O escândalo da criptomoeda protagonizado pelo presidente da Argentina, Javier Milei, provocou a primeira grande crise no governo de extrema direita. Foram apresentadas dezenas de denúncias contra Milei e outros envolvidos, tanto na Argentina como nos Estados Unidos, e congressistas de oposição disseram que iniciariam um procedimento de impeachment por “criptofraude”.
Na noite de segunda-feira (17), Milei deu uma entrevista desastrosa à emissora argentina TN, na qual foi interrompido por seu assessor, Santiago Caputo, para evitar problemas judiciais no escândalo da criptomoeda. O presidente argentino se tornou alvo de uma investigação da Justiça Federal do país por promover a em suas redes sociais a criptomoeda $Libre, que colapsou horas após seu lançamento na última sexta-feira (14).
Milei apagou a mensagem pouco depois da postagem, tentando se desvincular da iniciativa. Nesse intervalo, a moeda aumentou exponencialmente de valor e os investidores originais a venderam com um lucro milionário. Em seguida, o valor da criptomoeda despencou.
A moeda movimentou, nesse intervalo, mais de US$ 4,5 bilhões de dólares (R$ 25,6 bilhões). Calcula-se que os investidores perderam cerca de US$ 250 milhões (R$ 1,42 bilhão) nesse vai e vem.
A criptomoeda $Libre, promovida pelo presidente, se revelou “uma fraude”, afirma o economista argentino Ramon Fernandez, professor titular no Centro de Engenharia e Ciências Sociais (CECS) da Universidade Federal do ABC (UFABC).
“Um grupo pequeno de proprietários iniciais desse ativo ganhou algo entre US$ 100 milhões e US$ 200 milhões em questão de horas, e um número mais amplo de pessoas, na grande maioria seguidores de Milei, perdeu essa quantidade. Ocorreu uma transferência de renda entre seus seguidores e muitos foram feitos de trouxas por acreditarem no presidente”, explicou ao Brasil de Fato.
Apesar de considerar um escândalo inédito “até para os incríveis padrões do Milei”, Fernandez considera que não terá graves efeitos políticos ou mesmo judiciais para o presidente. “As elites argentinas se convenceram de que Milei tem a capacidade de fazer uma série de reformas neoliberais com um apoio que mais ninguém conseguiria. Por isso, apesar de suas loucuras, continua contando com apoio para todas as coisas relevantes; inclusive neste caso a punição será uma pequena ‘bronca’, mas sem pensar em coisas como impeachment, julgamento sério etc.”, analisa.
Fernandez considera que o principal estrago desse escândalo para Milei será na área econômica, uma vez que a Argentina precisa conseguir recursos internacionais, especialmente do Fundo Monetário Internacional (FMI), para manter sua agenda econômica e controlar a inflação, principal promessa de sua campanha. “No FMI já havia uma séria reticência da burocracia por emprestar dinheiro que só servirá para manter o dólar barato até as eleições torrando essas reservas. A esperança de Milei é que o Trump compre essa briga.
Cenário político
Os deputados da coalizão opositora União pela Pátria (peronismo) anunciaram que irão liderar um processo de impeachment contra o presidente, embora estejam longe de ter os votos necessários para que a iniciativa vá em frente. O principal fiador político de Milei continua sendo o ex-presidente neoliberal Mauricio Macri (2015-2019), que dá sustentação à base governista no Congresso argentino com seu partido PRO.
O partido de Macri classificou o caso como “muito grave” e avaliou que “impactou na credibilidade do país”. No entanto, rejeitou apoiar o impeachment “nesta instância”.”Claramente, o presidente ficou no meio de uma fraude para muita gente e isso merece uma investigação muito séria”, disse Macri.
“Basta ver o comunicado do PRO, o partido de Macri, e o tom das críticas de [jornais como] Clarin ou La Nación: nada pode atrapalhar o desmonte do Estado e as reformas que o Milei está levando a cabo. Lembre-se que o Judiciário argentino está totalmente controlado por esse grupo, é o ‘braço armado’ do macrismo. Moro seria um aprendiz na Argentina”, diz Fernandez.
O presidente do bloco de deputados do Encontro Federal, Miguel Ángel Pichetto, afirmou nesta terça (18) que o caso da criptomoeda $Libre é um “dano autoinfligido” pelo próprio governo e argumentou que, para superar esse fato, algum colaborador de Javier Milei “deve renunciar” para “preservar a imagem do próprio presidente”.
“Chegou o momento em que é essencial jogar o lastro ao mar. O que isso significa? Algum colaborador importante do presidente tem que deixar o Governo, tem que assumir as responsabilidades para preservar a imagem do próprio Presidente. Ele tem que renunciar”, enfatizou o legislador.
Investigação
O juizado federal 1, sob a responsabilidade da magistrada María Servini, foi designado na segunda-feira (17) para centralizar as denúncias que pedem para apurar se Milei cometeu associação criminosa, fraude e violação dos deveres de funcionário público, entre outros crimes. Para Fernandez, apesar de um grupo de pessoas próximas ao presidente, com frequente acesso à Casa Rosada, estar por trás do lançamento dessa criptomoeda, “fica difícil saber se o presidente ganhou algo pessoalmente, ou se só os amigos dele levantaram essa bolada”.
“Sabe-se que o presidente, antes de assumir o cargo, dava aulas e consultoria em atividades vinculadas com esse grupo, ganhando muito bem. Surgiu também a denúncia de que assessores muito próximos dele vendiam para empresários dos setores de TI, IA, criptoativos etc., entrevistas com o presidente por pequenas fortunas.”
Entrevista desastrosa
Em entrevista para o canal argentino TN , publicada na noite de segunda-feira (17), Milei que disse ter agido “de boa fé” ao dar publicidade à criptomoeda. “Eu não o promovi, eu o divulguei”, disse
O presidente afirmou que as pessoas que investem em criptoativos “sabiam muito bem o risco do que estavam fazendo”, como alguém que vai “a um cassino”. “Um cassino onde as máquinas são manipuladas pelo dono”, ironizou Smaldone sobre a metáfora.
Um trecho editado da entrevista viralizou nas redes e gerou mais controvérsia, porque o presidente e o jornalista comentam de forma irônica que as perguntas foram preparadas de antemão. Pouco depois, o jornalista mudou uma pergunta a pedido dos assessores de Milei, após notar que o questionamento poderia gerar um “problema judicial” para o presidente.
*Com AFP e Página 12