Neste centenário de Elizabeth Altina Teixeira, a Pró-Reitoria de Assistência e Promoção ao Estudante da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) fez uma postagem nas redes sociais registrando a presença, em 2007, dessa grande mulher na Residência Universitária Feminina (Rufet), situada na rua Diogo Velho, no Centro de João Pessoa. Ao ver a publicação (acesse a postagem), fui tomada por um misto de emoção e nostalgia. Lá estava eu, ao lado de Elizabeth Teixeira, cercada por tantas outras residentes de minha época.
Nos comentários, uma estudante que atualmente mora na residência, Emilly Leite, revelou que não conhecia a história da casa e perguntou se poderíamos tentar construir um resgate histórico. Naquele momento, pensei: a abordagem sobre esta foto está descontextualizada, pois não se trata apenas de uma simples visita de Elizabeth Teixeira à residência universitária, mas o capítulo de uma história protagonizada por jovens mulheres estudantes, que, por gerações, lutaram pela afirmação do direito à moradia estudantil.
Decidimos, primeiramente, criar alguns canais de comunicação para estimular mulheres que passaram pela casa a manter viva essa história por meio de seus relatos, pontos de vista e registros históricos. Assim, criamos uma página no Instagram: @rufetviva e o e-mail: [email protected].
Nosso objetivo é realizar uma retrospectiva sobre a casa, articulando memórias individuais e coletivas para compreender sua trajetória e significados ao longo do tempo. Consideramos essa iniciativa especialmente importante, pois, além de preservar a memória da casa, buscamos identificar e documentar as condições que possam inspirar outras gerações não apenas a habitar esse espaço, mas também a vivenciá-lo e fortalecê-lo como um lugar de resistência política, especialmente no que se refere à luta das mulheres.
Uma experiência coletiva e política transformadora
Fui convidada por Emilly Leite a iniciar esse processo resgatando minha própria passagem pela casa, compartilhando vivências que contribuem para a reconstrução de sua história no período de 2003 a 2009. Além disso, trago fatos anteriores, os quais conheci por meio de discussões políticas dentro da casa e de relatos de ex-moradoras com quem entrei em contato para coletar testemunhos e documentos que subsidiam a escrita deste texto.
Sou Raphaela Ramalho, de Recife. Ao me mudar para João Pessoa em 2003 para estudar na UFPB, vivi diferentes experiências de moradia. Durante dois anos, morei com parentes e, em situação irregular, dividi minha estadia entre a Casa do Estudante do Campus I e a residência feminina do centro, atual Rufet. Somente em 2005, após visita domiciliar de assistentes sociais à minha casa em Recife, consegui, enfim, uma vaga regular na casa feminina. A conquista desse direito foi um divisor de águas para mim, a política de assistência estudantil e a moradia me libertaram do peso do aluguel e do medo do desemprego, permitindo que eu me dedicasse mais aos estudos e conseguisse um estágio remunerado na minha área de estudo.
Quando cheguei à residência, em 2003, vi que o prédio já carregava uma forte marca histórica das mulheres. Ali funcionava a antiga Escola de Enfermagem da Paraíba, como parte do Campi da UFPB, então subdividido no centro de João Pessoa. Até hoje, a parede externa abriga um mosaico de Abelardo da Hora, que rememora as mulheres enfermeiras que lá estudaram e exerceram a profissão. Alguns artefatos ósseos e instrumentos de enfermagem desse período foram encontrados por estudantes da minha geração e enviados para a universidade.
Após a década de 1970, a UFPB foi transferida para o campus no bairro do Castelo Branco. Com essa mudança, a Escola de Enfermagem passou a funcionar como residência universitária feminina, enfrentando diversas tentativas de desativação ao longo dos anos.
Durante a década de 1990, as moradoras da Rufet desempenharam um papel fundamental na resistência contra essas ameaças. Mobilizadas, participaram ativamente do Movimento Nacional de Casas de Estudantes, chegando, inclusive, a ocupar a presidência da organização. Integraram a Secretaria Nacional de Casas de Estudantes (Sence-Brasil) e garantiram representação no Fórum Nacional de Pró-Reitores de Assuntos Comunitários e Estudantis (Fonaprace), ampliando a visibilidade das demandas por assistência estudantil. As estudantes também estabeleceram articulações com o Fórum Nacional da Reforma Agrária e da Questão Urbana (Fonapras), fortalecendo o debate sobre a distribuição de terras, o direito à moradia e a regularização fundiária no Brasil.
O movimento “As Casas São Nossas”, vinculado ao Movimento Nacional de Casas de Estudantes, teve repercussão local nos anos 2000, dando origem ao movimento “A Casa é Nossa” na Rufet, do qual pude participar. Todo o ativismo e a articulação política das gerações anteriores foram fundamentais para a manutenção da casa como espaço de moradia e para a preservação de alguns acessos à assistência estudantil, dos quais também pude usufruir durante minha estadia. Por exemplo, enquanto morava na casa, tinha fácil acesso a consultas psicológicas, ginecológicas e odontológicas na Fundação José Américo, localizada no centro de João Pessoa.
Durante meus primeiros anos na residência, ainda lutava por uma vaga regular e ocupava um quarto de hóspedes no térreo da casa. A infraestrutura era precária, apresentava banheiros coletivos antigos, infiltrações e espaços vazios mal aproveitados. A necessidade de melhorias era evidente, e a estrutura ruim dificultava o cotidiano das moradoras. Apesar das dificuldades estruturais e dos desafios individuais de cada residente, vindas de famílias em situação de vulnerabilidade, a experiência na casa era profundamente educativa e acolhedora. Mesmo na condição de hóspede, minhas colegas dividiam comigo os alimentos recebidos da assistência estudantil, e eu participava ativamente de todas as atividades políticas, além de compartilhar as responsabilidades coletivas. Eu era considerada uma moradora irregular apenas sob a ótica da reitoria, que frequentemente me enviava cartas de despejo exigindo que eu desocupasse a casa. Guardo uma dessas cartas até hoje, como símbolo da minha resiliência.
A organização cotidiana e a solidariedade mútua não apenas fortaleciam os laços entre nós, mas também proporcionavam aprendizados políticos importantes para nossa formação. Durante a semana, fazíamos nossas refeições no Restaurante Universitário (RU), algumas cozinhavam na casa, e, aos finais de semana, recebíamos uma feira, que era dividida de forma coletiva e igualitária, seguindo um sistema de revezamento para a entrega.
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Tenho memórias vívidas desse momento: quando tudo estava pronto para ser distribuído, a responsável da vez anunciava: “Olha a feira!”. Imediatamente, descíamos dos quartos, cada uma com sua bacia em mãos, formando fila para receber os alimentos. Esse ritual ia muito além da simples divisão da comida, ele fortalecia um sentimento de comunidade e solidariedade que unia todas nós.
Tenho lembranças de como o chão era polido com uma cera vermelha pelas funcionárias da casa. Era tão bem cuidado que chegava a escorregar e a brilhar. Esse detalhe, aparentemente simples, refletia a dedicação das trabalhadoras da casa para manterem aquele espaço vivo e acolhedor.
Periodicamente, realizávamos assembleias que se estendiam até tarde da noite para garantir a participação de todas, inclusive das estudantes de cursos noturnos. Nessas reuniões, discutíamos tanto questões de convivência quanto pautas políticas mais amplas.
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Nesse processo, algumas companheiras desempenharam um papel fundamental na articulação da nossa luta, ajudando-nos a compreender melhor os diferentes contextos políticos da residência. Entre elas, destacam-se a ex-moradoras Ana Bernadete Accioly e a professora Dra. Wilma Martins de Mendonça, do Departamento de Letras da UFPB. Da mesma forma, Miriam Brandão, outra ex-residente, que seguiu para estudar Medicina em Cuba após sua passagem pela casa. Durante uma de suas visitas ao Brasil, Miriam participou de reuniões conosco, rememorando as lutas e pautas das residentes que nos antecederam. Nosso objetivo tornava-se cada vez mais claro: transformar aquele prédio em uma residência universitária oficial, garantindo esse direito não apenas para nós, mas também para as futuras gerações.
Conquistas, oficialização da casa e o reconhecimento de Elizabeth Teixeira
O fato de a casa ainda não estar institucionalizada nos colocava sob o risco constante de perder vagas de moradia. Essa preocupação aumentou quando uma parte do edifício foi cedida para a implantação de uma farmácia popular, reduzindo o espaço destinado às estudantes. Nossa resposta foi imediata: organizamos manifestações, acampamos na Reitoria e exigimos audiência com o reitor. Também nos articulamos com o movimento estudantil da Casa do Campus e com o Fórum de Mulheres da Paraíba, no qual tínhamos representação ativa.
Uma das conquistas mais significativas dessa articulação com o Fórum foi a obtenção da autorização para a trasladação dos restos mortais de Anayde Beiriz para a Paraíba. Poetisa, educadora, jornalista e revolucionária feminista, Anayde se suicidou em 1930, após ser alvo de um violento linchamento moral devido ao seu espírito libertário e ao relacionamento amoroso com o jornalista João Dantas. Sepultada como indigente no Cemitério de Santo Amaro, em Recife, sua memória permaneceu esquecida por décadas.
Infelizmente, os restos mortais não foram mais encontrados. No entanto, a autorização concedida por ocasião do centenário de seu nascimento, organizado pelo Fórum de Mulheres com nosso apoio, reacendeu o debate sobre sua relevância para a memória cultural da Paraíba e seu legado como símbolo feminista de resistência e liberdade.
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As residentes também desempenharam um papel fundamental em 2005 ao acolher, na casa, o acervo da Biblioteca Anayde Beiriz, cujo inestimável conteúdo esteve ameaçado por uma ação de despejo e pela falta de recursos de seu fudador e responsável, o historiador Prof. Francisco de Assis Vale, falecido em 2006. Desde 1979, ele mantinha a biblioteca com recursos próprios, assegurando sua preservação por décadas. Sob a proteção das estudantes, o acervo foi resguardado até sua posterior incorporação ao patrimônio da UFPB
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Com tantas reivindicações, articulações políticas e manifestações, outras grandes conquistas foram sendo alcançadas gradativamente no âmbito da residência universitária. Ainda em 2005, conseguimos a reforma da casa, que incluiu a reestruturação das áreas comuns, a construção de banheiros privativos nos quartos e a instalação de internet, um recurso ainda limitado na época.
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O documentário Velha Casa Nova, de Geanne Lima Batista, ex-moradora e participante ativa na luta pela reforma entre 1998 e 2003, registra esse processo de conquista e traz depoimentos de outras ex-residentes, incluindo aquelas que habitaram a casa na década de 1960, resgatando memórias e a trajetória de resistência das mulheres que por ali passaram.
Em 2007, conseguimos uma audiência com o reitor, na qual oficializamos o pedido para que a casa passasse a se chamar Residência Universitária Feminina Camponesa e Educadora Elizabeth Altina Teixeira. Na ocasião, também reafirmamos a solicitação da Medalha do Mérito Universitário em sua homenagem, encaminhada em agosto de 2006 por Sérgio Benevides Felizardo.
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Ambas as solicitações foram aprovadas, e a Resolução nº 28/2007 do Conselho Universitário foi publicada em dezembro, acompanhada da assinatura do termo que oficializou a casa como moradia estudantil.
A foto divulgada pela Prape como uma simples visita de Elizabeth Teixeira à residência em 2007, na verdade, registra um evento político organizado pelas moradoras, intitulado Roda de Conversa com Elizabeth Teixeira. Na ocasião, Elizabeth compartilhou conosco sua história de luta e resistência pela Reforma Agrária. Nesse mesmo dia, também tiramos a foto oficial que integrou a placa de reinauguração da casa. A placa foi fixada na recepção de entrada durante a solenidade de oficialização e renomeação do espaço, até então chamado Casa da Estudante Paraibana.
Durante a ditadura, em seu exílio no Rio Grande do Norte, Elizabeth Teixeira não apenas alfabetizou muitas crianças, mas utilizou a educação como ferramenta de conscientização, incentivando a reflexão crítica sobre a realidade em que viviam. Sua trajetória ultrapassou a luta pelos direitos humanos, consolidando-se também na prática educativa como instrumento de transformação social. A homenagem à Elizabeth Teixeira, feita por meio da renomeação da residência universitária, reflete uma profunda conexão entre educação e resistência, reafirmando seu legado como educadora e militante. Além disso, a casa sempre abrigou, em sua maioria, mulheres do campo que deixavam suas cidades para estudar em João Pessoa. Muitas delas, inspiradas pelo legado de Elizabeth Teixeira, não apenas buscavam formação acadêmica, mas também se engajavam na educação e na militância pela moradia e reforma agrária.
A solenidade de renomeação da casa contou com a presença de entidades do movimento estudantil e lideranças acadêmicas e foi organizado pelas mulheres da casa, com o forte apoio da Profa. Wilma Martins de Mendonça, Fórum de Mulheres da Paraíba e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que na ocasião realizou uma mística emocionante em homenagem a Elizabeth Teixeira. Durante a solenidade, exibimos um documentário sobre a vida da militante paraibana e houve o lançamento do livro Elizabeth Teixeira: Mulher da Terra, da professora Ayala A. Rocha. No entanto, nossa placa foi arrancada da parede, apagando um registro fundamental da memória coletiva das estudantes e do reconhecimento da luta de Elizabeth Teixeira.
O silenciamento da memória
Uma placa de ferro com o antigo nome da casa ainda permanece fixada no portão de entrada, mas a placa que registrava a oficialização e renomeação da residência foi removida da recepção. A ausência desse registro não representa apenas a perda de um objeto físico e histórico, mas também o apagamento de uma trajetória de resistência coletiva, impactando diretamente a mobilização estudantil atual da casa.
Emilly Leite relata que, atualmente, além da falta de acesso à memória da residência, há uma grande dificuldade em articular politicamente as moradoras na luta por melhorias na infraestrutura, que se encontra comprometida, e pela ampliação da assistência estudantil básica, especialmente no que diz respeito à alimentação. Diferentemente do meu tempo, as moradoras não recebem mais alimentos na casa, contando apenas com um auxílio mensal de R$ 580,00 para cobrir suas despesas alimentares e R$108,00 para transporte. Esses valores são claramente insuficientes diante do alto custo dos alimentos e de outras necessidades essenciais, como higiene, medicamentos e lazer.
Embora possam almoçar e jantar no Restaurante Universitário (RU) durante a semana, muitas estudantes têm relatado insatisfação com a qualidade do serviço prestado. A administração atual do restaurante, contratada durante a gestão do ex-reitor Valdiney Gouveia, tem sido criticada pela baixa qualidade das refeições oferecidas. A comida não apenas deixa a desejar em sabor e qualidade, mas também é extremamente cara para os estudantes não residentes. Uma única refeição no RU custa R$ 15,01, tornando-se a mais cara entre todos os Restaurantes Universitários do Brasil.
Essa sequência de descasos com a memória e a assistência estudantil reflete a própria forma como a universidade foi estruturada, atravessada por disputas políticas, pela busca de validação de gestões e reitores, e pelos resquícios autoritários que ainda moldam suas instâncias institucionais. Esse cenário se intensificou durante a gestão de Valdiney Gouveia (2020-2024), período marcado pelo agravamento das dificuldades no acesso a direitos básicos e pelo fortalecimento da repressão aos movimentos estudantis. O silenciamento sobre o legado da casa pode estar ainda vinculado a diversos fatores institucionais e políticos, incluindo a negligência na preservação da memória estudantil e, possivelmente, a resistência de setores conservadores em reconhecer e valorizar as lutas feministas e populares.
Diante disso, questionamos: por que esse legado tem sido silenciado? Quem retirou e onde está a placa de reinauguração da casa? Quais os setores e pessoas responsáveis pela preservação da nossa memória na UFPB?
Esperamos que essas interpelações cheguem ao novo reitorado, das profas. Terezinha Domiciano e Mônica Nóbrega, e que elas, enquanto mulheres, reafirmem o compromisso institucional da universidade com a preservação da história estudantil feminista e do legado de Elizabeth Teixeira. Mais do que isso, que a memória estudantil seja reconhecida, definitivamente, como um valor perene e inegociável na universidade.
Exigimos respostas e convidamos todas as moradoras e ex-moradoras a compartilharem seus registros, fotos e depoimentos para que possamos, juntas, reconstituir essa trajetória. Nosso propósito é fortalecer a memória coletiva da residência, engajando as atuais moradoras nessa luta histórica, antes que ela seja apagada ou apropriada por outras narrativas que não representem a resistência das mulheres que ali vivem e viveram.
Agradecimentos Agradeço à querida Profa. Wilma Martins de Mendonça, pelo seu irrestrito e incansável apoio, tanto no passado quanto no presente.
Em nome de todas as novas moradoras da RUFET, expresso meu sentimento de esperança e profunda gratidão a Emily Leite pelo convite para realizar este resgate histórico. Em nome de todas as ex-residentes, Miriam Brandão, sempre solícita e aguerrida na luta feminista na Paraíba, recebe aqui minha sincera admiração.
Por fim, um agradecimento ao professor Charliton Machado, que leu cuidadosamente este escrito e trouxe memórias de sua militância, entrelaçando-as com alguns dos fatos aqui relatados.
Comissão de resgate da memória Rufet
Raphaela Ramalho (ex-moradora): 83 999571261
Miriam Brandão (ex-moradora): 83 996420614
Emilly Leite (moradora): 83 996328136
Profa. Wilma Martins: (83) 993344992
Instagram: @rufetviva
E-mail: [email protected]
*Raphaela Ramalho é doutoranda em geografia pela UFPB e ex-moradora da Rufet/UFPB
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