Marcello Musto publicou pela editora Boitempo, no fim do ano passado, três volumes da antologia O Essencial de Marx e Engels, que reúne, em quase mil páginas, um vasto acervo da produção teórica de Marx e Engels.
Considerado um dos principais especialistas da atualidade no estudo dos teóricos clássicos do pensamento socialista, ele é professor de sociologia na York University de Toronto (Canadá), além de ter sido professor visitante em mais de 10 universidades, incluindo a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Marcello Musto já publicou diversas obras dedicadas à Karl Marx, ajudando a aprimorar as interpretações sobre o autor do Manifesto Comunista e o marxismo nos dias de hoje. Os publicados no Brasil incluem Trabalhadores, uni-vos! Antologia política da I Internacional (2014); O velho Marx: uma biografia de seus últimos anos (2018); Repensar Marx e os Marxismos: Guia para Novas Leituras (2022); Karl Marx. Biografia intelectual e política (2023); O Marx Revival. Conceitos-chave e novas interpretações (2023); além da antologia O Essencial de Marx e Engels.
Confira na íntegra da entrevista de Marcello Musto:
Após o que você chama de “conspiração de silêncio de vinte anos sobre Marx” e depois da “embalsamação de seu pensamento” pelo marxismo-leninismo, houve uma retomada do pensamento de Marx? Em que consistiu essa embalsamação?
Crítico rigorosíssimo e sempre insatisfeito com os pontos de chegada, Marx foi frequentemente associado a um dogmatismo grosseiro. Feroz defensor da auto-emancipação da classe operária, foi aprisionado em uma ideologia que defendia o primado das vanguardas políticas. Proponente da ideia de que a condição fundamental para o socialismo era a redução da jornada de trabalho, foi assimilado à crença produtivista do stakhanovismo.
Interessado como poucos outros pensadores no livre desenvolvimento das individualidades humanas, afirmando, contra o direito burguês que oculta as desigualdades sociais sob uma mera igualdade legal, que “o direito, em vez de ser igual, deveria ser desigual”, foi associado a uma concepção que neutralizou a riqueza da dimensão coletiva no indistinto da homogeneização. Contrário a “prescrever receitas para a taverna do futuro”, foi indevidamente transformado no pai de um sistema social muito diferente de suas ideias.
Alguns estudiosos de Marx privilegiaram o crítico do capitalismo, o economista, separando-o do filósofo e do político. Os numerosos inéditos de Marx, que estão sendo publicados na edição alemã MEGA2, oferecem, ao contrário, uma espécie de gênio, como foi Leonardo da Vinci.
Desde o período universitário, Marx adotou o hábito de compilar cadernos de extratos dos livros que lia, intercalados com as reflexões que esses lhe sugeriam. Os manuscritos de Marx contém cerca de 200 cadernos (muitos ainda inéditos) que são essenciais para a compreensão da gênese de sua teoria e para entender melhor as partes dela que ele não teve oportunidade de desenvolver como gostaria. Não é excessivo afirmar que, entre os clássicos do pensamento econômico e filosófico, Marx é o cujos traços mudaram mais ao longo dos últimos anos.
Ele escreveu seus extratos em oito línguas, extraídos de textos das mais variadas disciplinas. Também inclui anotações de centenas de relatórios parlamentares, estatísticas econômicas e relatórios de órgãos governamentais de meio mundo. Marx era um estudioso global e muito analítico. Nada de – como foi escrito – se limitar a destacar apenas o núcleo racional da dialética de Hegel.
É possível falar de um Marx, salvo os pontos centrais de seu pensamento, que nunca foi definitivo e esteve sempre em desenvolvimento?
O Capital não foi o único projeto que ficou incompleto. A convicção de Marx de que suas informações eram insuficientes e seus julgamentos ainda imaturos o impediu de publicar vários escritos que ficaram apenas esboçados ou fragmentados. Isso não significa que seus textos incompletos tenham o mesmo peso dos publicados. Devem ser distinguidos cinco tipos de escritos: as obras publicadas, seus manuscritos preparatórios, os artigos jornalísticos, as cartas e os cadernos de extratos.
Além disso, alguns dos textos publicados não devem ser considerados como sua palavra final sobre os temas em questão. Por exemplo, o Manifesto do Partido Comunista foi considerado por Engels e Marx como um documento histórico, não como o texto definitivo onde estavam enunciadas suas principais concepções políticas. Marx continuou a desenvolver suas ideias até a fase final de sua existência. Não por acaso, seu lema preferido era De omnibus dubitandum [Tudo deve ser questionado].
Marx publicou mais de 500 artigos, ele foi um importante jornalista?
Por mais de uma década, Marx foi um dos principais correspondentes europeus do New-York Tribune, o jornal mais difundido nos Estados Unidos na época. Nos diversos artigos que redigiu, ele tratou de todas as crises econômicas que se sucederam e dos principais eventos políticos da época, tornando-se um jornalista respeitado. Poucos sabiam que por trás daquela assinatura estava um impenitente revolucionário.
Alguns desses textos são úteis para entender o pensamento de Marx sobre questões que ele não pôde tratar de maneira sistemática. Por exemplo, ele escreveu sobre a Guerra da Crimeia de 1853-56 e, apesar de sempre ter se oposto às políticas de Moscovo, declarou, contra os liberais democratas que exaltavam a coalizão anti-russa: “É um erro definir a guerra contra a Rússia como um conflito entre liberdade e despotismo. A parte do fato de que, se isso fosse verdade, a liberdade seria atualmente representada por um Bonaparte, o objetivo manifesto da guerra é a manutenção dos tratados de Viena, ou seja, dos mesmos tratados que anulam a liberdade e a independência das nações”. Se substituíssemos Bonaparte pelos Estados Unidos e os tratados de Viena pela OTAN, essas observações parecem escritas para os dias de hoje.
Marx foi, de certa forma, um precursor da questão ecológica, quando falou não apenas da exploração do homem pelo homem, mas também da exploração da terra pelo capitalismo?
A relevância que Marx atribuiu à questão ecológica está no centro de alguns dos principais estudos dedicados à sua obra nos últimos vinte anos. Em diversas ocasiões, ele denunciou que a expansão do modo de produção capitalista aumenta não só a exploração da classe trabalhadora, mas também o saqueamento dos recursos naturais.
Em O Capital, Marx observou que, quando o proletariado instaura um modo de produção comunista, a propriedade privada do globo terrestre por indivíduos isolados pareceria tão absurda quanto a propriedade privada de um ser humano por outro ser humano. Ele manifestou sua crítica mais radical à ideia de posse destrutiva inerente ao capitalismo, lembrando que “uma nação inteira ou até todas as sociedades de uma mesma época, tomadas como um todo, não são proprietárias da terra”. Para Marx, os seres humanos são “apenas seus usufrutuários” e, portanto, têm “o dever de transmitir às gerações futuras um planeta melhor, como bons pais de família”.
Marx é contra as imigrações, se escreveu. Mas quando presidia a Primeira Internacional, quis operários irlandeses à frente da seção londrina. Qual é a verdade?
Trata-se de uma das maiores bobagens escritas sobre Marx nos últimos anos. Ele se interessou muito pelas migrações e, entre suas últimas anotações, há registros sobre o pogrom ocorrido em São Francisco, em 1877, contra os migrantes chineses. Marx atacou os demagogos anti-chineses que alegavam que os migrantes “fariam os proletários brancos passarem fome” e aqueles que tentavam convencer a classe operária a adotar posições xenofóbicas.
Pelo contrário, Marx mostrou que o movimento forçado de mão de obra gerado pelo capitalismo era uma parte muito importante da exploração burguesa e que a chave para combatê-lo era a solidariedade de classe entre os trabalhadores, independentemente de suas origens ou de qualquer distinção entre mão de obra local e importada.
Marx foi um autêntico anticolonialista, atento ao Sul Global, o que contribui para explicar sua popularidade fora do circuito europeu?
Marx realizou investigações aprofundadas sobre as sociedades extra-europeias e se expressou sempre sem ambiguidade contra as devastações do colonialismo. Essas considerações são óbvias para quem leu Marx, apesar do ceticismo que hoje prevalece em certos círculos acadêmicos.
Por exemplo, quando escreveu sobre a dominação britânica na Índia, afirmou que os britânicos só conseguiram “destruir a agricultura indígena e dobrar o número e a intensidade das fomes”. Durante os últimos anos de vida, ele desenvolveu uma concepção multilinear do progresso, o que o levou a olhar com mais atenção para as especificidades históricas e as desigualdades econômicas e políticas dos países do sul.
Ele acreditava que o desenvolvimento do capitalismo não era um pré-requisito necessário para a revolução; ela poderia começar também fora da Europa. A flexibilidade teórica de Marx – bem diferente das posições de alguns de seus seguidores – contribui para a nova onda de interesse por suas teorias, do Brasil à Índia.
E é verdade que Marx, para usar uma expressão de hoje, também foi atento às questões de gênero, como os socialistas utópicos Fourier e Saint-Simon, que você convida a reler?
Voltar a ler a história variada do movimento operário, prestando atenção a todas as lutas que o caracterizaram, ajuda a entender o quanto são erradas aquelas leituras que representam o socialismo como uma ideologia exclusivamente interessada no conflito entre capital e trabalho. Isso implica também superar a velha vulgata marxista que considerou o de Marx como o único “socialismo científico” e que usou o adjetivo “utópico” de forma puramente depreciativa. Para repensar a alternativa ao capitalismo, é necessário reutilizar todo o arsenal do pensamento socialista, embora Marx continue sendo o elemento central.
Sobre seu último livro, O Essencial de Marx e Engels, publicado em dezembro 2024, em 3 volumes – Escritos filosóficos (294 páginas); Escritos econômicos (310 páginas); Escritos políticos (335 páginas) – que reúne um vasto acervo da produção teórica de Marx e Engels. Como foi o processo de análise e seleção dos textos, capítulos, obras e documentos presentes na antologia?
A obra de Marx e Engels é composta por dezenas de livros, centenas de artigos em jornais e revistas, milhares de páginas de manuscritos preparatórios e de rascunhos de projetos inacabados, uma correspondência constituída por mais de 4 mil cartas encontradas, além de uma grande quantidade de cadernos de anotações, em grande parte ainda inéditos, contendo extratos e comentários dos livros que leu durante os muitos estudos realizados e sua longa atividade política. Selecionar 900 páginas “essenciais” dessa vasta massa de materiais – que, além disso, abrange os mais diversos campos do saber humano, foi redigida em várias línguas e inclui um número considerável de escritos incompletos e fragmentários – é uma tarefa muito complexa.
Deve-se também lembrar que existem escritos nos quais foram expostas ideias que foram superadas após novas pesquisas e que, portanto, não contêm as conclusões finais, relacionadas aos temas tratados, às quais chegaram seus autores. A necessidade de respeitar as dimensões convencionais dos livros de hoje tornou impossível incluir nesta antologia trechos de todos os principais escritos de Marx e Engels. Por questões de espaço, alguns deles tiveram que ser excluídos e, para outros, foi necessário escolher poucas linhas em vez do que merecia ser apresentado em várias páginas.
No entanto, um “Essencial” não tem a ambição de substituir a obra completa; ao contrário, tem o objetivo de estimular os leitores a descobrirem os textos em sua totalidade e maior complexidade.
Qual é o diferencial da obra que a torna uma das principais antologias produzidas em escala internacional dos textos teóricos de Marx e Engels?
Marx e Engels são indiscutivelmente dois clássicos. Eles têm uma contribuição da qual não se pode prescindir e que permanece indispensável apesar do passar do tempo. Aos clássicos retornamos continuamente para rediscutir as questões que mais contribuíram para entender e resolver, mas eles também são convocados em relação a novas temáticas que surgem com a transformação da sociedade e em relação a questões antigas que assumem nova relevância. É por essa razão que, a custo de sacrificar algumas páginas do Marx mais conhecido, não quis deixar de incluir alguns trechos, também inéditos em português, sobre ecologia, gênero, liberdade individual, tecnologia, nacionalismo, colonialismo e guerra – com prazer em destacar a importância da contribuição de Engels sobre esses pontos.
Como a obra contribui para aprimorar as interpretações sobre Marx e o marxismo na atualidade?
Todos esses temas que acabo mencionar têm importância crucial no debate atual, e as teorias de Marx e Engels continuam a oferecer interessantes pontos de reflexão sobre algumas das questões contemporâneas mais significativas. As publicações da Marx Engels Gesamtausgabe (MEGA²) desmentiram aqueles que afirmaram que Marx era um autor sobre o qual já se tinha dito e escrito tudo. Ainda há muito a aprender com Marx. Espero que esta antologia seja útil tanto para os especialistas que acreditam, erroneamente, saber tudo sobre Marx e Engels, quanto para uma nova geração de leitores que ainda não conhece seus escritos.
* Parte da entrevista acima foi publicada no veículo italiano L’ Intervista Antidogmática. A tradução do italiano para o português é do próprio Marcello Musto.