Em outubro de 2024, a régua de monitoramento do rio Paraguai indicava o nível mais baixo desde 1900, ano em que o medidor passou a funcionar, na base da Marinha do Brasil em Ladário (MS). Para pesquisadores da região, esse é mais um alerta sobre os riscos das obras da hidrovia do rio Paraguai, projeto atualmente em fase de consulta pública.
Os especialistas alertam que a crise climática pode acentuar as secas no rio, impedindo a passagem de grandes embarcações e inviabilizando a proposta da concessão. Além disso, as obras de adaptação do rio podem ter impactos negativos no Pantanal, bioma já bastante ameaçado pela seca e incêndios.
“O que aconteceu no ano passado foi a maior seca dos últimos 124 anos monitorados pela Marinha do Brasil. Então, eu ouso dizer que essa questão colocada da previsibilidade não vai existir”, alerta Débora Calheiros, bióloga e pesquisadora da Embrapa cedida ao Ministério Público Federal (MPF), em audiência pública realizada no dia 6 de fevereiro de 2025. “As embarcações têm que se adaptar aos rios, e não os rios às embarcações”, sugere.
A proposta de concessão inclui intervenções no rio para facilitar a passagem de grandes embarcações, permitindo aumento na quantidade de minério de ferro e soja escoados pela hidrovia para o mercado externo. O investimento previsto é de R$ 63,8 milhões, além de gastos operacionais no valor anual de R$ 14,2 milhões. O período de vigência do contrato é de 15 anos, que podem ser prorrogados por mais 15.
A Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) informa que “a hidrovia vai contar com um calado de 3 metros quando o rio estiver cheio e de 2 metros em períodos de seca, o que vai garantir a trafegabilidade das embarcações durante todo o ano, ou pelo menos a maior parte dele”.
Os especialistas, no entanto, apontam a necessidade de mais pesquisas que considerem os impactos ambientais na região, já que o rio Paraguai é o principal responsável pela inundação do Pantanal.
“Qualquer tipo de discussão sobre esse assunto exige um arcabouço enorme de estudos científicos multi, inter e transdisciplinares”, alerta o antropólogo social, arqueólogo e historiador Jorge Eremites de Oliveira, que realiza pesquisas sobre o Pantanal desde o final dos anos 80.
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Retirada de rochas pode sugar água do Pantanal
A proposta apresentada pela Antaq para as intervenções no rio prevê o derrocamento, procedimento que consiste na remoção de rochas do fundo do rio; e a dragagem, que consiste na retirada de sedimentos.
As interferências serão feitas em alguns pontos do trecho de aproximadamente 600 km, nomeado como Tramo Sul, entre o município de Corumbá (MS) e o rio Apa, em Porto Murtinho (MS).
Embora o Estudo de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental (EVTEA) indique “não haverá alterações significativas na morfologia (forma e profundidade) do rio, devido ao baixo impacto das intervenções comparadas às dimensões do rio”, o professor da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) Pierre Girard aponta a ausência de simulações que projetem a dimensão do impacto. “A questão toda, que não é bem resolvida, é: como eu dimensiono isso?”, diz.
Girard é doutor em hidrologia pela Université du Québec, no Canadá e autor de um artigo assinado com mais 41 pesquisadores do Brasil, Alemanha, Reino Unido e Estados Unidos, publicado na revista Science of the Total Environment, com o título “O fim de todo um bioma? O Pantanal, a mais vasta terra alagável do mundo, está sendo ameaçada por um projeto de hidrovia cuja capacidade para suportar tráfego em larga escala de maneira sustentável é incerta”.
O estudo aponta a função das rochas no fundo do rio, que atuam como barragens e garantem a cheia da parte norte da hidrovia, principal responsável pela inundação do bioma. “O Pantanal alaga porque todo esse trecho que vai até o rio Apa é uma planície. Então, a água escoa devagar, porque é plano (…) E também tem alguns afloramentos rochosos dentro do leito do rio que dificultam o escoamento da água”, explica o professor. Assim, o Tramo Sul, onde serão realizadas as obras, influencia no ritmo de cheias e secas do Tramo Norte.
Girard indica que, sem estudos de modelagem que simulem os impactos, não é possível garantir a manutenção do fluxo das águas. A Antaq informa que foram realizados testes de modelagem para investigar o impacto do derrocamento no rio Paraguai, mas os estudos são de acesso restrito.
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“A gente sabe que qualquer intervenção nesse sentido, pode gerar impactos que talvez o bioma responda de alguma forma que a gente não tenha muito controle sobre a situação”, afirma Eduardo Rosa, pesquisador da plataforma MapBiomas.
De acordo com o EVTEA, o Tramo Sul é muito importante para as exportações e importações brasileiras. “Este segmento do rio é essencial para o transporte de minérios, produtos agrícolas e grãos do Centro-Oeste do Brasil. Especificamente, identifica-se o minério de ferro como a principal carga movimentada”, informa o documento.
A hidrovia servirá, principalmente, para o transporte de minério de ferro brasileiro que, de acordo com a projeção da Antaq, corresponderá a mais de 77% da carga escoada. A maior parte desse minério terá origem no município de Corumbá. Em segundo lugar, está a soja brasileira com origem no Mato Grosso (7,4%) e a soja boliviana (6,9%).
Mais seco, Pantanal é mais suscetível a incêndios
De acordo com Rosa, a última grande cheia do Pantanal, registrada em 2018, indicou uma mudança no fluxo de água no bioma. “O bioma alagou uma menor área e foi um pulso de inundação mais rápido”, diz.
Informações da plataforma MapBiomas, que usa dados captados por satélites para fazer as análises, indicam que 2023 foi 38% mais seco que 2018.
Os estudos, resultantes de monitoramento do bioma desde 1985, mostram uma mudança no padrão de secas e cheias no Pantanal. “A água que fica no bioma no período de seca está diminuindo muito também”, alerta Rosa. “E outra coisa importante que a gente entenda, é que esse pulso de inundação está completamente ligado ao rio Paraguai”, diz.
A seca no Pantanal tem uma consequência trágica: o aumento dos incêndios no bioma. Em 2024, Corumbá – ponto inicial do Tramo Sul da hidrovia do rio Paraguai – foi o segundo município mais devastado pelo fogo, ficando atrás apenas de São Félix do Xingu (PA). “A gente não consegue produzir nada na aldeia, porque tá seco. Tudo que você planta, morre”, relatou o cacique Negré, do povo Guató, em uma reportagem publicada pelo Brasil de Fato em outubro de 2024.
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Na audiência pública realizada no início de fevereiro, não havia representantes dos povos indígenas e ribeirinhos do Pantanal, que serão impactados pelas obras e pelo aumento do tráfego de grandes embarcações na hidrovia.
“Não é que nós sejamos contra o progresso, o desenvolvimento econômico”, explica Oliveira, que publicou os primeiros estudos sobre os impactos da hidrovia na década de 90. “Acontece que esse debate é como você pegar uma galinha que bota ovos de ouro e, ao invés de você tratá-la bem e preservá-la, mata o animal e abre a barriga dela para ver o que tem dentro. É o que estão fazendo com o Pantanal”, lamenta.
Sobre a consulta pública
A Antaq abriu período de consulta pública para receber contribuições para o aprimoramento dos documentos e da modelagem proposta para a concessão da hidrovia do rio Paraguai. Qualquer pessoa, empresa ou entidade pode participar do processo, que é realizado on-line, por meio de preenchimento de formulário disponível neste link. A consulta pública vai até o dia 10 de março de 2025.