Nas últimas duas semanas, o governo da Venezuela tem feito denúncias sistemáticas à participação da Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional (USAid) na política venezuelana. Financiamento da oposição e articulação em tentativas de golpe foram algumas das práticas apontadas por Caracas como os objetivos da agência estadunidense.
Dentre as últimas acusações, o presidente Nicolás Maduro afirmou na segunda-feira (17) que o órgão pagou mais de US$ 5 bilhões (R$ 28,4 bilhões) para líderes opositores nos últimos anos. De acordo com ele, a ideia seria planejar ataques violentos em todo o país.
Antes, o presidente Nicolás Maduro e o ministro do Interior, Diosdado Cabello, já haviam denunciado outras interferências recentes. O governo afirma, por exemplo, que a USAid financiou as primárias que tiveram como vencedora a ultraliberal María Corina Machado em 2023.
Outra acusação recente feita pelo governo venezuelano fala sobre o pagamento para os ex-deputados, Juan Guaidó, Carlos Paparoni e Lester Toledo, o líder opositor Leopoldo Lopez, e o coordenador político do partido Voluntad Popular, Carlos Vecchio. De acordo com o governo venezuelano, só Guaidó teria recebido quase US$ 5 bilhões (R$ 28,4 bilhões) da USAid.
Tanto Maduro como Rodríguez e Cabello não apresentaram provas das denúncias, mas engrossaram o coro a uma série de acusações feitas contra a atuação política da agência desde que o governo de Donald Trump anunciou o fechamento do órgão. A USAid tem como missão fornecer recursos financeiros a outros países em forma de ajuda humanitária e projetos de desenvolvimento.
As operações da agência foram suspensas por 90 dias com a alegação de reduzir gastos públicos. A política de Trump foi chamada de “reavaliar e realinhar a ajuda externa dos EUA”. O novo secretário do Departamento de Estado, Marco Rubio, é responsável pela USAid e afirmou que a agência, em muitos casos, participa de programas que “vão contra” o que o governo de Trump tenta fazer como estratégia nacional.
As acusações de Caracas vieram depois do anúncio feito pela Casa Branca. Em seu site, a USAid afirma que foram destinados cerca de US$ 1,9 bilhão (R$ 10,8 bilhões) entre 2017 e 2014 para organizações venezuelanas de ajuda humanitária. Já o Departamento de Estado informa ter destinado outros US$ 1,7 bilhão (R$ 9,6 bilhões) para o país. De acordo com o Caracas, cerca de US$ 700 milhões (R$ 3.9 bilhões) foram desviados desse montante diretamente para opositores, sem nenhum impacto em ajuda humanitária.
Apesar de não estar claro ainda quais são as últimas relações entre os opositores e a USAid, a agência anunciou em 2019 o montante de US$ 52 milhões (R$ 296 milhões) para a oposição venezuelana liderada então por Guaidó. A ideia era “mostrar apoio adicional à pressão que o deputado exercia sobre o governo de Nicolás Maduro”.
O financiamento era voltado, segundo a própria USAid, para veículos independentes, sociedade civil, o setor de saúde e a Assembleia Nacional que, naquele momento, tinha maioria de opositores.
Algumas agências de notícias e jornais indicaram neste mesmo período uma movimentação atípica nas atuações de líderes de extrema direita. Em 2021, o jornal Washington Post revelou que uma série de funcionários próximos a Guaidó estavam envolvidos em contratos fraudulentos relacionados à gestão de ativos venezuelanos fora do país e, especialmente, nos Estados Unidos.
Na época, a Casa Branca reconheceu Guaidó e a oposição como detentora de uma série de bens do Estado venezuelano, incluindo a operadora petroleira Citgo. Segundo a publicação, Javier Troconis foi indicado por Guaidó como responsável pela gestão dos ativos. O jornal apurou que a inteligência dos EUA identificaram uma série de atos de corrupção que poderiam chegar a US$ 40 milhões (R$ 227 milhões) em desvios.
Ele teria recebido uma lista com “demandas chocantes” que incluia o pagamento de US$ 750 mil (R$ 4,2 bilhões) adiantados para uma empresa na Flórida que era do irmão de um funcionário da embaixada venezuelana em Washington, que, naquele momento, estava sendo administrada por Guaidó.
A agência de notícias suíça Swissinfo publicou em janeiro de 2023 que o governo autoproclamado de Guaidó havia gasto aproximadamente US$ 150 milhões (854 milhões) em dinheiro público. O próprio opositor reconheceu que esses gastos foram aprovados pela Assembleia Nacional, de maioria opositora. A origem do montante, no entanto, não foi divulgada nem pelo próprio Legislativo venezuelano, à época de maioria opositora, nem pelo grupo opositor.
O pesquisador Ernesto Cazal investiga a participação dos EUA na América Latina no grupo Missão Verdade. Ele afirma que essa reestruturação na USAid representa uma adequação à política de Trump, o que pode ter um impacto ainda mais forte para grupos opositores da extrema direita venezuelana.
“Trump acaba fazendo uma reestruturação, não se trata de um fechamento. Rubio disse que a intenção dessa reestruturação é canalizar melhor os fluxos de financiamento de logística da agência para os interesses da política exterior dos EUA. A política de Trump tem um projeto político próprio que é diferente das anteriores, de reavaliar a posição dos EUA no mundo e se adapta para levar a cabo a política de fazer os EUA primeiro. A USAid entra nisso”, afirmou ao Brasil de Fato.
Ele afirma que a USAid não é a única ferramenta de interferência estrangeira dos Estados Unidos. Há também a Dotação Nacional para a Democracia (NED) e o Instituto Republicano Internacional (IRI), que beneficiaram a oposição venezuelana. Cazal completa ainda que há empresas privadas que também têm um papel-chave nesse financiamento da oposição venezuelana.
“Essa influência dos EUA na logística e apoio a oposição tem como pano de fundo a postura dos Estados Unidos e os interesses de impor uma agenda na Venezuela. Mas não é um apoio só, é um exercício de engenharia política estadunidense. Os impactos políticos foram prejudiciais para a Venezuela. Isso levou a um marco de enfrentamento direto e violento no país.
Não é de hoje
As acusações recentes ainda devem ser comprovadas, mas a agência tem uma larga trajetória de interferência política na Venezuela. O Escritório de Iniciativas de Transição (OTI) da USAid atuou junto com a embaixada dos EUA em Caracas e a oposição no golpe contra o ex-presidente Hugo Chávez em 2002.
Em um documento desclassificado pelo Departamento de Estado de julho de 2002, o então embaixador William Brownfield nega uma participação direta no golpe, mas afirma ter se reunido com a OTI e a oposição venezuelana nos dias anteriores ao golpe de abril. Outro agente importante dessa participação é o NED. A organização não-governamental é financiada diretamente pela USAid e ajudou naquele momento na capacitação de opositores.
A OTI foi instalada em Caracas um mês antes do golpe, em 11 de abril de 2002. O objetivo era “estudar o atual entorno político-social da Venezuela e identificar outras possíveis oportunidades de programas para que os Estados Unidos apoiassem processos democráticos”.
Segundo a própria agência, a OTI foi criada com a ideia de ter um fundo flexível de pequenos pagamentos, de desembolso rápido e dotado de US$ 1 milhão, “capaz de responder à rápida evolução da situação política na Venezuela”.
Durante o golpe, o presidente do Instituto Republicano Internacional (IRI), George A. Folsom, afirmou que trabalharia em conjunto com organizações parceiras na Venezuela. O instituto recebe dinheiro diretamente da USAid e afirma, em sua página, que atua na Venezuela, há mais de uma década, para “proteger o espaço democrático, promover a participação cívica e apoiar aqueles que desejam mudanças pacíficas”.
A presença no golpe contra o ex-presidente, no entanto, foi apenas um dos primeiros passos da USAid na Venezuela. Mais tarde, em agosto de 2006, o Los Angeles Times afirmou que a OTI enviou mais de US$ 220 milhões desde 2002 para programas na Venezuela, destinados em mais de 220 pequenas doações. O montante seria destinado a “Iniciativa de Fomento da Confiança da USAid na Venezuela”.
Se a USAid teve participação no financiamento opositor, o governo estadunidense chegou a participar de maneira ativa na política venezuelana. Documentos vazados pelo Wikileaks revelaram que, em 2006, o então embaixador dos EUA em Caracas, William Brownfield, enviou um telegrama para outras embaixadas e para o Comando Sul dos EUA, sediado em Miami, afirmando que, desde 2004, desempenhava uma tarefa na Venezuela com 5 objetivos: Fortalecer as instituições democráticas; penetrar na base política de Chávez; dividir o chavismo; proteger os negócios vitais dos EUA.; e isolar Chávez internacionalmente.
Um dos grupos que recebeu financiamento estadunidense foi a ONG Sumate, liderada pela ex-deputada ultraliberal María Corina Machado. Os documentos do WikiLeaks mostram que a própria embaixada dos EUA questionava a estratégia deste grupo de deslegitimar, já naquela época, o sistema eleitoral. De acordo com a diplomacia estadunidense, isso teria prejudicado a própria oposição nas eleições legislativas de 2005, quando a oposição realizou um boicote que deu o controle da Assembleia para o chavismo..
A mesma embaixada estadunidense pediu em 2009, de acordo com documentos do WikiLeaks, pediu um aumento dos recursos a OTI para programas “vitais para preservar e fortalecer as instituições e práticas democráticas que persistem na Venezuela”, segundo o então encarregado de negócios John Caufield. Chávez determinou a expulsão da OTI da Venezuela em setembro de 2010, acusando o grupo de financiar atividades de desestabilização no país.
De 2014 a 2024, a Venezuela foi o sexto país da América Latina a receber mais dinheiro da USAid. Nesse período, o montante foi multiplicado em 26 vezes e passou de US$ 8 milhões há 10 anos atrás para US$ 211 milhões no ano passado. Esse valor aumentou para US$ 73 milhões em 2019, ano em que os Estados Unidos apoiaram Guaidó como presidente autoproclamado. Um ano depois, em 2020, as contribuições de várias agências federais dos EUA, mas principalmente da USAID, aumentaram para US$ 163,3 milhões. Em 2021, subiram para US$ 197,6 milhões e, em 2022, para 209,4 milhões.
Proteção venezuelana
Para se proteger, o governo da Venezuela tem discutido uma forma de regular principalmente o financiamento de organizações não governamentais. A principal delas é a lei das ONGs. O texto determina uma nova orientação para a criação e atuação de organizações sem fins lucrativos em território venezuelano. O principal critério é a prestação de contas sobre financiamento externo.
De acordo com a lei, as organizações têm o dever de “notificar o órgão competente sobre os financiamentos ou doações que serão recebidos, a fim de garantir a legalidade dos recursos”, assim como explicar se o seu financiamento é ou será realizado “total ou parcialmente através de pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras”
Outra determinação que a lei traz é a classificação para uma ONG. São entendidas como organizações sem fim lucrativo qualquer “grupo de pessoas de natureza privada, constituído com finalidade caritativa, social, altruísta, humanitária, artística, comunitária, cultural, educativa, desportiva, ambiental ou similar, cujo objeto não esteja orientado para a obtenção de fins econômicos, nem para fins partidários”.
Cazal afirma que essa é uma medida importante para o governo venezuelano evitar e fiscalizar ações que tenham esse tipo de objetivo: financiar atuações políticas na Venezuela.
“A Venezuela tem se protegido disso cada vez mais. A discussão é fiscalizar isso por meio da lei das ONGs, que deveria ser o marco para evitar esse tipo de atuação. É uma lei que vai permitir ao Estado e às unidades de fiscalização regular essas organizações. Nesse sentido, os partidos de apoio do governo têm feito uma tarefa própria para combater isso”, afirmou.