O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes apresentou, nesta segunda-feira (17), uma proposta de conciliação sobre o tema do marco temporal, que é objeto de cinco ações na Corte. Foram incorporadas sete propostas de alterações à Lei do Marco Temporal (Lei 14.701/2023), aprovada pelo Congresso Nacional em dezembro de 2023.
Segundo a minuta, fica superada a tese do marco temporal, segundo a qual só podem ser demarcadas as terras indígenas que estivessem ocupadas por seus povos originários em outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. O próprio STF já havia declarado o parâmetro inconstitucional em setembro de 2023, meses antes da aprovação da nova lei. No entanto, o magistrado decidiu inovar, e elaborou uma espécie de substitutivo à lei 14.701, no qual inclui a possibilidade de exploração mineral em terras indígenas, altera os processos demarcatórios e fragiliza o processo de consulta prévia as populações originárias.
Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, Maurício Terena, coordenador jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), fala sobre o processo que envolveu o estabelecimento da mesa de conciliação e comenta as propostas contidas na minuta de Mendes. “Está sendo reescrito o capítulo dos índios da Constituição Federal”, avalia o advogado. “Essa iniciativa do ministro Gilmar pode entrar para a história como uma das mais violentas no que diz respeito à luta pelos direitos indígenas no Brasil”, completa. Em agosto de 2024, a Apib se retirou da comissão, por considerá-la uma tentativa de “conciliação forçada e compulsória”.
Confira a entrevista:
Brasil de Fato: Dr. Maurício, nessa proposta apresentada pelo ministro Gilmar Mendes, está superada a tese do marco temporal?
Maurício Terena: Sim, de fato, o marco temporal é um problema superado dentro dessa proposta. Mas a gente já tinha a compreensão que o marco temporal seria um problema menor, considerando que o próprio plenário do Supremo já o declarou inconstitucional. Não teria como o ministro Gilmar Mendes tornar constitucional aquilo que é inconstitucional por meio dessa câmara de conciliação.
Ainda assim, a Apib tem manifestado preocupação com outros pontos dessa proposta. Quais você destacaria?
Essa proposta tem um forte teor econômico e o que a gente tem mais se preocupado é com a possibilidade de atividades econômicas em terras indígenas. Eu destaco a mineração em terras indígenas, que é uma proposta que foi inserida no texto e que não fazia parte do projeto original da lei do marco temporal. Não estava em lugar nenhum. Então o ministro ampliou o próprio objeto com essa propositura apresentada. Tem também uma drástica alteração no rito demarcatório de terras indígenas, abrindo espaço para mais questionamentos, colocando novas entidades para participar do processo demarcatório.
Um outro ponto de preocupação nossa é a fragilização da consulta livre, prévia e informada. A proposta do ministro permite, mediante manifestação de terceiros interessados nas terras indígenas, fazerem um processo simplificado de consulta. A consulta é necessária porque envolve a Convenção 169 [da Organização Internacional do Trabalho]. E na mesma lei que abre as terras indígenas para exploração econômica, eles já querem também fazer como se fosse um regulamento dessa consulta livre, prévia e informada. Então a gente vê com muita preocupação essa simplificação da consulta livre, prévia e informada.
E finalmente, outra preocupação é em relação à autorização para a atuação da Polícia Militar em conflitos fundiários envolvendo territórios indígenas. A Constituição Federal é bem clara ao dizer que a competência para atuar em terras indígenas dos entes federais, nesse caso, da Polícia Federal, para tratar de temáticas relacionadas a direitos indígenas. Mas na proposta apresentada tem uma previsão de que a Polícia Militar possa atuar em conflitos indígenas, o que pode aumentar a violência policial dentro dos territórios.
Pela sua análise, além do fim da tese do marco temporal, a proposta que saiu da suposta conciliação, além de não conciliar, acirra ainda mais os conflitos relacionados a terras indígenas?
Com certeza, não houve conciliação alguma. Eu tenho dito que está sendo reescrito o capítulo dos índios da Constituição Federal, o Artigo 231. A gente vê com muita preocupação essa movimentação. Porque as questões propostas dentro dessa lei revisitam um período muito nebuloso da nossa história recente, onde os direitos dos povos indígenas estavam submetidos ao poder econômico.
Essa tentativa de mudança desses direitos por meio dessa proposta apresentada pelo ministro Gilmar Mendes é, de fato, reescrever esse capítulo constitucional que foi fruto de muita luta e está sendo perdido por uma decisão do Supremo.
Como as organizações indigenistas devem responder a essa proposta, já que não participa da mesa de conciliação no STF?
A gente já está se mobilizando, buscando fazer uma mobilização interna, no movimento, para que haja mobilização em Brasília durante esse julgamento. Essa iniciativa do ministro Gilmar pode entrar para a história como uma das mais violentas, no que diz respeito à luta pelos direitos indígenas no Brasil. Então vai ter muita luta, vai ter resistência, a gente vai agravar a decisão, provavelmente, mas agora é o momento de fazer um chamado aos indígenas de todo o país e às organizações parceiras para fazermos uma mobilização rápida contra essa proposta.
Em agosto, a Apib se retirou desta mesa de conciliação por discordar do que estava sendo negociado nela. Como você avalia esse processo até chegar a essa minuta, apresentada pelo ministro Gilmar Mendes?
Foi um processo marcado por uma violência simbólica no que diz respeito ao acesso à Justiça. A Apib tem três recursos pendentes de apreciação, e até o presente momento, não houve nenhuma sinalização de apreciação desses recursos. Tudo o que foi decidido dentro dessa câmara de conciliação é um procedimento obscuro, com falta de metodologia, com falta de transparência. No que diz respeito ao que está sendo negociado, é uma tentativa de forçar a conciliação, é uma conciliação forçada.
Quando a Apib se retira do feito conciliatório, o ministro Gilmar pede indicação de outros indígenas para comporem a tentativa de conciliação, o que é um absurdo. Nós somos parte autora da ação, e o ministro substituiu a parte autora. É como se um partido, como o PT [Partido dos Trabalhadores], entrasse com uma ação, e diante da impossibilidade de conciliar, o relator determinasse que o PL [Partido Lieral] substitua o PT na ação. Não faz sentido.
Então se o Supremo quer investir em mais em procedimentos conciliatórios como esse, ele precisa, acima de tudo, investir na formação de profissionais para terem um cuidado adequado com esses procedimentos.