A Câmara Municipal de Belo Horizonte (CMBH), aprovou, em 1º turno, na última quarta-feira (6), um Projeto de Lei (PL) que quer restringir a inscrição em competições esportivas na cidade pelo sexo biológico.
A proposta tem sido apontada por movimentos populares como transfóbica por desconsiderar uma parcela de seres humanos que querem praticar esportes e não se identificam com o seu sexo biológico. Esse PL, no entanto, faz parte de um projeto político no cenário nacional, segundo especialistas.
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De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), mais de 300 projetos de lei que atentam contra a população trans foram apresentados nas câmaras legislativas do Brasil, em 2023. Ao todo, no país, cerca de 77 leis contra essa mesma população estão em vigor no país atualmente.
Juhlia Santos (PSOL), a única vereadora trans na CMBH, aponta que o PL 591/2023, de autoria da vereadora Flávia Borja (DC), é inconsistente e inconstitucional.
“Existe uma junta médica que já faz estudo há um tempo sobre essa questão. Para além disso, cabe aos comitês técnicos esportivos decidirem e definirem com estudos mais aprofundados sobre essas questões”, reitera.
“Nós esperamos convencer a maior parte dos nossos colegas parlamentares de que esse projeto é transfóbico e inconstitucional”, acrescenta.
Ideologia conservadora
Esse fenômeno, que não é novo, não se restringe à capital mineira. Uma pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV) analisou 60 projetos de lei com conteúdo antitrans propostos na Câmara dos Deputados entre 2019 e 2023.
Temas como proibição de linguagem não binária, de realização de cirurgias de redesignação sexual ou tratamentos hormonais e de mulheres trans em competições esportivas se repetem em vários deles.
A pesquisa também apontou que o perfil dos principais autores têm uma predominância entre homens brancos integrantes de frentes com perfil religioso.
A secretária nacional LGBTQIA+ do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, Simmy Larrat, reforça que esse ideal faz parte de um projeto político cada vez mais presente.
“Essa ação na Câmara de Vereadores de BH não está desconectada de uma ação que é, inclusive, internacional. Há uma movimentação do campo da extrema direita para pautar a retirada de direitos de pessoas trans, sobretudo, mas de pessoas LGBTQIA+ em geral”, alerta.
Para ela, essa estratégia é replicada de forma sistemática: um projeto de lei é criado em nível nacional e depois se espalha rapidamente pelos estados e municípios, ou o contrário, uma proposta surge localmente e logo é replicada em outras regiões.
“Nossa avaliação é de que essa movimentação deve se intensificar ainda mais. Trata-se de uma tentativa de criar um falso debate, sustentado pela ideia de que há uma ameaça às famílias, desviando o foco de discussões realmente importantes, como o acesso da população aos serviços públicos”, sinaliza.
Desinformação é a grande inimiga
Outro ponto importante, segundo ela, é que muitos desses projetos apresentam um claro conflito com a Constituição Federal. O ministério e outras instituições têm se posicionado contra o conteúdo dessas propostas.
“É importante lembrar que já vencemos batalhas semelhantes antes, como no caso do ‘Escola Sem Partido’, que tentava censurar o debate de gênero nas escolas. O STF declarou sua inconstitucionalidade. Agora, no entanto, a extrema direita tem focado em outros temas, como o uso de banheiros e a participação de pessoas trans em esportes”, recorda.
De acordo com Simmy Larrat, esses temas têm um apelo popular maior devido à disseminação de fake news e ao pânico moral gerado pela desinformação.
“Precisamos avançar em projetos de lei que enfrentem a desinformação de maneira eficaz. Já temos decisões do STF a nosso favor, mas elas não são suficientes, enquanto os parlamentos continuarem omissos no combate às fake news e na regulamentação das redes sociais”, pondera.
“A desinformação tem causado danos profundos: está tirando vidas, restringindo direitos e excluindo parte da população. Infelizmente, esse debate não tem sido tratado com a devida prioridade nos parlamentos”, acrescenta.
A história se repete
No ano passado, 122 pessoas trans e travestis foram assassinadas no Brasil, segundo a Antra. E o país seguiu, pelo 16º ano consecutivo, como o que mais assassina pessoas trans no mundo.
Olhar com atenção para a maneira como o tema é tratado no legislativo e combater a desinformação é importante para enfrentar a ideologia conservadora e preservar os direitos das pessoas trans, reflete a presidenta da Antra, Bruna Benevides.
“É uma estratégia que já foi reconhecida ao longo da história. Mulheres foram caçadas como bruxas pela inquisição, pessoas negras foram escravizadas, Hitler perseguiu e assassinou diversos grupos étnico-raciais, judeus, ciganos, pessoas com deficiência, pessoas LGBTQIA+ e sempre nessa perspectiva eugenista. O que nós estamos vendo é a repetição de tragédias humanas que já foram ou que já deveriam ter sido vencidas”, chama a atenção.
Contra esse movimento, Bruna acredita em estratégias discursivas para combater os projetos.
“É fundamental ampliar a comunicação, para além das bolhas progressistas. É necessário apresentar argumentos sólidos e baseados em pesquisas, como aquelas que demonstram que não há vantagens significativas entre mulheres trans e cis no esporte. Precisamos ocupar espaços na mídia, universidades e parlamentos, para desmistificar narrativas falsas e combater a desinformação”, chama a atenção.
Avanços
Por outro lado, também há avanços, segundo ela. “O Brasil é um dos países mais avançados em direitos para a comunidade LGBTQIA+, incluindo a possibilidade de retificação de nome e gênero por autodeterminação, políticas de cotas para pessoas trans e medidas de proteção jurídica. O STF tem sido um aliado fundamental na garantia desses direitos”, afirma.
Bruna Benevides destaca que a luta das pessoas trans precisa estar conectada a outras lutas sociais, como a luta das mulheres, da população negra e dos trabalhadores.
“É um momento de realinhamento de forças e de resistência, mas também de avanços concretos que não podem ser ignorados”, diz.