Com público esperado de 6 milhões de pessoas, o triplo do número de habitantes do município, o carnaval de Belo Horizonte segue crescendo e encantando foliões do Brasil e do mundo, sendo considerado atualmente um dos maiores do país e, portanto, uma das maiores festas populares do planeta. Em 2024, nosso carnaval movimentou quase R$ 1 bilhão. Também foram gerados mais de 20 mil postos de trabalho e um retorno de R$ 20 milhões aos cofres públicos.
O crescimento pode impressionar quem vivenciou o marasmo que era o feriado na cidade durante a década de 90 e o começo dos anos 2000, mas você sabia que o carnaval de BH surgiu junto com a cidade e acompanhou grande parte de sua história ?
Carnaval histórico
O primeiro registro histórico de festividades de carnaval no município remonta aos tempos de fevereiro de 1897, quando, antes mesmo da inauguração da cidade, trabalhadores vestidos de mulheres desfilaram atrás de carroças, caminhando da praça da Liberdade até a avenida Afonso Pena, dando origem ao chamado “corso”. É o que explica a vereadora da capital mineira e atriz Cida Falabella (Psol).
“Os operários improvisaram um desfile nas carroças, com os rostos pintados de carvão. Era o corso, ‘pai’ dos nossos blocos caricatos, uma manifestação cultural que só tem em Belo Horizonte e que, agora, é reconhecida por lei”, relembra a parlamentar.
Dois anos depois, surgiram as bandas carnavalescas, que se mantêm até hoje. Já na década de 30, se desenvolvem as batalhas de confete e a primeira escola de samba da cidade, a Pedreira Unida, criada na Pedreira Prado Lopes.
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Giselle Maia, integrante do Movimento Brasil Popular e dos blocos Abalo-caxi, Truck do Desejo e Tapa de Mina, destaca que, historicamente, o carnaval aqui é construído pelos trabalhadores e tem um caráter popular.
“Isso reforça como a cultura do carnaval está ligada à construção da cidade de Belo Horizonte. É importante não perder de vista que, quando falamos do carnaval de BH, falamos sobre uma festa de resistência, feita pelos trabalhadores que construíram essa cidade. É uma festa que nunca teve recurso, sempre foi muito construída pelo povo”, explica.
Na década seguinte, surgiram os blocos caricatos, manifestação herdeira do corso que se mantém até hoje na cidade. Também surgiu nos anos 1940 o primeiro bloco de rua que se tem registro em BH, o Leões da Lagoinha. Com o fim das atividades do grupo, em 1975, os foliões do Lagoinha fundaram a Banda Mole, a mais tradicional e ativa do carnaval do município até hoje.
Nosso carnaval chegou a ser um dos mais importantes do país ao longo do século XX e, como destaca Joví Maia, arte-educador, advogado popular, urbanista e folião, desde o início de sua retomada, é fortemente ligado à diáspora africana.
“Nós sabemos que a capital é construída por essa mão-de-obra recém ‘liberta’. São essas pessoas que vão construir também as suas principais manifestações culturais, tais como o carnaval, o samba, a capoeira e todas as demais manifestações com origem relacionada intimamente à diáspora africana”, destaca.
O processo de esvaziamento
Em decorrência de uma enchente, no ano de 1989, o carnaval foi cancelado pela prefeitura e posteriormente, Pimenta da Veiga, prefeito da época, não retomou a festa.
“Pelo contrário, começou a fomentar uma ideia de cidade tranquila para o descanso durante o carnaval, desmobilizando essa festa tradicional, em que a gente celebra a liberdade, o lúdico, o encontro e tudo aquilo que o carnaval representa. Grandes escolas de samba perderam muito apoio e investimento e foram mandadas para as bordas da cidade”, destaca Joví.
Durante esse período, o carnaval, embora sabotado, resistiu nas periferias da cidade, como defende a vereadora Cida Falabella.
“Essa ideia de que o carnaval estava ‘morto’ não é totalmente verdade. O carnaval de BH nunca deixou de existir nos bailes em clubes e em blocos que seguiram resistentes nos bairros da cidade. Porém, a falta de incentivo do poder público foi minando o carnaval”, ressalta.
Perseguição do poder público
Ou seja, o carnaval em Belo Horizonte existiu e segue existindo, mas enfrentou, em muitos períodos, o poder público, que chegou a cobrar taxas para os bailes de rua e a implementar, em 1923, uma lei que dizia que “os bailes públicos, compreendendo-se como tais os que dependem da licença da polícia para o seu funcionamento, pagarão, por baile, o imposto de 50$000 no carnaval e 20$000 fora desta época”.
No recente processo de retomada, a festa também precisou resistir, por exemplo, às forças policiais, que reprimiram fortemente o movimento.
“Foram muitos episódios de violência policial. Vários blocos sofreram com spray de pimenta, com cassetete e com perseguição durante muitos anos”, afirma Joví.
Giselle destaca ainda que a falta de apoio também representa um grande obstáculo à consolidação do carnaval. Ainda que a repressão direta tenha diminuído nos últimos anos, dada a proporção que tomou o festejo, o investimento ainda é insuficiente para custear os desfiles.
“Há falta de apoio e recurso para conseguir organizar para sair na rua, o que é muito caro. No calendário oficial da prefeitura, a festa começa no dia 15 fevereiro e vai até 8 de março, mas, para isso, é preciso manutenção da estrutura necessária e dos ensaios, que começam no meio do ano anterior “, destaca.
O florescer do carnaval
Em 2009, surgem propostas embrionárias da volta dos blocos de rua: Tico Tico Serra-Copo, Peixoto e Approach. Como reação, no fim do mesmo ano, o então prefeito de Belo Horizonte Marcio Lacerda editou um decreto que proibia eventos de qualquer natureza na praça da Estação, alegando “dificuldade em limitar o número de pessoas e garantir a segurança pública”.
Uma semana depois da promulgação do decreto, como movimentação política de reivindicação do espaço público, surge a “praia da estação”.
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“Com sua irreverência, inventividade, amor, cultura, diversidade e ousadia, a praia da estação reinventou, retomou, fez reflorescer o carnaval de Belo Horizonte, de rua e de luta”, afirma Cida Falabella.
Joví também atribui ao evento a expansão e o surgimento de novos blocos. “Veio à tona uma nova geração de blocos, com a bandeira de ocupação e democratização do espaço público e expressão da liberdade a partir da festa na rua”, relata.
Surgem nessa época, por exemplo, os blocos Filhos de Tcha Tcha e Praia da Estação. Nos anos seguintes, chegaram o Então Brilha, Tchanzinho Zona Norte, Angola Janga e Sagrada Profana. “O carnaval fica espontaneamente enorme e diverso”, ressalta a atriz e vereadora.
É de autoria de Cida Falabella a Lei Geral do Carnaval, aprovada em dezembro do ano passado e que aguarda agora a sanção do prefeito. A legislação busca guarani os princípios democráticos da festa.
“De caráter popular, acesso livre, universal e gratuito, sem cordas, abadás ou camarotes. Além de reconhecer a diversidade das manifestações carnavalescas e dos agentes do carnaval, inclusive os trabalhadores ambulantes e catadores de material reciclável”, declara a vereadora.
Importância da festa
Justamente por seu caráter popular, o carnaval de Belo Horizonte se tornou tão relevante no debate ao direito à cidade e na própria folia no cenário nacional. Para Giselle, os blocos que surgiram no reflorescimento do festejo na capital mineira levantam as mais variadas bandeiras de luta.
“Foram se construindo e se fortalecendo, trazendo também a identidade das mulheres, da população negra e da população LGBT. Isso foi se multiplicando, com muitos blocos surgindo com temáticas específicas, por exemplo, o bloco que coloca a importância do parque do Betânia, o Betânia Custosa; o bloco que coloca a reivindicação do metrô do Barreiro, o Esperando o Metrô; e o bloco que coloca a descentralização da cidade, o Tchanzin da Zona Norte”, finaliza a militante do Movimento Brasil Popular.