Quase 10 meses depois da enchente de maio de 2024 a cidade ainda enfrenta vários rastros da tragédia espalhados pela Capital. Na área cultural há ainda muito a fazer, principalmente no Centro, Cidade Baixa e outros bairros espalhados ao longo do Guaíba. O Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo, na rua João Alfredo, 582, na Cidade Baixa, é um caso típico. Sem nenhum custo para os contribuintes, a UFRGS resolveu também colocar a mão na massa e colaborar com as museólogas da instituição.
Os professores e alunos do curso de Museologia, coordenados pela conservadora-arqueóloga Susana dos Santos Dode e a arqueóloga Marcela Dode, ambas contratadas pela Prefeitura de Porto Alegre, estão ajudando decisivamente na recuperação do local. Elas entregaram Plano Emergencial para a prefeitura. O estudo foi desenvolvido pela disciplina Tópicos Especiais em Preservação no semestre 2024/2. Entre os objetivos está debater temas contemporâneos no âmbito de preservação de bens culturais e intervir nos processos de identificação e preservação. O estudo é uma parceria com a prefeitura e poderá ser utilizado para fundamentar protocolos em momentos de crise como foi o caso da invasão das águas em grande parte da cidade e no museu.
O local, de grande valor histórico, e que teve o seu andar térreo inundado com quase um metro de água, foi estudado por seis meses por alunos e professores comandados por Jeniffer Cuty e Matheus Pereira da disciplina de Tópicos Especiais em Preservação. O estudo da UFRGS mostra uma série de ações que devem ser tomadas com rapidez para a preservação do prédio e dos acervos, à redução de danos e à segurança do público e dos trabalhadores do local. Estabelece também protocolos para evacuação segura, proteção de itens de valor inestimável e a comunicação entre os envolvidos, incluindo autoridades, bombeiros e a própria equipe do museu.
Conforme informa a UFRGS, o planejamento prévio também inclui a identificação e a mitigação de potenciais riscos antes de se transformarem em crises. A entrega do trabalho foi feita à equipe e à diretora do museu, Elizabeth Corbetta. “Este plano será fundamental, porque poderá nos ajudar na proteção da memória cultural da nossa cidade”, disse.
O tratamento de 24% do acervo arqueológico seriamente atingido pela enchente, foi montado em um laboratório provisório no andar térreo do museu, onde Susada e Marcela, especialistas na área, estão coordenando o trabalho de recuperação das peças danificadas. Por ser um trabalho que exige muito cuidado e delicadeza deverá se prolongar por muito tempo, talvez o ano todo.
Com estes trabalhos não há ainda uma data específica para a reabertura do museu à visitação do público. A assessoria de imprensa da prefeitura diz que a ideia inicial é abrir antes de completar um ano da enchente, em maio. A diretora Elizabeth Corbetta tem a convicção de que exposições poderão estar disponíveis ao público em maio.
“Em março, no aniversário da cidade, pretendemos fazer um grande evento nos jardins do museu, que são uma joia no coração de Porto Alegre”, informa a diretora. O atendimento a pesquisadores e visitas técnicas estão ocorrendo normalmente e a área externa do museu foi aberta para visitação em 29 de janeiro.
Ações
O curso de Museologia da UFRGS vem atuando intensamente desde a tragédia climática, acompanhando resgates de acervos e os tratamentos posteriores de objetos atingidos pelas enchentes, segundo a professora Jeniffer Cuty. “Lembro também que no período da pandemia, a UFRGS se mobilizou, redirecionando pesquisas e projetos de extensão para atender as necessidades daquele momento crítico”, afirmou para o Brasil de Fato RS.
O Sistema Estadual de Museus (SEM-RS) realizou um trabalho de excelência após o maio de 2024, conforme a professora, acompanhando todos os museus, sobretudo aqueles gravemente atingidos. “Como atuamos sempre em parceria com a sociedade e a coordenadora do SEM é nossa egressa, mantivemos nossos estudantes também informados sobre possíveis atuações voluntárias. Devo salientar que as ações de extensão são sempre voluntárias. Porém, em 2024, a Prorext (Pró Reitoria de Extensão), logo em maio, lançou editais emergenciais de bolsas para essa atuação nos resgates de acervos”.
Jeniffer é professora decana do curso de Museologia e arquiteta formada pela UFRGS. “O estudo do gerenciamento de riscos me acompanha desde 2013, quando fiz o curso do Iccrom (Centro Internacional de Estudos para a Conservação e Restauro de Bens Culturais), com sede em Roma. Sobre o acervo arqueológico atingido no Museu de Porto Alegre, temos a possibilidade de acompanhar o trabalho da conservadora-restauradora e da arqueóloga contratadas pelo museu e também abrimos um projeto de extensão, eu e o professor Matheus Pereira, que é arqueólogo, finalizando o doutorado na USP. As estudantes envolvidas diretamente na iniciativa são Goreti Costa Butierres, Isabela Artioli, Maria Júlia Rosa de Moura, Patricia Gabriela Machado Barbosa e Rafaella de Oliveira Santos”, conta ela.
A proposta da disciplina foi feita por Jeniffer quando ela definiu os seus encargos para o período de 2024, tendo como exercício o desenvolvimento do Plano de Emergência para o Museu de Porto Alegre. Já tinham alunos voluntários no museu, acompanhando o trabalho das profissionais que estão desenvolvendo o tratamento, e foi possível realizar um estudo na perspectiva emergencial.
“Contamos ainda com a pesquisa de todos os planos de emergência publicados por museus em todo o mundo (fizemos uma pesquisa bem rigorosa), com os estudos avançados sobre gerenciamento de riscos em museus (que estamos desenvolvendo há vários anos), com os relatos de profissionais museólogas que atuaram nos resgates de acervos no RS e com o apoio da equipe do Museu de Porto Alegre, especialmente da museóloga e da historiadora. A museóloga é nossa egressa também da UFRGS, Luciana Brito. Cabe ainda salientar como a atuação de museólogas formadas no RS (UFRGS e UFPel) qualificaram as ações nos museus, especialmente pensando em planejamento, que é o âmbito do Plano de Emergência. Ainda precisamos de mais valorização dos nossos acervos e investimento na contratação de museólogas, conservadoras-restauradoras e outras profissionais do campo, mas estamos caminhando e aprendendo com a tragédia”.
O acervo atingido no Museu de Porto Alegre é algo em torno de 80 mil itens. Caso o museu renove a contratação dessas profissionais, Jeniffer acredita que o trabalho é para mais alguns anos. “O papel da Universidade é orientar e auxiliar e, depois de um tempo, possibilitar que a instituição caminhe sozinha e encontre meios de contratação de profissionais já formados. Em média, costumo manter um projeto por dois anos, entendendo que é um tempo suficiente para o aprendizado de bolsistas e demais pessoas envolvidas.
Museu
O Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo é uma homenagem ao professor, escritor e historiador Joaquim José Barcelos Felizardo (1932-1992). Foi fundado em 13 de março de 1979, está vinculado à Secretaria Municipal da Cultura e fica instalado no Solar Lopo Gonçalves, uma casa que faz parte da história da capital. O solar, também conhecido como Solar da Magnólia, foi construído entre 1845 e 1853, numa chácara com fundos à Rua da Margem (atual João Alfredo), para servir como residência de verão da família do comerciante português Lopo Gonçalves Bastos, uma figura de destaque na aristocracia de Porto Alegre.
Ele era um comerciante rico, de muitas posses e manteve vários negócios. Também foi fundador da Associação Comercial de Porto Alegre e também do Banco da Província – que posteriormente virou Sulbrasileiro, Meridional e hoje é Santander.
Religioso, acabou também três vezes prior da Ordem Terceira de Nossa Senhora das Dores, membro benemérito da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia, tesoureiro das obras do Seminário Diocesano, juiz de Paz, juiz municipal de Órfãos, membro da Junta para Execução do Código do Processo Criminal e vereador por dois mandatos, ficando como suplente em um terceiro período. Faleceu em novembro de 1872. Teve uma carreira movimentada e de bastante prestígio.
O Solar era a sua casa de veraneio. A área era considerada zona rural naqueles tempos. Ele morreu em 1872 e a sua esposa em 1876. O solar foi herdado pela filha, Maria Luisa Gonçalves Bastos, e por seu cônjuge, Joaquim Gonçalves Bastos Monteiro, sobrinho de Lopo e também comerciante. Neste período, o Solar tornou-se residência fixa da família, sendo ampliado e reformado por Maria Luísa: houve a construção de um pequeno pátio interno, a inserção de um torreão e a demolição de um antigo cômodo.
Pesquisadores acreditaram que o porão alto serviu como senzala para os escravizados da família Bastos. Com o tempo constatou-se que o local foi assim construído para preservar os moradores, que viviam no piso superior, quando ocorressem inundações, visto que a zona era alagadiça. A moradia dos escravizados, mais provavelmente, era a própria casa, tanto para os que trabalhavam com tarefas domésticas durante o dia, como para os demais, ligados ao trabalho rural na propriedade.
Com o crescimento e a expansão da cidade, a chácara foi sendo subdividida e diminuiu de tamanho. Em 1946 o Solar foi adquirido pelo empresário e advogado Albano José Volkmer (1886-1972). Volkmer e sua família eram proprietários de uma fábrica de velas no centro da cidade. Fizeram reformas no solar para abrigar diversos parentes, reorganizando a área útil em três unidades de habitação. Manoelito de Ornellas em 1958 foi o primeiro a chamar a atenção do Poder Público para o interesse histórico do solar e sugerir sua proteção, considerando-o maior representante da arquitetura colonial do século passado, próprio para abrigar um museu.
Em 1966, o Serviço de Assistência e Seguro Social dos Economiários (SASSE) adquiriu a propriedade para construir um núcleo residencial para seus associados. Para tanto, solicitou à prefeitura a demolição do solar e a abertura de uma rua que dividiria a propriedade, o que foi indeferido pelo Conselho do Plano Diretor e Divisão de Urbanismo.
Decadência
Diante da falta de manutenção, o prédio ficou decadente e com a estrutura prejudicada. Acabou invadido e até virou uma espécie de cortiço. Em 1974, a prefeitura tomou conta da área para posterior criação de museu de imagem e som. A ideia havia partido de Nilo Ruschel, diretor do Departamento Central de Propaganda e Turismo da Comissão do Bicentenário de Porto Alegre, que havia adquirido para o município três importantes álbuns de fotografias históricas e queria criar um museu da memória fotográfica e sonora.
No início da década de 1970 começava a emergir uma consciência patrimonial na cidade mais estruturada, formada por professores universitários, pesquisadores, jornalistas e outros defensores do patrimônio, despertada pela intensa onda de demolições que estava ocorrendo desde a década de 1950 sob o ímpeto do progresso e das mudanças nas concepções de estilo construtivo, urbanismo e habitação. As mudanças ameaçavam a conservação da memória, da identidade e da história da cidade.
A partir de 1974 a situação de abandono do solar começou a mudar, segundo relata a Wikipedia. Na época, a situação das instalações precárias foi debatida intensamente. O historiador Sérgio da Costa Franco, morto em 2022 aos 94 anos, destacou sua importância, defendendo sua preservação: "Compreendi que o Solar de Lopo Gonçalves Bastos, ali na Rua João Alfredo, era quase único em Porto Alegre. Em matéria de residências nobres do século XIX, nada existe em melhor estado de conservação externa e nada de mais autenticamente lusitano na nossa cidade". Ele também sugeriu que se abandonasse a ideia de um Museu da Imagem e do Som, recomendando que fosse em vez um Museu da Cidade.
E assim foi feito. O Museu Histórico Municipal foi criado por decreto em 13 de março de 1979, com o nome de Museu de Porto Alegre, e instalado provisoriamente na rua Lobo da Costa, 291. O projeto foi aprovado devido ao valor histórico que representa por ter sido a residência do Comendador Lopo Gonçalves Bastos, e a sede da reunião de instalação da Associação Comercial de Porto Alegre. Além disso, o prédio é um exemplar significativo da arquitetura colonial brasileira e foi relacionado como peça de valor histórico e cultural pelas duas Comissões Municipais de 1971 e 1974.
O decreto também estabeleceu que sua missão seria "a divulgação do acervo reunido e das pesquisas realizadas sobre os elementos culturais em seu processo histórico na dinâmica espacial de Porto Alegre". Em 21 de dezembro de 1979 o prédio foi incluído no primeiro grupo de bens tombados pelo Poder Público, logo após a aprovação da Lei dos Tombamentos.
Em 1980 a Secretaria de Educação e Cultura assumiu a responsabilidade de executar o projeto de restauro e adaptação do prédio para o novo uso. O restauro ocorreu entre 1980 e 1982, sob orientação do arquiteto Nestor Torelly Martins. No final do restauro, o acervo da Prefeitura, de responsabilidade do historiador Walter Spalding, foi transferido para o museu. Na década de 1980 o solar foi um dos dois prédios históricos de Porto Alegre mais lembrados numa pesquisa de opinião sobre o que deveria ser preservado.
Nos anos 1990 a equipe foi qualificada e ampliada, incluindo historiadores, arqueólogos e estagiários, possibilitando uma expansão e aperfeiçoamento das suas atividades.
Chamado originalmente Museu de Porto Alegre, teve seu nome modificado para Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo por lei municipal de 23 de dezembro de 1993, a fim de homenagear o historiador e criador da Secretaria Municipal de Cultura, Joaquim Felizardo. Professor da educação básica e universitária, ministrando a disciplina de História, foi perseguido político durante a ditadura militar no Brasil, sendo punido em 1968, quando foi cassado e detido. Com a redemocratização, retornou à vida pública.
Novo restauro
Depois de novas restaurações, o museu foi fechado em 2005 para poder passar por um novo restauro, sendo reinaugurado em 17 de dezembro de 2007 com a exposição de longa duração Transformações Urbanas: Porto Alegre de Montaury a Loureiro, com imagens dos melhoramentos urbanos, projetos, obras e planos diretores, enfocando um período de grandes renovações urbanas na cidade. Em 2011 as salas de recepção foram reformadas e reorganizadas. O museu apresenta exposições temporárias, promove cursos, debates, oficinas e outras atividades culturais. Algumas atividades são focadas na centenária magnólia que cresce no terreno do museu, que já gerou folclore e foi tombada individualmente pela prefeitura.
Vários trabalhos acadêmicos já enfocaram a instituição, seu acervo, história e atividades, enfatizando sua importância social e científica. O acervo é vasto e revela detalhes da cidade, sua evolução, constituído por mobiliário, indumentária, itens arqueológicos, instrumentos musicais, documentos, fotos, objetos de uso pessoal, de decoração, relacionados à vida doméstica, ao exercício de profissões, entre outros. “Sua missão oficial é promover a interação da sociedade com o patrimônio cultural do município, com ênfase na sua história e memória, através da preservação, pesquisa e comunicação dos bens culturais sob a guarda da Instituição", segundo a Secretaria Municipal de Cultura.
O museu divide seu acervo em três setores: Acervo Tridimensional, Acervo Fotográfico – Fototeca Sioma Breitman, e Acervo Arqueológico. Há também um acervo documental, incluindo material produzido pela pesquisa interna e projetos de restauro de logradouros e edifícios públicos nos quais o museu colaborou.
O Acervo Tridimensional é formado por mais de 1.300 objetos dos séculos XIX e XX. O Acervo Fotográfico – Fototeca Sioma Breitman preserva cerca de 9 mil fotografias originais da cidade do período entre o fim do século XIX e início do século XX e o Acervo Arqueológico conta com mais de 250 mil itens, incluindo material cerâmico, lítico, ósseo, vítreo, metálico, em couro, louça, além de remanescentes humanos provenientes de 91 sítios arqueológicos. O acervo não é propriedade do Estado nem do município. O acervo é propriedade da União. O município é apenas guardião. O Ministério da Cultura está colaborando para o restauro e reconstrução.