Ontem (25), tivemos o anúncio de um grande avanço para a saúde pública brasileira, uma vacina 100% nacional e de dose única contra a dengue, produzida pelo Instituto Butantã, fruto de um edital do Programa de Desenvolvimento e Inovação Local do Ministério da Saúde.
Também ontem, o Brasil se despediu da primeira mulher ministra da Saúde, Nísia Trindade, que também foi a primeira, em 120 anos, a presidir, entre 2017 e 2022, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), instituição histórica e referência internacional de ciência e tecnologia.
Nísia é doutora em sociologia (1997), mestre em ciência política (1989) pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj – atual Iesp) e graduada em ciências sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj, 1980). Durante a pandemia de covid-19 no Brasil, ela, corajosamente, conduziu a Fiocruz como um importante agente de promoção de saúde e informação no país. Suas declarações, na época, fizeram um enfrentamento necessário e histórico à desinformação propagada pelo bolsonarismo.
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Ela assume outro desafio no cenário após a pandemia, sucedendo, no ministério, quatro nomes do governo Bolsonaro — Mandetta, Teich, Pazuello e Queiroga —, que abertamente desrespeitaram os três pilares, conquistados pelos movimentos populares, que sustentam o Sistema Único de Saúde (SUS): universalidade, equidade e integralidade.
Esses pilares também instituem na Constituição Federal de 1988 que o SUS deve ser financiado pelo Estado, sendo um direito de todos os brasileiros, independentemente de raça, sexo, ocupação ou outras características sociais ou pessoais. Nísia topou o desafio não só de assumir um ministério, mas de comandar a reconstrução da saúde pública no Brasil, após um governo que tentou abertamente desmoralizar, precarizar, desmontar e privatizar o SUS.
Balanço positivo
Em seus dois anos de ministério, ela teve um desempenho brilhante, desde a Política Nacional de Promoção da Saúde, até recordes em especialidades, como cirurgias. Ainda como resposta à pandemia no Brasil, Nísia criou um Centro de Inteligência de Estado da Saúde, programa para preparação e prevenção para possíveis epidemias, com uma linha de apoio ao desenvolvimento de vacinas, não só em relação ao coronavírus, mas também a outras ameaças, como a gripe aviária, H5N1’.
Nísia topou o desafio de comandar a reconstrução da saúde pública no Brasil
Logo no início de seu mandato, assumiu e foi a campo pelo fortalecimento da saúde indígena, ajudando a reestruturar a assistência ao povo Yanomami, que sofreu um processo de desmonte entre os anos 2019 e 2022 e foi símbolo do ataque do bolsonarismo na saúde do povo.
Nísia investiu na atenção primária, com 15,9 mil novos Agentes Comunitários de Saúde para a composição de equipes de saúde da família. Ampliou e conquistou a gratuidade, retirando a comparticipação dos medicamentos do Programa Farmácia Popular. Alcançou recorde de investimento em Saúde Bucal, com o valor de R$ 4,8 bilhões em 2024 – três vezes mais que em 2022.
Chegou a outro recorde, com um total de mais de 14 milhões de cirurgias no ano de 2024 no Brasil, coordenadas pelo Ministério da Saúde em parcerias com estados e municípios. Também implementou um sistema de redução das filas para cirurgias em 2023, que já dá grandes resultados.
Políticas para mulheres e negritude
Além das iniciativas gerais, teve prioridade sobre a vida das mulheres, com o investimento recorde de 52 milhões para exames de pré-natal no SUS, nova estratégia para reduzir a mortalidade materna em 25% até 2027 e estratégias específicas para reduzir em 50% a mortalidade de mulheres pretas.
Ela também inaugurou uma estratégia de vacinação de mulheres jovens contra HPV, instituiu a prioridade da proteção de gestantes e bebês com a vacina que previne a bronquite, principal causa de morte até seis meses no Brasil.
Mesmo com os avanços, habilidades da ministra eram constantemente e publicamente questionadas
Firmou uma parceria com o Ministério das Mulheres no programa Feminicídio Zero e um pacote de ações em parceria com o Ministério da Igualdade Racial, com a Primeira Política Nacional de Saúde Integral da População Quilombola e o Programa Saúde sem Racismo, com prioridades na saúde integral da mulher negra e redução da mortalidade materna, infantil e fetal, políticas de saúde mental e a promoção da saúde sexual, baseada na diversidade.
Contradição
Apesar de feitos impressionantes, Nísia nunca foi um consenso entre a alta cúpula do governo e era lida nos corredores como “técnica demais” e “política de menos”. Para alguns, essa era uma vantagem, mas, para outros, uma desvantagem. Suas habilidades eram constantemente e publicamente questionadas.
No último período, Nísia foi ainda vítima de uma campanha difamatória, dias antes de sua demissão, e vinha sofrendo ataques da direita. O governo federal se viu pressionado também pelo centrão, que pedia um ‘viés’ mais político para a saúde.
Que ela tem muitas habilidades técnicas, tanto o seu currículo quanto os feitos no período à frente da Fundação Oswaldo Cruz e os recordes no ministério não deixam dúvida. Mas atribuir a característica de “pouco política” para alguém que fez tamanho enfrentamento ao governo Bolsonaro durante a pandemia, que defendeu incansavelmente a ciência em um momento tão delicado e que teve habilidade para conduzir uma grande equipe, elaborar e conseguir tamanhos financiamentos, me parece possível apenas quando a pessoa que assume o cargo é uma mulher.
Dança das cadeiras
Nesta gestão, o presidente Lula (PT) já demitiu duas ministras mulheres e escalou dois homens para os seus cargos — Ana Moser, trocada por André Fufuca (PP) no Ministério dos Esportes, e Daniela Carneiro, que deu lugar a Celso Sabino (União) no Turismo. Além da presidenta da Caixa Econômica Federal, Rita Serrano, substituída por Carlos Antônio Vieira Fernandes. Na dança das cadeiras, quem roda primeiro são as mulheres, mais uma vez.
Hoje, quem assume o Ministério da Saúde é um grande quadro da política e da saúde, um amigo e defensor do SUS, Alexandre Padilha. Mas que, neste momento, precisava abrir espaço e deixar livre seu cargo de Ministro das Relações Institucionais.
Essa foi a escolha do governo, mesmo que isso custasse o cargo de Nísia Trindade. A forma tão descuidada e desrespeitosa como o governo conduziu e anunciou a sua saída denuncia uma política patriarcal, e os acordos velados de manutenção de poder entre homens, incluindo os de esquerda também.
Um mau presságio, simbólico e objetivo, para a vida das mulheres na reforma ministerial. Com a saída de Nísia, perde a saúde pública e perdem todas as mulheres. Estaremos atentas com o que vem por aí, pois nós mulheres que elegemos, construímos e defendemos, com críticas construtivas, o governo, que é nosso de direito, seguiremos fazendo o nosso papel e colocando os dedos nas feridas que seguem abertas e em carne viva.
Viva o legado dessa mulher corajosa, pesquisadora e defensora da ciência e do SUS.
Júlia Louzada é psicanalista e pesquisadora vinculada ao Laboratório de Psicanálise, Sociedade e Política da USP.
Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente representa a linha editorial do jornal Brasil de Fato