Se a abordagem funda o objeto, em se tratando de fotografia em movimentos, então, serão as decisões sobre limites, bordas e contorno, em última instância, responsáveis por criar o filme.
E tanto é verdade que, quando a sequência de abertura em Emília Pérez utiliza o recurso de focalização — relativamente previsível – para nos conduzir da imensidão de uma presumida Cidade do México à contiguidade física e simbólica em que se encontra Rita, pensei: “lá vem!”.
Não demorou muito para que o frenesi típico de certa qualidade de vaudeville rompesse dos planos fechados para expandir o número dançante e sussurrado que nos informa a desgraça da personagem. Desgraça que, pretendendo-se justificativa, funciona mesmo como pretexto para que Emília, seu nome morto, sua situação embaraçosa e o plano que tenciona executar sejam introduzidos. Em um intervalo relativamente curto na disposição das duas horas de filme, as motivações pelas quais a protagonista recruta advogada através de sequestro, coação e aliciamento são reveladas: dar sequência à sua transição de gênero, nos termos de uma cirurgia de redesignação.
Seria admissível sustentar que essa compressão de eventos dramaticamente relevantes se deve à necessidade de instalar a crise inaugural o quanto antes, a fim de capturar a audiência e investi-la no desenrolar do conflito. Ocorre, todavia, que a resolução simples desse “imbróglio” passa por um feirão da cirurgia plástica, uma artificial resistência ética vencida com mais coação, muito dinheiro, despojo e pelo do descarte da vida pregressa de Emília.
Adiante, outros conflitos e eventos se insinuam para que, resolvidos, apenas ensejem mais diligências, de forma sucessiva e apenas frouxamente articulados aos motivos de Emília durante seu nome morto.
E é por isso que saímos do cinema com a sensação de que, apesar dos esforços pirotécnicos, das performances bem executadas e de uma qualidade técnica digna de nota, o filme é frágil.
É porque ele se recusa a aprofundar expedientes dramáticos, se nega a testar mecanismo pelos quais pode conferir maior elasticidade ao conjunto através da aposta em ao menos um dentre esses tantos eventos, conflitos e situações dramáticas cuja eficiência é episódica, nunca estrutural.
Precisamos retomar o problema da abordagem
Como professora de narrativa e dramaturgia em audiovisual, minha tarefa é refletir com meus alunos como a escrita do roteiro, em todas as fases, concretiza a perspectiva dramática sobre a materialidade do filme propriamente considerado luz, quadro, campo e textura, transições, direção, elenco, contracena, etc., e como a estória se conforma e se atualiza, pois, nesses termos.
Não tem mistério: se há empenho em construir personagens complexas em camadas e fraturas, universos ficcionais potentes em sua inteireza, diversidade e possibilidades, situações e eventos encarados na multiplicidade do que podem produzir e reagir, temos um ótimo começo. Em seguida, cabe flexionar, experimentar, resenhar, desenvolver e descartar, até que uma certa dinâmica combinatória, flexões e sintaxe amadureçam a ponto de se verificar a funcionalidade quase orgânica que brota da lapidação da matéria bruta.
Para isso, é necessário mais que tempo – muito importante –, mas uma postura de perscrutador, que desconfia do que sabe, do que parece familiar e é pressuposto. É esforçando-se em conhecer tudo o que compõe o material bruto que se extraem as possibilidades; somente por tentativa e erro, aproximação e recuo que se descortinam as estratégias mais produtivas, originais e potentes para o desenvolvimento de uma história.
Laboratório começa no roteiro e exige humildade
Emília Pérez nos dá a conhecer um México tão superficial quanto o constrangimento dos planos fechados em almoços curtos numa feira folclórica é capaz; entrega um processo de transição de gênero enciclopédico o suficiente para resolver genitália e silicone como identidade; entra e sai de uma trama de assassinato que assola países da periferia do capital por quem os assiste da tranquilidade que o sensacionalismo midiático europeu proporciona; se satisfaz com a certeza que o estereótipo da latina inconsequente e seu furor sexual pintados como despudor são tão reais que chegam para mais sequestro e assassinato.
No mais, é a redução da compleição dramática de três personagens femininas que só agem porque reagem aos seus desejos, instintos e frustrações.
Diante da recusa à profundidade no desenvolvimento dramático de temas extremamente delicados – no mínimo -, restam números de revista mal ajustados. Uma sucessão de diálogos disfuncionais cuja explanação serve apenas para plasmar estereotipais, transições rápidas e irregularidades dos planos e das cenas, sequências de elo frágil, filtro amarelo (!), fumaça (!), planos fechados constrangidos por parecer tudo e qualquer coisa, menos o México. Uma lástima.
Também notei falta do Zócalo, da imponência do Museu de antropologia, dos murais, da vastidão de Teotihuacan, do centro histórico e do Agave. Mais falta ainda, entretanto, eu senti do México que tive a certeza de que não conheci nem mesmo um pouco no afã de experimentar tudo o que pude em menos de duas semanas. Seguramente passaria meses e até anos, talvez. E porque eu amo e acima de tudo respeito seu povo, sua terra e cultura, nem assim eu aceitaria fazer um filme tão próprio, tão deles.
Por que se cometeu ‘Emília Pérez’?
Provavelmente porque, em função de muitos fatores, chegou o “cansaço” de permitir que o subalterno se defina. Tem sido unicamente o incômodo em perder a licença de determiná-lo e lucrar sem desconfortos? Ou foi a constatação de que a perspectiva detida, interessada e identificada tem entregado mais densidade em arte, escancarando, assim, a sua necessidade?
Em tempos de Trumps, bombas, golpes e terapias de conversão, quando termos como energia masculina voltam a circular com força de determinação, Emilia Pérez parece, enfim, soltar a voz para dizer, sem rubores e com desfaçatez: Devolva-me o direito à exotificação!
*Dani Balbi é mulher transexual, deputada estadual pelo PCdoB do Rio de Janeiro, roteirista, dramaturga, contista e romancista.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.