A comunidade do Passo dos Negros, em Pelotas (RS), receberá um novo espaço de compartilhamento de saberes, valorização e aprendizado da cultura local. No próximo sábado (22) será inaugurada a Biblioteca Comunitária batizada de Maria Helena Vargas da Silveira, em homenagem à poetisa negra, pelotense, musicista e pedagoga.
A iniciativa é protagonizada por Eliane Barcelos, pedagoga com habilitação em educação especial no município. Foi na casa dela que surgiu a ONG Centro de Educação, Esporte, Cultura e Lazer, mas chamada carinhosamente por ela e pelos moradores da comunidade de ONG Cuidando de Nós. O projeto funcionou durante muito tempo na casa de Eliane como um centro de educação, que agora se expande para a abertura da biblioteca.
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Eliane explica que a motivação para a abertura da biblioteca acontece a fim de buscar uma vida mais digna aos moradores do Passo dos Negros. Ela destaca que o local carece de uma assistência de qualidade do Estado, fortalecida pelas fortes pressões da exploração imobiliária na região. “E por que essa biblioteca? Devido à carência dos nossos alunos, à falta de leitura, ao vocabulário restrito e uma não perspectiva de um futuro maior, que nos entrega dignidade. Resolvemos, então, implementar essa biblioteca”, justifica Eliane ao escancarar a falta de perspectivas dos moradores de uma das regiões fundadoras de Pelotas.
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Eliane conta que a referência de Maria Elena Vargas da Silveira é tida como um potencializador dos aspectos culturais da região que atualmente encontram-se adormecidos. “As pessoas que moram aqui dentro nem sabem da riqueza cultural (do Passo dos Negros)”, destaca ao anunciar as propostas que a biblioteca visa contemplar. De acordo com ela, o objetivo é apresentar às crianças os mais diversos tipos de literatura, como o cordel, o conto e o poema, “para que eles possam conhecer livros de fato, manusear essa cultura, receber jornais”.
Mais do que um espaço de leitura, a biblioteca tem o compromisso de valorizar a cultura do Passo dos Negros e firmar o compromisso de contribuir para a formação de jovens mais conscientes sobre o local onde moram e críticos sobre o espaço que ocupam na sociedade. Segundo Eliane, além da “leitura formal”, em referência ao modelo tradicional de aprendizagem, ela destaca o ensino da história informal, que é aquela não documentada nos livros didáticos e que pode ser ensinada somente através do compartilhamento daqueles que habitam a comunidade.
O Passo dos Negros fica às margens da rio São Gonçalo, há cerca de seis quilômetros do centro da cidade, sem acesso direto ao transporte público. O território é construído de histórias, narrativas e memórias de um povo ancestral que resiste ao tempo e às tentativas de apagamento, como destaca Eliane. “O apagamento da nossa história vem sendo realizado constantemente. Existe a mudança de nome de ruas daqui. O corredor das tropas, que é ancestral e tem ligação com o corredor de tropeiros de São Paulo, que era uma costa marítima, simplesmente tiraram este nome.”
Como forma de manter viva a história da região e promover meios para valorizar a seus moradores, a biblioteca nasce como um “ponto de cultura e um ponto de resistência”, nas palavras de Eliane. Ela também enaltece o potencial de troca de experiências da biblioteca, uma vez que “os mais velhos possam contar a sua trajetória, as suas vivências e seus saberes, passar para os mais novos”, enquanto as novas gerações possam adentrar a biblioteca para “saber a sua história, valorizar a sua história, toda a potencialidade e servir em projetos culturais dentro da própria comunidade”.
Atualmente a biblioteca já está em funcionamento para a comunidade como um “espaço multifuncional”, porém, nos fundos da casa de Eliane. A sua criação ressalta a importância da existência de lugares de acolhimento didático nas regiões mais afastadas, e contribui para contornar o afastamento de crianças e adolescentes dos espaços de compartilhamento de saber. Eliane conta que “crianças da comunidade não conhecem a Biblioteca Pública da cidade de Pelotas devido ao acesso ser dificultado”. Ela destaca que um dos fatores que contribui para isso é a dificuldade de deslocamento, agravada pela falta de transporte público na comunidade. “Aquele prédio imponente [da Biblioteca Pública] faz sentir medo, e a proposta não é essa. A proposta é vivenciar todos os espaços da cidade”, ao justificar a importância de se ter um espaço dentro da comunidade que possibilite ampliar a visão de mundo de seus moradores.
Para além da preservação cultural, algo bastante marcante nas palavras de Eliane é a necessidade de preservar o meio ambiente que cerca a comunidade. Segundo ela, durante as enchentes de maio, a região foi classificada como local de risco. Felizmente, apesar dos moradores terem de deixar suas casas, elas não foram invadidas pela água. “Ficamos totalmente abalados com essa questão das águas, [nos] sentimos inseguros.” Passado esse momento, agora a comunidade busca condições de vida mais dignas para seus moradores. “A gente quer revitalizar as áreas verdes, as praças, catalogar a fauna e a flora e potencializar toda essa comunidade aqui”, expressa Eliane.
Ela conta que no ano passado a prefeitura recomendou que os moradores deixassem a área devido o risco de inundações. No entanto, destaca que essa recomendação não se aplica ao setor imobiliário, que realiza investidas constantes na região, além de atacar as áreas ambientais da região. “Vem o Poder público e diz que nós estamos em área de risco, que não devemos estar aqui. Ok, isso poderia ser uma realidade, triste realidade, mas poderia ser real. Só que, como os empreendimentos estão chegando aqui na área [que é] de risco para nós? Para eles não é? Como assim, dois pesos e muitas medidas? A gente não quer sair daqui!”
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