As mudanças climáticas vêm impondo novos desafios à classe trabalhadora. No Rio Grande do Sul, as enchentes de maio de 2024 atingiram municípios inteiros, deixando um rastro de destruição. Entre os atingidos, milhares perderam seus bens, suas casas e, ainda assim, foram pressionados a comparecer ao trabalho sob ameaça de demissão.
Em meio à calamidade, muitos funcionários se sentiram coagidos a se apresentar, mesmo quando seus locais de trabalho estavam alagados ou sob risco iminente. As violações trabalhistas decorrentes do desastre representaram 29,5% das denúncias recebidas pelo Ministério Público do Trabalho (MPT-RS) em maio no estado. Das 203 denúncias registradas, 60 estavam relacionadas ao comparecimento forçado ou à permanência de empregados em áreas inundadas. A maioria dos casos (83,3%) ocorreu na região metropolitana de Porto Alegre.
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Agora, em fevereiro de 2025, mais um evento climático reacende o debate sobre os direitos dos trabalhadores. As ondas de calor extremo que atingem o estado impõem riscos severos à saúde a quem trabalha ao ar livre. Operários da construção civil, garis e entregadores enfrentam jornadas sob temperaturas sufocantes, sem garantias mínimas de proteção.
Em meio a esse cenário, o vereador Giovani Culau (PCdoB) apresentou um projeto de lei na Câmara da capital gaúcha para assegurar a liberação, sem prejuízo salarial, de servidores municipais e trabalhadores terceirizados que atuam ao ar livre em dias de calor extremo. A proposta busca oferecer um mínimo de dignidade a quem, historicamente, sofre com as alterações do clima.
Mas a legislação brasileira está preparada para proteger os trabalhadores diante dos impactos da ebulição global? Buscando essa resposta, o Brasil de Fato RS entrevistou a advogada Fernanda Damacena, especialista em desastres, meio ambiente e mudanças climáticas. “A falta de previsão legislativa ou de regulamentação trabalhista voltada a desastres alimenta a possibilidade de insegurança jurídica e de interpretações divergentes, o que não é bom para o trabalhador, nem para o empregador”, analisa. Na conversa, ela explica como os desastres climáticos se refletem no mundo do trabalho e quais avanços são necessários para garantir segurança e dignidade à classe trabalhadora.
Brasil de Fato RS: Como a Constituição Federal orienta a elaboração de leis que garantem a proteção dos trabalhadores no contexto de eventos climáticos extremos?
Fernanda Damacena – Quando falamos em legislação brasileira estamos pensando de maneira ampla. Nesse contexto, o ponto de partida deve ser a Constituição Federal, que trata da elaboração de outras leis, do conteúdo mínimo que elas devem ter e, também, dos vetores orientadores do valor social do trabalho e da livre iniciativa (artigos 1º, IV, 170 e 193), direito à continuidade da relação de emprego (artigo. 7º, I), seguro contra acidentes de trabalho (artigo 7º, XXVIII), entre outros princípios e direitos que devem ser levados em consideração pelas normas infraconstitucionais. No que tange ao amparo do trabalhador afetado por eventos climáticos extremos, o desenvolvimento da legislação é mais recente.
Citando um exemplo, a Lei 14.437/2022, criada durante a pandemia de covid-19, que se baseia no conceito de “força maior”, pode ser adaptada e aplicada em contextos de eventos climáticos extremos para proteger os trabalhadores?
As disposições da Lei nº 14.437/2022 se aplica a casos de calamidade pública nos três âmbitos da federação. E eventos extremos correlatos ao clima fazem parte do rol dos eventos que mais geram decretação de calamidade no Brasil. Logo, a lei pode ser aplicada em contextos de eventos climáticos extremos para proteger os trabalhadores. Adaptações são possíveis e necessárias.
A Lei nº 14.437/2022 não aborda expressamente a força maior. De toda forma, se o empregado comprovar a situação que gerou a impossibilidade de comparecer ao trabalho e informar o empregador sobre a sua ausência, o direito estará ao seu lado, protegendo-o de medidas arbitrárias. Importante lembrar que a impossibilidade de chegada ao trabalho por uma causa de força maior, ou seja, que foge ao domínio do trabalhador, porque o transporte parou ou porque a empresa está inacessível etc., não tem o condão de atribuir ao evento extremo em si a característica de inevitável e imprevisível. A força maior é uma excludente de ilicitude com grandes reflexos no campo da responsabilidade civil, ou seja, ao campo das indenizações.
Nos últimos tempos essa excludente tem sido aplicada de maneira generalizada a desastres relacionados ao clima. Esse entendimento pode acabar comprometendo ao invés de auxiliar na garantia de direitos em diversas áreas jurídicas. Assumir que todo evento extremo é natural e decorrente de força maior é o mesmo que dizer que todo desastre é imprevisível e inevitável, o que definitivamente não corresponde à realidade dos fatos em todos os casos.
Esse cuidado precisa ser tomado, sob pena de chegarmos ao ponto de dizer que o trabalhador tem direito ao abono de uma falta, mas não tem direto a uma indenização por ter perdido a casa; ou que uma empresa tem a obrigação de arcar com as verbas trabalhistas, mas não pode ser indenizada pelas perdas e danos estruturais que teve em suas instalações por conta de uma inundação.
A Lei nº 14.437/22 autoriza o Poder Executivo federal a dispor sobre a adoção, por empregados e empregadores, de medidas trabalhistas alternativas e sobre o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, para enfrentamento das consequências sociais e econômicas de estado de calamidade pública em âmbito nacional ou em âmbito estadual, distrital ou municipal reconhecido pelo Poder Executivo federal. Os objetivos da lei são: a preservação do emprego e da renda; garantia da continuidade das atividades laborais, empresariais e das organizações da sociedade civil sem fins lucrativos; e a redução do impacto social decorrente das consequências de estado de calamidade pública nos três âmbitos da federação. Esta é uma lei voltada à proteção de trabalhadores em grupo de risco e de áreas específicas dos entes federativos atingidos por estado de calamidade pública. Por meio de suas disposições, um conjunto de medidas trabalhistas alternativas como poderão ser adotadas, por empregados e empregadores, visando a preservação do emprego, a sustentabilidade do mercado de trabalho e o enfrentamento das consequências de estado de calamidade pública.
Advogada é especialista em desastres, meio ambiente e mudanças climáticas / Fernanda Damacena Assessoria e Consultoria Jurídica/Reprodução
O teletrabalho; a antecipação de férias individuais; a concessão de férias coletivas; o aproveitamento e a antecipação de feriados; o banco de horas; e a suspensão da exigibilidade dos recolhimentos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) são exemplos de alternativas. Em que pese a importância deste aprimoramento legislativo, algumas disposições dessa lei ainda precisam de regulamentação. Além disso, vale destacar que a importância de projetos de lei que, além de configurarem benefícios concedidos diretamente pelo Estado aos trabalhadores, se preocupem com o impacto que eventos extremos geram nos contratos de trabalho propriamente ditos como, por exemplo, o abono de faltas em caso de calamidade.
Para segurança jurídica de todos os envolvidos na relação de trabalho, direitos e deveres precisam ser expressamente previstos em propostas legislativas que versem sobre contrato de trabalho e situações de desastre.
Outro exemplo relevante é o da Lei nº 13.589/2018, que tornou obrigatória a implementação do Plano de Manutenção, Operação e Controle (PMOC) em todas as edificações que possuem sistemas de climatização, o que inclui tanto edifícios públicos quanto privados.
Essa lei é um embrião muito importante porque aborda algo fundamental daqui para a frente, que são as condições de saúde do trabalhador frente o esperado impacto das mudanças climáticas.
E, digo mais, as atuações frente a todas as fases de um desastre (prevenção, mitigação, preparação, resposta e recuperação) requerem regulação específica no que concerne à segurança e bem-estar de quem atua na linha de frente desses eventos. A Norma Regulamentadora nº 1 (NR 1) do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), atualizada em 2024, representa um passo a mais neste processo de evolução, pois estabelece a obrigatoriedade do Programa de Gerenciamento de Riscos (PGR), que visa antecipar, reconhecer, avaliar e controlar os riscos ocupacionais, incluindo aqueles associados a agentes físicos, químicos e biológicos no ambiente de trabalho, como a exposição à fumaça resultante de queimadas e temperaturas extremas, e estabelece que a identificação dos perigos deve abordar os perigos externos previsíveis relacionados ao trabalho que possam afetar a saúde e segurança no trabalho.
Ponto relevante a ser levado em consideração quando se pensa em direito dos trabalhadores diante de eventos climáticos extremos e desastres em geral é o da profissionalização. Pesquisa sobre os desafios da profissionalização em proteção e defesa civil realizada em 2022 trouxe os principais resultados da situação profissional dos agentes e coordenadores de defesa e proteção civil no Brasil, suas condições de trabalho e demandas de profissionalização na gestão de risco de desastres. Os resultados indicaram que a maioria dos (as) operadores (as) em proteção e defesa civil fazem um longo investimento na formação acadêmica: 63% tinham pelo menos o curso superior completo (42% com nível superior, 34% com ensino médio/técnico, 21% com pós-graduação e 3% com ensino fundamental). Observou-se também que a rotatividade nesses cargos é elevada, confirmando a percepção do profissional de que há risco para a permanência na função e para o retorno do investimento acadêmico, com 43% tendo até um ano na função atual, 37% tendo entre um e cinco anos, e 20% tendo mais de cinco anos. O perfil, além disso, informa que, do total de respondentes, 58% são servidores públicos efetivos e 42% têm outros tipos de vínculos, que tornam a posição mais insegura. A análise de editais de 51 concursos públicos realizados para agente de Defesa Civil no Brasil, entre janeiro de 2018 e julho de 2021, aponta que os investimentos na escolaridade oferecem baixo retorno salarial. Ao focar a escolaridade exigida para o cargo não se observa grande variação entre o valor mínimo e médio de remuneração dos agentes de proteção e defesa civil com ensino fundamental ou médio. A definição das atribuições dos agentes e coordenadores municipais de proteção e defesa civil também foi alvo do estudo.
O questionário aplicado com 1.344 operadores indagou sobre as concordâncias e discordâncias em relação a cada uma das 13 atribuições para agentes de proteção e defesa civil, e de uma lista de 20 atribuições para coordenadores. Nas respostas sobre as atribuições elencadas no questionário observou-se uma elevada padronização de opiniões, com 83,39% dos respondentes apresentando concordância total com 10 das 13 atribuições propostas para agentes, tais como: registrar formalmente ocorrências e dar o devido encaminhamento junto aos profissionais e órgãos responsáveis; atender ao público visando esclarecer dúvidas, receber solicitações, bem como realizar encaminhamentos aos demais órgãos, quando necessário. Sobre os coordenadores, houve 83,72% de concordância para 15 das 20 atribuições listadas, entre elas: articular-se com órgãos locais envolvidos em ações de proteção e defesa civil, com a população, bem como manter canal de comunicação com os mesmos; interagir com outros setores da prefeitura em período de normalidade para planejamento de ações preventivas; permanecer em contato com órgãos de monitoramento, alerta e alarme.
De acordo com ao artigo 18, parágrafo único da Lei nº 12.608/12, “os órgãos do SINPDEC adotarão, no âmbito de suas competências, as medidas pertinentes para assegurar a profissionalização e a qualificação, em caráter permanente, dos agentes públicos referidos no inciso III”. O inciso III trata dos “agentes públicos detentores de cargo, emprego ou função pública, civis ou militares, com atribuições relativas à prestação ou execução dos serviços de proteção e defesa civil”. Este artigo aguarda regulamentação desde 2012.
A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) prevê condutas específicas para casos de calamidade pública e condições climáticas?
A CLT não ampara especificamente o trabalhador afetado por desastres relacionados a eventos extremos. Isso ocorre porque essa lei foi idealizada para situação do dia a dia das relações de trabalho e contextos de normalidade, não para responder a situações típicas de riscos potencialmente catastróficos e desastres. Considerando os últimos acontecimentos e os prognósticos científicos envolvendo o clima, não resta dúvidas de que não estamos falando de uma lacuna legislativa qualquer.
Bairro Mathias Velho, Canoas, Região Metropolitana de Porto Alegre, em maio de 2025 / Gustavo Mansur/ Palácio Piratini
Logo, é possível e necessário que a lei mais importante em matéria de garantia de direitos dos trabalhadores inclua, de maneira técnica, detalhada e clara dispositivos específicos com orientações de conduta relativas a eventos climáticos extremos. Situações de emergência e calamidade seguirão impactando os contratos de trabalho dos empregados das empresas atingidas.
Seria possível que, no futuro, a legislação trabalhista brasileira incluísse dispositivos mais detalhados para tratar dessas situações?
O ideal seria inserir a variável ‘desastre’ em todas as suas espécies no corpo da CLT, pois ela orientaria as demais legislações sobre a matéria. Com este movimento, de uma vez se aumentaria o espectro de proteção e o nível de segurança jurídica para todos os envolvidos na relação de trabalho. Cabe lembrar que enquanto o ideal de legislação não chega, inúmeros dispositivos da CLT podem vir em socorro dos trabalhadores. O artigo 131, VI, que expressamente prevê: “não será considerada falta ao serviço, a ausência do trabalhador nos dias em que não tenha havido serviço, salvo na hipótese do inciso III do art. 133”.
Ainda assim, a falta de previsão legislativa ou de regulamentação trabalhista voltada a desastres alimenta a possibilidade de insegurança jurídica e de interpretações divergentes, o que não é bom para o trabalhador, nem para o empregador.
Importante, portanto, que o desenho de uma orientação legal geral a respeito de um conjunto de questões trabalhistas em matéria de gerenciamento de riscos e desastres parta da premissa da exequibilidade imediata e do conhecimento técnico básico a respeito do que é um risco de grandes proporções, um desastre, e a melhor forma de inserção desses conceitos nas relações de trabalho.
Todos os ramos do direito precisam se adaptar à realidade posta pelos eventos extremos e outros riscos potencialmente catastróficos. Importante que este processo de adaptação se dê em articulação com a ciência e as especificidades do direito dos desastres, que pontualmente trata de proteção e defesa civil no Brasil.
Embora Acordos Coletivos de Trabalho (ACT) e Convenções Coletivas de Trabalho (CCT) possam incluir cláusulas emergenciais para situações causadas por eventos climáticos extremos, como seria possível avançar para uma legislação trabalhista preventiva que aborde essas questões de forma mais segura para o trabalhador?
Considerando que prevenir é o melhor do que remediar, um avanço interessante seria o desenho de um plano de ação que envolva uma comunicação transparente e efetiva do empregador com os empregados, adoção de políticas que visem a saúde e segurança dos trabalhadores, flexibilização das rotinas de trabalho e a assistência, dentro do possível, aos trabalhadores afetados, tudo levando em consideração os riscos típicos do exercício da atividade econômica em questão e os prognósticos climáticos.
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Edição: Vivian Virissimo
Artigo original publicado em Brasil de Fato RS.