A música mal havia começado a tocar quando Ernestina, sorrindo, começou a sussurrar a melodia. “Eu conheço essa música”, apressou-se a dizer, num impulso de entusiasmo. Por alguns segundos, Amaya ficou olhando pra sua avó de 81 anos — a quem todos na família chamam de “Mamita” — com um certo estranhamento que rapidamente se transformaria num enorme sorriso de ternura.
Num gesto que a convidava pra dançar, Amaya aproximou-se de “Mamita” enquanto o sample de Un Verano en Nueva York — aquele emblemático hino da diáspora porto-riquenha composto por Andy Montañez e El Gran Combo de Puerto Rico em 1975 — dava lugar à moderna batida dembow de NUEVAYoL, com a qual Bad Bunny abre seu apaixonante DeBÍ TiRAR MáS FOToS.
Sentada num bar de Havana, Amaya Rocío relembra a cena entre risadas. “Foi um momento tão lindo, geracional. Eu estava descobrindo uma música nova, mas ela já conhecia, algo que vinha das origens dela”, diz quase de passagem, sem se prender muito na escolha das palavras, em conversa com o Brasil de Fato.
Aquilo que “veio das origens” da sua avó, criada numa área rural de Santiago de Cuba, foram todas as músicas que “foram feitas lá”: a salsa e o son cubano que ela cresceu ouvindo.
Fã desde o primeiro instante da música do porto-riquenho Benito Antonio Martínez Ocasio (Bad Bunny), Amaya, de 19 anos, solta uma observação certeira ao dizer que esse momento, marcado pela escuta e pela dança, foi um “momento geracional”. Talvez todo o DeBÍ TiRAR MáS FOToS (DtMF) seja sobre isso: momentos, instantes e lembranças que formam a memória emocional de diferentes gerações que, por meio da dança, celebram o que lhes é próprio: sua identidade.
De um pássaro às duas alas
Ainda que tenha se tornado um fenômeno verdadeiramente global, as músicas do DtMF parecem ressoar de maneira especial na maior ilha das Antilhas. Não é coincidência: Porto Rico e Cuba compartilham histórias profundamente entrelaçadas, marcadas por lutas comuns, sonhos de independência e uma identidade cultural com muitos pontos em comum.
Após as Guerras de Independência contra o Reino da Espanha, a tão sonhada soberania de ambos os países ficou obscurecida pela intervenção dos Estados Unidos em 1898. A partir daí, Cuba alcançou a independência formal — ainda que fortemente controlada por Washington —, enquanto Porto Rico se tornou diretamente um “território não incorporado” dos EUA.
Mas a história das duas nações remonta a um passado ainda mais distante. Até a bandeira de Porto Rico, desenhada em 1895 por exilados porto-riquenhos em Nova York sob a liderança de Francisco Gonzalo Marín, é um exemplo disso. Seu desenho, como símbolo de solidariedade entre as duas nações, foi diretamente inspirado na bandeira cubana — criada em 1849 —, mas com as cores invertidas.
Na praça da Universidade de Havana, Cristina Díaz Faloh, professora de física, conversa com o Brasil de Fato e nos lembra que um dos principais objetivos de José Martí e do Partido Revolucionário Cubano, após a independência de Cuba, era a luta pela independência de Porto Rico.
“Não é por casualidade que o poema diz — e está tão profundamente enraizado — que ‘Cuba e Porto Rico são as duas asas de um só pássaro’”, diz, referindo-se a Lola Rodríguez de Tió, poeta e revolucionária porto-riquenha.
“Pode parecer uma citação pedante ou acadêmica, mas não é. Até o cubano mais comum, se for questionado, pode dizer que não é. Mesmo o cubano mais simples, se perguntado sobre a relação entre Cuba e Porto Rico, pode mencionar essas palavras sobre as ‘duas asas’. É algo que fica na memória das pessoas, que Porto Rico é uma nação irmã. Isso está aqui.”
O melhor da nova, porque eu cresci na velha
Entre a música popular, a celebração e a melancolia por aqueles que não estão mais aqui, o álbum “mais porto-riquenho” de Bad Bunny tem se tornado uma verdadeira comoção cultural em todo o mundo. Principalmente em cada canto da América Latina e do Caribe, incluindo aqueles pedacinhos de terra que abrigam aqueles que — independentemente do motivo — tiveram que emigrar.
Evitando qualquer imagem em preto e branco, o álbum propõe uma viagem pelas raízes musicais e culturais do povo de Porto Rico, tanto na ilha quanto em sua diáspora. Trata-se de um sincero tributo às tradições que compõem a identidade — sempre diversa e múltipla — de uma nação que luta por sua independência, assumindo o presente a partir de onde está. E é justamente aí, em sua “particularidade” e “identidade periférica”, que DeBÍ TiRAR MáS FOTOS alcança uma verdadeira universalidade.
Desde seu lançamento, o DtMF quebrou todos os tipos de recordes, tanto em vendas quanto em reproduções em streaming, posicionando cada uma de suas 17 canções entre as mais ouvidas do mundo. No entanto, seu maior sucesso está no fato de que esse sincero canto de amor por sua terra tornou-se um símbolo de resistência que transcende fronteiras.
Em diferentes partes do mundo, começaram a surgir vídeos — com referências ao álbum — expressando amor pela própria terra, dor por aqueles que tiveram que partir ou denúncias contra os abusos daqueles que tentam roubar nossas identidades.
Desde a América Latina, onde se reivindica o orgulho de ser latino diante da arrogância de Donald Trump, até a Faixa de Gaza, onde milhares de pessoas compartilharam imagens de suas casas e ruas devastadas pelo genocídio perpetrado pelo Estado de Israel. Esses vídeos são acompanhados pelo verso que dá título ao álbum: “Debí tirar más foto’ de cuando te tuve. Debí darte más beso’ y abrazo’ las veces que pude. Ojalá que los mío’ nunca se muden” (Eu deveria ter tirado mais fotos de quando eu tinha você. Eu deveria ter te dado mais beijos e abraços quantas vezes eu pude. Espero que os meus nunca se mudem).
Como se fosse uma máquina do tempo, através de um sample do Gran Combo de Puerto Rico, o álbum começa na diáspora porto-riquenha em Nova York durante a década de 1970. Uma reverência àquelas orquestras que, em terras distantes e em outros climas, fizeram a cultura porto-riquenha grandiosa.
Uma intertextualidade onde a história adota uma abordagem diferente da celebração da grande cidade dos EUA. Já o título da música, NUEVAYoL, escrito em uma grafia fonética baseada no sotaque porto-riquenho, é uma reivindicação da cultura popular — muitas vezes desprezada por círculos ilustrados.
A música faz referência ao mundo popular de origem latina que floresceu naquela cidade, mencionando o rapper dominicano Lápiz Conciente e músicos “Nuyorriqueños” (termo que se refere à diáspora porto-riquenha em Nova York), como Big Pun e Willie Colón. “Un shot de cañita en casa de Toñita y PR se siente cerquita” (“um shot de cachaça na casa de Toñita e Porto Rico se sente próximo”), canta, em referência ao lendário bar Caribbean Social Club, de María Antonia Cay, mais conhecida como Doña Toñita. Um lugar icônico que, durante quase meio século, serviu de refúgio para os latinos em Nova York.
Desse shot de cañita, a música volta a Porto Rico. Na canção seguinte, o personagem conta que conheceu uma garota em Miami e que a levará para Porto Rico “pa’ que vea’ cómo es que se perrea”. O simbolismo de “deixar Miami” não é menor, num contexto em que a cidade do sul da Flórida se tornou uma espécie de Meca da indústria musical — especialmente da música latina —, com milhares de canções que associam o sucesso a “chegar a Miami”.
Da plena e da bomba ao reggaeton (1500 – 1900)
Ao longo do disco, participam diversos artistas. “Cada um deles é porto-riquenho e está ali por uma razão”, afirmou Bad Bunny em uma entrevista realizada logo antes do lançamento de DeBÍ TiRAR MáS FOTOS. Inclusive, o álbum contou com a colaboração de estudantes da Escola Livre de Música na já mencionada BAILE INoLVIDABLE.
No entanto, esses jovens artistas não são apenas porto-riquenhos, mas também representam diferentes estilos e gerações da música porto-riquenha. Os ritmos tradicionais, como a plena e a bomba, estão presentes com os aclamados Pleneros de la Cresta (Café Con Ron); a jovem sensibilidade pop latina com a banda Chuwi (Weltita); uma das principais promessas dos gêneros urbanos, a cantora RaiNao (Perfumito Nuevo); e o reggaeton e trap, com artistas já consagrados como Omar Courtz e DeiV (Veldá). É nessa multiplicidade heterogênea que reside o melhor de uma tradição.
“Além dos temas típicos ligados ao reggaeton, como a festa e a noite urbana, o disco está cheio de imagens do campo e das suas histórias”, nos diz Daniela Pujol Coll, professora de espanhol. “Café con Ron poderia ser uma imagem tirada de um conto de Onelio Jorge Cardoso”, afirma, referindo-se ao grande contista nacional cubano.
Ela destaca que essas imagens, que parecem saídas dos contos de bebedeira nos povoados do interior, cheias de realismo mágico, fazem parte de uma nostalgia pela própria história. Uma nostalgia que, o tempo todo, é atravessada pela dor de uma geração dilacerada pela migração em massa. Como a própria geração de Daniela.
“O tempo todo estamos buscando imagens que nos conectem com quem somos. Até os cubanos, quando vão embora, continuam assistindo às novelas daqui.”
Cada uma das músicas do álbum, nos visuais do YouTube, é acompanhada por uma apresentação de textos curtos que narram diferentes histórias de resistência do povo porto-riquenho. Os textos abordam diversos temas, como a insurreição de 23 de setembro de 1868, conhecida como o Grito de Lares, que buscou a primeira independência do Reino da Espanha; os primeiros anos da invasão dos EUA e a “americanização” do país; a luta das mulheres da classe trabalhadora; e a história das expressões populares da cultura nacional, desde a plena e a bomba até o reggaeton.
O trabalho com os textos foi feito em colaboração com Jorell Meléndez Badillo, professor da Universidade de Wisconsin-Madison. Jovem historiador porto-riquenho que, longe das perspectivas historiográficas liberais centradas na história dos “grandes homens”, lança um olhar comprometido com as lutas das classes trabalhadoras, suas expressões culturais — distantes dos círculos iluminados —, bem como com os marginalizados e excluídos da história.
O álbum inteiro é marcado por uma reivindicação explícita do mundo popular, sua cultura e suas lutas, sua tristeza e suas festividades. É um álbum marcado pelo processo de lutas populares — liderado principalmente por jovens — que abalou Porto Rico nos últimos anos.
Sem dúvida, o álbum faz parte do processo de (re)politização da juventude, impulsionado pelo clima dos protestos cidadãos de 2019, em que o movimento de independência de Porto Rico recuperou força. É um processo que conseguiu o que parecia impossível: romper com o tradicional sistema bipartidário que, nos últimos 80 anos, se alternou no governo do país.
Essa mudança permitiu que o candidato pró-independência Juan Dalmau alcançasse um histórico segundo lugar nas últimas eleições, em novembro passado, após uma eleição marcante. Uma campanha eleitoral na qual o próprio Bad Bunny foi um protagonista essencial, cantando inclusive no comício de encerramento da campanha.
DeBÍ TiRAR MáS FOTOS é um lembrete de que só é possível lutar pela nossa independência e pelo nosso povo se abraçarmos a nossa cultura popular. E que essas lutas, embora cheias de dor, não podem ser derrotadas se celebrarmos a história daqueles cuja história é negada.