Tenho vivido muitas experiências e tido pouco tempo para escrever sobre elas.
Mas resolvi voltar aqui e fazer o que fazem os escritores: contar sobre o que vivo e esperar que isso ressoe em vocês de alguma forma.
Minha última vivência intensa se deu agora, no começo de fevereiro. E descarregou um caminhão de memórias na terra fértil da minha esperança.
O ano era 1998 e eu tinha, então, 12 anos de idade. E num mundo que me empurrou referências estéticas e sociais como Xuxa, Eliana, Madonna e Britney Spears, foi nesse momento que eu soube da existência da Shakira. Ao lançar Pies Descalzos dois anos antes, ela despontou no meu universo como uma ilha colombiana em um mar de mulheres de parões europeus.
Lembro que pela primeira vez que a vi, me identifiquei de imediato. A partir daquele dia eu queria ser como ela: meio latina, meio árabe, de longos cabelos escuros e quadris largos. Uma voz marcante e um olhar enviesado que penetram assim na gente, sabe? Como se diz hoje em dia: ela tem o molho. Ela, que já beira os 50 anos de vida e quase 30 de carreira, tem feito muito em nome de uma revolução feminista latino-americana.
Ela veio ao Brasil cinco vezes, e somente na terceira eu tive a oportunidade de assistí-la, no estacionamento da Fiergs em Porto Alegre, em 2011, quando já era um sucesso.
Mas a Shakira hoje é um fenômeno incomparável.
Ela, e seus quadris – que não mentem – têm uma potência capaz de articular uma revolução estrondosa na América Latina.
Sua última turnê iniciou no Brasil, especificamente no RJ, com o álbum que lhe rendeu um Grammy – Las Mujeres Ya No Lloram, tem feito um chamado de empoderamento. E por mais que eu realmente odeie essa palavra, eu não tenho outra para usar no lugar. Isso porque ela está chamando as mulheres latino-americanas para que elas sejam protagonistas das suas próprias vidas.
Shakira é a nossa referência de princesa de conto de fadas. Passou de conhecida para famosa, se casou, construiu uma família maravilhosa, teve filhos e assim como um sem número de mulheres, também sofreu as dores de uma traição e foi vítima de um sistema que coloca uma mulher contra a outra. Que coloca os homens numa posição de superioridade e do alto dessa posição se sentem no direito de enganar, de trair, de mentir. De invejar, muitas vezes. Sem haver reparação nenhuma de sua parte.
Para além da comoção da geleia, eu acho que o mais simbólico que ela fez foi mandar retirar uma árvore do pátio da casa que ela morava com o ex-marido, num gesto transparente de “não manterei minhas raízes aqui".
Em algum momento, todas nós nos identificamos com Shakira. Acho que é impossível encontrar uma mulher que não tenha uma história de traição para contar. Mas a gente não é os nossos traumas, e embora sejam parte da nossa história, no fim das contas o importante é o que a gente faz com eles. E ao elaborar seu trauma, Shakira nos permite uma cura coletiva.
Não é a primeira vez que a cantora faz dessas. Ali pelos meus 15, 16 anos, foi ela que me despertou as primeiras reflexões sobre como as mulheres são injustiçadas pelo sistema. Em Se Quiere, Se Mata ela cantava a história de uma menina que se envolvia com o vizinho, engravidava, era expulsa de casa, fazia um aborto e morria em decorrência dele. Em 1995 ela usou seu espaço para apontar o quão injusto é que as mulheres morram em decorrência de abortos clandestinos, e como os homens conseguem tranquilamente seguir suas vidas, lavando sua consciência no nosso sangue, como se isso não fosse um problema deles.
Agora, ela vem novamente com um novo álbum, que explode em revolução. Sua turnê tem sido uma construção coletiva. Como um abraço afetuoso entre amigas de muito tempo. Como aquele espaço seguro que se constrói na irmandade entre as mulheres.
Ela interage com as fãs pelas redes socias e pessoalmente. Ela fala de si, aconselha, explica dificuldades que geraram os atrasos, como foi no show de São Paulo. Ela é cuidadosa, tem energia, e transita entre o pop e os ritmos mais quentes, árabes e latinos, com uma naturalidade ímpar. Ela realmente joga pra torcida: quis saber antes o que a gente queria escutar na turnê. E ela tocou e cantou, tomando a liberdade de alterar suas próprias letras para não ficar em posição de submissão a ninguém. Ela sabe que quando a gente repete algo a gente dá força pra isso. Ela é ciente que existe uma revolução que precisa ser feita: que o futuro é feminista, não-branco e latino-americano. Assim como ela. Assim como nós.
Na turnê Las Mujeres Ya No Lloran a sua história mais dolorida foi transformada num enorme sucesso. Na plateia, quase 70 mil pessoas e nós mulheres brasileiras, cubanas, colombianas, argentinas, uruguaias, peruanas, bolivianas, dominicanas, mexicanas, caribenhas… todas que nos reconhecemos na voz dela. Quando ela se levanta e nos convida a não mais chorar, Shakira está movimentando milhares de pessoas, de sentimentos e de dólares. Sim. Ela faz chover dinheiro sobre nossas cabeças. Literalmente.
Uma amiga minha, poeta também, a Nanda, me ensinou que a força dos quadris move o mundo. E se tem uma coisa que as mulheres tem, é remelexo. É rebolado. Capacidade de executar a tripla jornada. Cuidar dos filhos, trabalhar, resistir, criar. Essa posição dá, sim, vontade de chorar por muitas vezes. E a nossa colombiana vem enxugar nossas lágrimas com notas de dinheiro impressas com seu prórpio rosto. Seu lembrete é: transforme sua dor em ganho, pois somos nós, as mulheres que giram as engrenagens capitalistas. E podemos fazer isso em nosso próprio benefício.
Numa época de estética claen girl e de movimentos de trad wifes, a Shakira vem incendiando o patriarcado com a volúpia dos seus quadris.
E só ela seria capaz de fazer isso: unificar as mulheres da América Latina, ao dizer, meninas, a gente não vai mais chorar. Toda vez que a vida nos sacanear, toda vez que um homem nos enganar, a gente vai é fazer dinheiro. Porque ela entende que o empoderamento financeiro é, sem dúvida, um grande passo de autonomia para as mulheres. Dinheiro é acesso, infelizmente, num sistema capitalista que explora a nossa força de trabalho dobrado. E foi a essa estrutura que ela lançou seu olhar enviesado. Empunhou suas facas e lançou fogo ao seu redor. Olhou no grão do olho da dor, bancou seus desejos e disse: faço isso por mim e por nós.
A deusa Loba esteve entre nós, nos deixou os dez mandamentos das alcateias e nos conduziu, entre uivos na lua cheia, a um passo a mais na liberdade que tanto almejamos. Más buenas, más duras, más leves, seguiremos em busca de uma América Latina de pies descalzos.