O Litoral Norte do Rio Grande do Sul virou um território em disputa, de um lado, o avanço do capital expresso principalmente na especulação imobiliária, que atua desenfreadamente, de ocupação e exploração máxima do território, do solo e dos demais bens comuns como a água. Como se não houvessem limites, uma aceleração do fim do mundo, como se estivessem em alguma realidade distópica, ignorante à gravidade socioambiental do atual contexto planetário. Do outro lado, a resistência de quem vive a sua existência junto ao território, onde os bens comuns como a terra, o ar e a água são abundantes e fundamentais, como os povos originários, que estão aqui há milhares de anos, as comunidades tradicionais que há séculos ocupam essa terra, como os quilombolas, os pescadores artesanais e demais nativos como os agricultores e pecuaristas familiares, os artesãos, os ribeirinhos e os marisqueiros. E comunidades de trabalhadores que constroem a sua vida há décadas e séculos, com relação com os diversos ambientes litorâneos, desde o Planalto com o predomínio florestal da Mata Atlântica, à Planície Costeira, com a presença marcante dos ecossistemas aquáticos: lagoas, rios e mar.
O projeto de desenvolvimento proposto pela especulação imobiliária, capitaneado pelos condomínios horizontais fechados de luxo, murados, os “feudos modernos”, e pela verticalização dos espigões de concreto nas beiras das praias, coloca em risco os modos de vida dessas populações. Assim como trazem inúmeras consequências ambientais, econômicas e sociais, pois o número de ocupações por moradia só crescem em todo Litoral, estão entre as maiores do estado, como a Ocupação Vila Verde nas praias de Atlântida Sul e Mariápolis no município de Osório, na divisa com Xangri-lá, a “capital dos condomínios”. Por isso, essa demanda da especulação imobiliária não é para resolver o problema das milhares de famílias que não têm casa, mas para especular, esquentar recursos através da lavagem de dinheiro, garantir o lucro milionário e até bilionário de poucos. O avanço sem limites da especulação imobiliária no Litoral Norte representa a insustentabilidade ambiental e social, já que há aumento da exclusão e da segregação social e racial, uma barreira visível, representada pelos muros e que na prática reforça a desigualdade social.
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Na rodovia Estrada do Mar (RS 389), entre Capão da Canoa e Atlântida Sul/Osório, um “mar” de condomínios fechados sem limites, não há mais áreas e espaços vazios entre eles, nos dois lados da estrada. Provocam profundas alterações na paisagem, destruição das dunas e dos banhados que são Áreas de Preservação Permanente (APP), localizados de costas para o mar, murados para a biodiversidade, já que não há mais passagens para a fauna e flora, interrompendo o fluxo gênico e os corredores ecológicos. Colocando em ameaça dezenas de espécies de animais e plantas, criando barreiras intransponíveis, destruição dos habitats, além da introdução de espécies exóticas, já que toda a jardinagem e paisagismo são feitos com espécies de fora, exógenas do local.
O projeto do emissário da Aegea/Corsan ─ empresa privada, fruto da privatização e entrega do patrimônio público do povo gaúcho ─ que está em construção e que projeta despejar esgoto tratado e não-tratado de Xangri-lá e Capão, “meca da especulação imobiliária no Litoral”, no rio Tramandaí, precisa ser analisado neste contexto. Inclusive foi comemorado pelos gestores públicos, que são representantes dos interesses privados das construtoras, como o último entrave para que não haja mais limites para a especulação imobiliária na região. O emissário será o segundo que coloca o esgoto tratado no rio principal da Bacia Hidrográfica do Rio Tramandaí, já que o condomínio fechado de Atlântida Sul já despeja no curso d ‘água.
Segundo os dados alardeados em relação ao emissário de Xangri-lá, haveria uma eficiência de até 95% de tratamento do esgoto. Isso acontece quando o sistema não está sobrecarregado, ao contrário do que acontece no veraneio, quando essa eficiência diminui muito, ou em épocas das chuvas. Além disso, o esgoto não é tratado na sua totalidade, assim como inúmeros contaminantes como metais pesados, agrotóxicos, medicamentos, cosméticos, antibióticos, cafeína, cocaína não são tratados em uma Estação de Tratamento de Esgoto (ETE), que são lançados na água. Que se bioacumulam nas cadeias alimentares e sua concentração aumenta nos níveis tróficos superiores como os animais carnívoros de topo de cadeia, estes recebem as maiores quantidades ao longo do tempo, como no caso do ser humano no consumo dos peixes. Importante ressaltar que há elementos semelhantes em relação aos impactos socioambientais que paralisou a ETE de Osório em relação ao destino dos efluentes na Lagoa dos Barros em Osório e Santo Antônio da Patrulha, atualmente em funcionamento, sem licenciamento e com inúmeras ilegalidades.
Essa contaminação também compromete os ecossistemas associados ao rio, como os banhados e várzeas do entorno. Como toda a biodiversidade, animais e plantas, presente até a foz do rio Tramandaí, atingindo os territórios dos municípios de Osório e abaixo como Tramandaí, Imbé, Cidreira, já que há um complexo lagunar que interliga as lagoas da região. E toda a sociobiodiversidade expressa nas comunidades tradicionais como os pescadores artesanais, quilombolas e indígenas, que vivem do território e têm o rio e a bacia hidrográfica como essência de sua existência, de sobrevivência e de seus modos de vida.
O projeto reproduz e é um exemplo clássico de racismo ambiental. O “Mapa de Conflitos Envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil”, realizado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), revela que empreendimentos de alto impacto e de riscos ambientais sempre são feitos em periferias, municípios rurais pobres, comunidades indígenas, quilombolas e tradicionais. Se os danos são causados pelo topo da pirâmide numa escala global, de forma ainda mais grave, as empresas altamente poluidoras fazem processos incorretos de licenciamento e suas medidas de reparo e segurança tardam a serem apresentadas. A ativista negra Stephanie Ribeiro, na coluna no Portal Geledés, fala da discriminação racial no direcionamento deliberado de instalações de resíduos tóxicos e perigosos próximas de comunidades indígenas ou periféricas em todos os estados do país, como se a lei não fosse igual para todos.
Se não há problemas em relação ao esgoto tratado e não-tratado, que seja usado na irrigação dos jardins dos condomínios fechados, ou se não há nada relacionado com os contaminantes emergentes nos efluentes, que se utilize nos canais de água privados, já que são usados como paisagismo e navegação interna, ao mesmo tempo pouparia milhões de litros de água potável limpa. Quem os responsáveis pelo problema, os mais ricos que são os causadores, sejam responsáveis (e paguem) pela solução, mas não jogar o problema para as comunidades mais vulneráveis, para o rio Tramandaí e toda a sua bacia hidrográfica. Esta situação absurda jamais iria se fosse o contrário, efluentes de esgoto de Osório, Imbé e Tramandaí sendo jogados em Xangri-lá e Capão da Canoa, em território dos condomínios fechados de luxo.
Na semana retrasada, Ministério Público Federal (MPF) e Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS) entraram com uma ação civil pública pedindo que a Justiça Federal anule a licença prévia que autoriza o lançamento de efluentes tratados no curso do rio Tramandaí. A ação acolhe um requerimento feito em agosto de 2024 pelo Movimento Unificado em Defesa do Litoral Norte (MOVLN), que pedia a suspensão imediata da construção do emissário lagunar de efluentes dos municípios de Capão da Canoa e de Xangri-lá para despejo na bacia hidrográfica do Rio Tramandaí. Novos estudos, ainda preliminares, realizados pela perícia técnica do MPF, apontaram que faltam dados sobre qualidade da água, entre outros aspectos, o que compromete a confiabilidade da proposta. Além da anulação da licença prévia e de instalação para alteração, MPF e MPRS pedem que a Fepam faça nova análise do empreendimento proposto pela Corsan. A análise deve considerar a elaboração de Estudo de Impacto Ambiental (EIA/Rima) com a realização de audiências públicas que permitam a participação da população local, dos municípios afetados, das comunidades indígenas e das populações ribeirinhas que vivem da pesca artesanal.
Estas e outras questões que não foram debatidas antes, de forma pública e transparente, e não aparecem na frágil, insuficiente e incompleta licença concedida pela Fepam, questionada pelo MOVLN e demais setores da sociedade civil organizada. Por isso, até o momento duas audiências públicas foram realizadas, a primeira em agosto de no passado em Imbé, que lotou a Câmara de Vereadores, e na semana passada, segunda-feira, dia 10, mais de 650 pessoas lotaram a segunda, que foi realizada em Tramandaí. Outras audiências públicas, construídas e mobilizadas pelo MOVLN, seus diversos parceiros, organizações como a Associação dos Amigos da Bacia Hidrográfica do Rio Tramandaí (AABHRT), acontecerão em Osório e Capão da Canoa (datas a serem definidas). Além da mobilização, as informações precisam chegar nas populações atingidas, ao contrário da omissão e das propagandas enganosas oficiais.
Portanto, a mobilização através de atos, protestos, ações de rua e nas redes sociais, e as audiências públicas foram essenciais e fundamentais até o momento. Somente através dessa pressão e resistência populares, conseguiram vencer esta batalha contra este projeto de racismo ambiental, de lucros privados e prejuízos socializados, como parte das demais batalhas necessárias em defesa da vida, das populações, de toda a sociobiodiversidade, da bacia hidrográfica do Rio Tramandaí e todo o Litoral Norte do Rio Grande do Sul.
* Professor da rede pública estadual, biólogo, especialista em Meio Ambiente e Biodiversidade (UERGS), mestre em Desenvolvimento Rural (PGDR-UFRGS) e doutorando em Educação (UERGS). Membro do Movimento Unificado em Defesa do Litoral Norte (MOVLN).
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
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