A Venezuela conseguiu aumentar a segurança do país. Se em 2023 o país terminou o ano com uma taxa de homicídios de 26,8 por 100 mil habitantes, no ano passado encerrou com a terceira mais baixa da América Latina, com apenas 4,1 mortes por 100 mil habitantes, atrás apenas de El Salvador (1,9) e Argentina (3,8).
O resultado vem de um trabalho contínuo desde a chegada de Hugo Chávez ao poder em 1999. Em 26 anos, o país passou por mudanças não só nas medidas adotadas, mas na própria concepção da segurança como uma política de manutenção da paz e não promoção de violência. A sociedade também passou a ser incluída na discussão e, principalmente, nas responsabilidades da segurança pública.
Um dos pilares para isso foi a Constituição de 1999. No documento construído pelo ex-presidente Hugo Chávez, a segurança passa a ser estruturada a partir de um Estado que pensa a segurança do país, e não a gestão de um Ministério da Guerra. A substituição para um Ministério da Defesa não foi algo simbólico. O Estado venezuelano passou a usar o conceito da irenologia como guia da nova política de segurança.
Criada por Johan Galtung, a disciplina foca no estudo da paz e dos conflitos buscando um estado de bem estar e convivência cidadã. A ideia é tentar resolver por meios pacíficos os conflitos que podem existir mesmo quando não há uma guerra. Outro ponto de inflexão foi construir o conceito de segurança cidadã no lugar de segurança pública, entendendo que a gestão da defesa do território se dá em diferentes esferas.
Gabriel Sanchez tem pós-doutorado em segurança cidadã e é assessor do governo. Segundo ele, a mudança nos conceitos de segurança no país foram fundamentais para os resultados alcançados, assim como o estabelecimento de uma união entre sociedade e a Força Armada da Venezuela.
“Essa reestruturação começa em um contexto complexo no que diz respeito à figura do presidente, ao sistema político e à política. E dentro de uma teoria e doutrina de segurança da Nação, nos preparamos para defender, porque somos um país de paz. Neste campo de ação temos o que é a união perfeita cívico-militar-policial, ou militar-policial-cidadã. Quer dizer, corresponde a todos a segurança no país”, afirmou ao Brasil de Fato.
Essa união entre sociedade e militarismo é representada principalmente pela milícia bolivariana (brigadas populares). A organização foi formada em 2009 e tem civis em seus quadros e militares aposentados. Eles recebem treinamento para defesa pessoal e fiscalização do território em seus diferentes contextos (urbano e rural). A milícia passou a compor uma das 5 Forças Armadas da Venezuela, que tem uma estrutura diferente do Brasil.
Além da própria milícia e do Exército, Marinha e Aeronáutica, o país conta também com a Guarda Nacional Bolivariana. A Guarda é responsável por fazer o trabalho de polícia administrativa, investigações criminais – como a polícia civil brasileira – e auxiliar outras forças no país, a partir da ocupação do território.
Formação de profissionais
A formação dos agentes de segurança também foi uma mudança promovida pelo ex-presidente Hugo Chávez. Foram criadas as universidades Militar e de Segurança Cidadã, para capacitar os profissionais que trabalham tanto no patrulhamento, quanto na investigação de crimes.
Guillermo Golding é advogado e foi um dos responsáveis por fundar a Universidade Experimental de Segurança Cidadã (UNES). Segundo ele, o próprio cargo de agente de segurança passou a ser mais prestigiado.
“Antes da criação da Universidade Nacional Experimental de Segurança Cidadã, o nível de formação era muito precário. Para ser policial e para ser servidor público na área da segurança cidadã era a última opção que tinha o cidadão. Não tenho trabalho, vou ser policial para não morrer de fome. Os salários eram baixos e a profissão era marginalizada. Hoje se nota uma diferença no comportamento do militar, que usa a farda na rua, para voltar do trabalho”, disse ao Brasil de Fato.
O próprio conceito de segurança passou a ser encarado de outra forma. Não só pensar os índices de segurança de maneira objetiva, a própria sensação de segurança se tornou um termo usado pelo governo para compreender de que maneira os venezuelanos encaram a realidade do país.
“A segurança é uma sensação. Não é um estado por si só. É uma sensação que os cidadãos sentem em um território em um determinado momento. Boa parte dessa sensação aumenta, em parte por essa formação, mas, em certa medida, é uma sensação ampliada pelos próprios resultados dos esforços da segurança”, afirmou.
Políticas públicas
Os dados refletem essa sensação da população. Em 2016, a taxa de homicídios foi de 56 por 100.000 habitantes na Venezuela, segundo o Corpo Científico, Criminal e de Investigação Criminal (CICPC). A redução em mais de 92% em 8 anos mostra um trabalho realizado em diferentes frentes pelo governo venezuelano.
Em 25 anos, o governo desenvolveu uma série de programas de segurança até chegar a Grande Missão Toda Vida Venezuela, em 2012. A política tinha oito vértices para criar mecanismos alternativos para resolução de conflitos, transformar o sistema penitenciário, ampliar o conhecimento para a segurança cidadã e lutar contra crimes específicos, como o abuso e o tráfico de drogas.
Em 2019, esse programa foi reformado e se tornou a Grande Missão Quadrante de Paz, que tem como objetivo sistematizar a gestão da segurança, criando estratégias para não só combater os delitos, como também atender as demandas sociais relativas à segurança. A ideia é aproximar o cidadão dos debates e das políticas de segurança.
Como forma de reestruturar a gestão da segurança, foram definidos 4 níveis organizativos. O nível estratégico, que é responsável pela definição das táticas de atuação das forças de segurança. Ele é gerido pelos 5 poderes, em uma discussão que vai desde o Executivo até o Ministério Público, o Tribunal Supremo de Justiça, a Defensoria Pública e a Defensoria do Povo.
O outro nível é o Tático Gerencial, que é esquematizado pelos responsáveis pela Missão. Os chefes do Quadrante de Paz são responsáveis pelos eixos: prevenção, combate à corrupção e o crime organizado, transformação da justiça penal, sistema popular de proteção para a paz, gestão de risco, fortalecimento dos órgãos de segurança e expansão da Polícia Nacional Bolivariana e da Universidade Nacional de Segurança Cidadã.
O nível operativo nacional é coordenado pelos entes ligados ao Ministério Público, enquanto o estadual envolve os chefes da missão por estados e têm a responsabilidade de dar andamento àquilo que é definido pelos poderes nos territórios.
O procurador-geral da Venezuela, Tarek Wiliam Saab, também reforça essa tese de que o trabalho coordenado teve impacto direto nos resultados da diminuição da violência e das taxas de homicídio no país. Em entrevista ao Brasil de Fato, o chefe do Ministério Público deu mais detalhes sobre os dados até o ano passado. De acordo com ele, de 2017 a 2024, os homicídios intencionais diminuíram em 83% e os homicídios qualificados em 91%.
“Esse é o esforço da unidade do trabalho do Estado venezuelano. Temos o princípio de cooperação entre os poderes. Um Estado democrático tem que manter esse princípio de cooperação, tem que manter essa unidade. Depois vem os resultados. As lutas contra o crime organizado também foi fundamental, do menor ao maior. desarticular grupos repercute para a paz de maneira imediata, e tivemos essa experiência em diferentes estados”, afirmou ao Brasil de Fato.
Mudança de perspectiva
Os resultados das políticas iniciadas por Chávez apareceram depois de 12 anos da gestão de seu sucessor, Nicolás Maduro. Uma das causas reforçada pelo próprio Saab é também o forte combate ao crime organizado.
Principalmente a partir de 2020, forças de segurança atuaram de maneira violenta contra o facções em combates que deixaram muitos presos e até mortos. Um dos mais marcantes foi registrado em 2021, quando o Exército enfrentou o grupo Cota 905. Depois de 3 dias de confronto na capital Caracas, o governo contabilizou a morte de 4 funcionários das forças de segurança e 22 do grupo.
As autoridades também se orgulham de ter “desmantelado” recentemente o principal grupo criminoso venezuelano, Trem de Aragua. Segundo o governo, esse trabalho é realizado em conjunto entre as Forças Armadas e a inteligência do país para mapear a atuação dessas facções.
Sanchez afirma que, apesar de uma forte presença militar nas ruas da capital, há uma mudança no método de atuação. Ele compara com a forma que as polícias militares do Brasil atuam, de “atirar primeiro e perguntar depois”.
“Durante a Quarta República, ou seja, antes do Chávez assumir, as forças de segurança da Venezuela tinham uma mentalidade de disparar primeiro e averiguar depois. Muito parecido com o que a segurança pública brasileira aplica nas polícias militares, principalmente nas favelas. Neste período tínhamos a mesma concepção de segurança, o que gerava mais violência”, afirmou.
Golding reforça que, todas essas frentes de atuação foram importantes para a mudança na perspectiva da segurança do venezuelano.
“A segurança na Venezuela vive uma sensação de muito mais tranquilidade porque é uma questão integral. Da intervenção do Estado, do aporte como cidadão e dos corpos de segurança. Essa integralidade é o que nos brinda que hoje em dia tenhamos uma sociedade mais harmônica, mais tranquila e mais pacífica ou mais segura. Realmente uma sociedade mais segura. Temos uma simbiose social que nos exige que assumamos nossos espaços e nossas responsabilidades em cada um dos lugares onde nos desenvolvemos”, disse.
O resultado desse trabalho também reflete em uma mudança de mentalidade da própria sociedade venezuelana. Para Gabriel Sanchez, todas essas frentes de atuação transformaram a forma que a população vê não só o crime, mas a relação entre o venezuelano e a própria sociedade.
“Eu chamaria de um estado de consciência, de maturidade política e social da realidade. De uma maturidade como país, como sociedade, para sua evolução. E garantir o que são os ecossistemas econômicos e produtivos da população. Dentro das políticas públicas, a Venezuela não só reprimiu os crimes, mas também trocou uma pistola por um instrumento musical. Isso permitiu e ratificou que a educação e o estudo são a base para o desenvolvimento e o trabalho do ponto de vista produtivo, econômico e social da população. O que permitiu que a Venezuela tenha hoje os níveis de segurança que tem”, concluiu.