os estudantes, para o meio universitário brasileiro, em um caso específico no Rio Grande do Sul?
Quanto à educação, temos três vertentes bem definidas. Ou é divulgação científica, algo que fazemos como trabalho de extensão, que é para a sociedade fora da universidade. Temos o desenvolvimento acadêmico, que é a formação do profissional, que tendo esse contrato, trazendo essa experiência com a pesquisa, enriquece o trabalho do profissional que vai trabalhar depois como engenheiro, como químico etc. E o terceiro é o desenvolvimento tecnológico, a formação de pós-graduação, de alto nível, de quem vai para uma empresa depois trabalhar com uma tecnologia muito particular, seja no Brasil, seja no exterior.
Essas três vertentes têm vínculo com o CERN, porque ele trabalha com divulgação, no meio acadêmico e com pesquisa. No Brasil, como um todo, existem várias iniciativas nessas três frentes. No Rio Grande do Sul, a gente tem um projeto de divulgação científica que fazemos com escolas. Há uma experiência em Osório (município do Litoral gaúcho) com uma atividade do CERN. Os cursos de graduação têm sempre uma experiência. É uma vertente forte que a estamos tentando continuar em Porto Alegre para desenvolver pesquisa e formar os estudantes de pós-graduação que eventualmente possam vir para o CERN também ajudar nesse desenvolvimento tecnológico.
O que pode ser dito sobre o projeto com o CERN em Osório?
O CERN possui um grupo internacional que é de desenvolvimento de divulgação científica. Envolve ferramentas que se pode aplicar para os estudantes, para fazerem uma pequena análise de dados, conhecer como os experimentos funcionam. Existe uma filial desse grupo internacional no país, que é o IPOGG-Brasil, envolvendo várias universidades. E um desses programas que a gente desenvolve em Osório é justamente para levar aos estudantes do Instituto Federal local a atividade de análise desses dados do experimento em que trabalho. Para que possam ter contato e saber como fazemos a análise, como verificamos que foi descoberta uma partícula. E essa atividade é toda feita num dia, após agendada com o pessoal, seja do CERN, seja do laboratório nos Estados Unidos, que é o Fermilab.
Ao longo do dia, fazemos uma palestra, mais análise de dados, e eles fazem uma conferência diretamente com o pessoal no exterior para apresentar os resultados que obtiveram. É uma atividade bem interessante na qual os estudantes têm contato tanto com a ferramenta quanto com os pesquisadores que trabalham no exterior.
Como representante na América Latina da União Internacional para Física Aplicada explique como funciona essa organização?
Sou o representante hoje nesse comitê internacional para futuros aceleradores, que é um grupo de trabalho dentro da União Internacional para Física Aplicada. O comitê é composto por vários pesquisadores com um representante da América Latina, que sou eu, mais representantes do Canadá, dos Estados Unidos, da Europa, do próprio CERN e de outros laboratórios da Ásia, como um da China e outro da Austrália.
Toda essa participação sobre projetos de aceleradores e novos experimentos, existe para que sejam feitos de forma eficaz no que se refere à aplicação de recursos e ao uso de recursos humanos. Para que ninguém faça competição, drenando esforços de um local para outro e gerando menos resultado do que seria esperado. Nesse comitê se articula, por exemplo, o futuro projeto do CERN. Discute-se o que vai ser feito para que outros países possam propor outros projetos para que possamos ter a forma mais eficaz de usar a mão de obra, que são os pesquisadores. É um comitê que tenta discutir esses pontos. Não delibera nada, não proíbe nada e sim tenta trabalhar para que atores importantes das decisões estejam informados do que cada parte do mundo quer fazer e que se possa fazer uma rede mundial de aceleradores e experimentos que possam estudar a física de forma mais eficaz possível.
As partículas existem só que não conseguimos observá-las diretamente
Gostaria que você nos explicasse, tendo em mente que a maioria das pessoas desconhece o que é um acelerador de partículas, por que se gasta tempo, estudo e dinheiro nesse tipo de estudo? E qual sua aplicação na vida das pessoas?
É diferente do que ocorre no ramo da astronomia em que a gente tem imagens. Pega-se um telescópio para olhar uma galáxia. O que a gente faz aqui é realmente microscópico. Sabemos que as partículas existem porque fazemos o teste experimenta e se verifica que existem, só que não conseguimos observá-las diretamente. Precisamos de algum tipo de detector que faça a medida para nos permitir ver os dados, analisar e estudar. Para termos esse detector tem muita tecnologia envolvida.
O recurso que é investido aqui é justamente para que tenhamos a capacidade de visualizar esses eventos, visualizar o fenômeno para poder estudá-lo depois. E como eles são cada vez mais difíceis de medir, dependendo da natureza de cada um, mais tecnologia tem que ser aplicada. Temos que fazer desenvolvimentos diferentes. Fazer parceria com empresas para que possam nos ajudar a desenvolver novos detectores, novos materiais. Tudo isso envolve um ganho tecnológico de diferentes formas para que consigamos fornecer o resultado físico que procuramos.
Além de detectar as partículas, a gente tem que armazenar os dados. Tem uma rede de computadores para armazenar isso ao redor do mundo. Precisamos analisar esses dados, aplicar a inteligência artificial. Fazemos parceria com o Google, a Oracle e outras empresas para justamente desenvolver essas ferramentas.
Às vezes, são aplicações específicas que talvez, comercialmente, não gerem interesse no momento. Mas dali vai surgir, talvez, um produto para outra aplicação. É um ramo diferente de outros da física, mas que movimenta bastante tecnologia e pode surtir algum resultado para a sociedade.
O CERN é um dos líderes no desenvolvimento de tecnologia para hadronterapia, que é a terapia contra o câncer usando partículas
Por exemplo, o CERN é um dos líderes no desenvolvimento de tecnologia para hadronterapia, que é a terapia contra o câncer usando partículas. O que o CERN faz com um ímã usado no acelerador. É o mesmo ímã usado na máquina que faz a terapia contra o câncer. Uma vez que se sabe fazer o acelerador, sabe-se produzir a máquina que aplica a terapia. Então, acabas ajudando a criar um hospital que atua com tratamento contra o câncer de forma mais eficaz e mais segura das usadas hoje em dia para tratamento contra a doença. São várias coisas que vão surgindo. Eventualmente hoje não tem uma tecnologia, mas daqui a pouco se descobre algo novo e vai surgindo algo positivo para a sociedade.
Fale do trabalho realizado com o diamante e do processo de desenvolver uma peça especifica no Rio Grande do Sul para o CERN.
Para utilizarmos algum tipo de material novo nos experimentos do CERN, é preciso qualificá-lo, fazer sua avaliação. No experimento em que trabalho aqui no CERN, no CMS, temos um pequeno sensor que faz uso de sensores de efeitos de diamante. Porque o diamante, em particular, resiste muito à radiação, que é a radiação que está dentro do experimento durante a colisão de partículas. O diamante que é hoje usado aqui foi comprado da empresa privada, desenvolvido e empregado no experimento.
Nosso interesse é desenvolver no Brasil esse mesmo tipo de sensor com a mesma qualidade ou atingir a melhor qualidade possível. Para quem possamos usá-lo no experimento como uma contribuição brasileira para essa tecnologia. Se conseguirmos fazer mais barato, se conseguirmos fazer todo o sensor pronto e entregar no CERN, será uma vantagem para o experimento porque ele reduz o problema de logística, de desenvolvimento. Ele recebe um produto pronto e o Brasil contribui com uma tecnologia que virá do CERN.
Essa transferência de tecnologia é importante porque o Brasil aprende a fazer um produto. Eventualmente, uma empresa privada pode ter interesse em desenvolver depois como uma aplicação em outros ramos, seja na saúde, em tecnologia de informação e tudo mais.
"Podemos aproveitar esse caminho de transferência de tecnologia para o Brasil" / Foto: Mônica Cabanas
O que representa para a comunidade científica brasileira o Brasil ser membro efetivo do CERN?
O acordo vai abrir algumas portas a mais. Principalmente para a indústria brasileira. Vamos poder contribuir agora com parte da produção nacional que pode ser usada no laboratório. Não só alta tecnologia, mas qualquer material que possa ser usado como cabos, componentes eletrônicos que o Brasil produz e que possa ser vendido para o CERN. Também a transferência de tecnologia. O desenvolvimento feito no Brasil pode trazer novos produtos que vai serem vendidos ao CERN para outros clientes. Para o Brasil, é interessante para entrar nesse ritmo de desenvolvimento de tecnologia internacional.
Por outro lado, tem o ganho da sociedade. Como membro associado do CERN, a gente tem mais acesso a mais vagas para estudantes fazerem trabalho técnico no CERN. Todo ano existem editais do CERN chamando estudantes ou recém-formados do mundo inteiro para trabalhar, algo a que, antes, o Brasil não tinha acesso. Como país-membro, tem acesso a ´N` vagas para estudantes começarem uma carreira científica, seja no CERN, seja em outro lugar, mas que tenham essa base que o CERN proporciona. Inclusive, uma aluna da UFRGS está vindo hoje trabalhar no CERN como estudante técnica para fazer um trabalho específico aqui. Já está dando frutos. Estudantes de outras partes do Brasil também estão vindo para cá trabalhar, o que antes era um sonho distante.
Várias empresas europeias se criaram em cima de tecnologias usadas em aceleradores
Existe algo mais que gostaria de dizer sobre esse trabalho conjunto da UFRGS, governo brasileiro e CERN?
Podemos aproveitar esse caminho de transferência de tecnologia para o Brasil. Então, é importante começarmos a desenvolver esse pensamento mais estratégico, de buscar as linhas mais eficazes para desenvolver algum produto tecnológico, buscar parcerias com empresas. Mas vai levar tempo. O acordo fechou recém faz um ano.
Estamos falando de um ramo específico, mas que tem um potencial grande. Vemos a Europa toda investindo e trabalhando com o CERN. Acontece porque dá frutos. Várias empresas europeias se criaram em cima de tecnologias usadas em aceleradores e detectores. Nos Estados Unidos, é a mesma coisa. E agora vem surgindo esse novo ramo da computação com inteligência artificial. Tudo isso tem como foco as atividades que fazemos no CERN.
O Brasil pode aproveitar o acordo justamente para trazer novos tópicos, buscar novas formas de se financiar também para buscar geração de conhecimento, formar mais recursos humanos, formar estudantes, formar engenheiros, pessoas que podem trabalhar tanto aqui no CERN quanto levar para o Brasil essa tecnologia. O importante é pensar estrategicamente em como aproveitar ao máximo esse acordo. Ele é uma coisa muito especial no sentido de que não acontece em nenhum outro lugar, nenhum outro ramo. E o importante é que o Brasil tem esse potencial. Basta a gente se articular para conseguir fazer este trabalho em território nacional.