Neste quarto artigo, proponho que partamos de dois pressupostos fundamentais: o primeiro é de que a sociedade brasileira esteja sensibilizada e disposta a enfrentar de forma eficaz e sustentável os desafios da mobilidade urbana. O segundo é que, esta mesma sociedade, deseje que as políticas de mobilidade sejam inclusivas e instrumento de combate as desigualdades expressas na forma como cada classe social usufrui do espaço urbano
Atendidos os pressupostos, estão criadas as condições para que governos e sociedade proponham e implementem um conjunto de ações visando enfrentar as causas da crise da mobilidade. Ocorre que, apenas desejo e boa vontade não dão conta do tamanho deste desafio. Para além de querer fazer é preciso saber o que fazer. Neste capítulo, apresento um conjunto de políticas públicas estruturadas através de estratégias e de medidas que, se implementadas de forma articuladas, podem contribuir para uma mobilidade eficiente, sustentável e para todas as pessoas.
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ESTRATÉGIA 01: Organizar as políticas de mobilidade a partir da expansão e modernização dos sistemas públicos de transporte
Uma das soluções mais eficazes para qualificar a mobilidade para todas as pessoas, é organizar a estratégia de mobilidade a partir da expansão e modernização dos sistemas públicos de transporte. Compreende-se como sistemas públicos, todos aqueles que são concebidos, organizados, cujas tarifa são fixadas e a sua gestão é feita pelo poder público.A estratégia é pensar e organizar as cidades de tal forma que as pessoas não necessitem do uso do transporte individual. Para isso, recomenda-se as seguintes medidas:
Medida 01: o primeiro modal e o mais abrangente, é o transporte coletivo que deve ser pensado de forma integrada em seus diversos modais: microônibus, ônibus urbano, ônibus seletivos, trens urbanos e metrôs. Para isso, é preciso priorizar o transporte coletivo, seja nos investimentos, seja na organização das vias. Isso envolve a implantação e ampliação de corredores exclusivos para circulação do transporte coletivo, conectar esses corredores através de terminais ou a pontos de conexão preparados e adaptados para que os usuários possam migrar de um modal para outro com segurança, rapidez e conforto. É necessário também, investir na aquisição de ônibus elétricos, com acessibilidade, confortáveis e seguros, e em tecnologias de operação dos serviços que permitam ajustes e atualização, em tempo real, dos itinerários e horários das viagens, condições essenciais para garantir a eficiência e, por consequência, a atratividade do sistema público em relação ao transporte individual. Essas medidas requerem uma estreita articulação entre as políticas de expansão e modernização do transporte coletivo, com as diretrizes dos planos diretores que devem facilitar a circulação através dos modos coletivos. Outra questão chave é a redefinição do modelo de concessão dos serviços para a iniciativa privada. Como já abordamos no primeiro capítulo, o atual modelo de concessões está falido e é necessário redefinir o papel do setor privado neste processo de expansão e modernização do transporte coletivo, mas isso é tema para o último capítulo.
Medida 02: ainda em relação ao transporte coletivo, outra medida importante de ser analisada é a adoção da tarifa zero. Este tema tem ganho destaque, especialmente após a pandemia da Covid-19 que colapsou boa parte dos sistemas municipais de transportes. A ideia de eliminar a cobrança de tarifas para o uso dos transportes públicos apresenta uma série de vantagens e alguns riscos que precisam ser mitigados.
Uma das principais vantagens é a ampliação e a democratização do acesso ao transporte público para todas as pessoas. Com a gratuidade, um número maior de pessoas, especialmente as de baixa renda, pode utilizar os ônibus sem ter a preocupação com o custo da viagem. Essa medida gera dois impactos diretos e imediatos. Um primeiro é o aumento da circulação de pessoas nas cidades e o segundo é o aumento da capacidade de compra destas pessoas, com a eliminação do custo tarifário em seu orçamento. Esse impacto é maior nas famílias de menor poder aquisitivo, uma vez que terão mais oportunidade de se deslocar para escolas, empregos e serviços públicos e terão mais recursos para atender suas necessidades essenciais.
Só para se ter uma ideia, em Porto Alegre, de acordo os cálculos da EPTC para a tarifa de 2024, o volume de recursos a serem injetados na economia local seria na ordem de R$ 62 milhões mensais. Esses valores, certamente, serão utilizados na economia local, gerando aquecimento no comércio e nos serviços o que, consequentemente, irá influir no aumento da arrecadação do próprio município.
Evidente que, para proporcionar a tarifa zero, é necessário que haja novas fontes de recursos para arcar com os custos dos serviços. A principal destas fontes deve ser o próprio orçamento público municipal que hoje já subsidia a maioria das tarifas urbanas no Brasil. Usando novamente Porto Alegre como referência, nos últimos cinco anos foram repassados dos cofres públicos para as empresas privadas, o valor de R$ 610 milhões de reais, uma média de R$ 10 milhões mensais.
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FONTE: Secretaria Municipal de Mobilidade Urbana de Porto Alegre.
É sabido que os municípios estão saturados de responsabilidades e com a menor participação na redistribuição do bolo tributário. Isso significa dizer que, as medidas de qualificação da mobilidade passam pela reforma tributária e pelo comprimento do artigo 6 da Constituição que garante o transporte coletivo como serviço essencial. Enquanto isso, é possível acessar recursos federais através do PAC 2025 anunciado pelo Presidente Lula no dia de hoje (25/02/2025) que prevê 8,4 bilhões de reais para renovação da frota de ônibus, implantação de corredores exclusivos, estações de embarque e desembarque, terminais, ciclovias e demais equipamentos de mobilidade. Estes recursos são por meio de financiamento para órgãos públicos ou para iniciativa privada, com juros de 5,5% ao ano e prazo de até 20 anos para a amortização da dívida.
Outra forma de subsidiar a tarifa zero pode vir da criação de novas fontes, como a taxa mobilidade a ser aplicada para empresas que tenham um número maior de funcionários e que deixarão de gastar com a aquisição do vale transportes. Outra forma, como citamos anteriormente, é o subsídio cruzado, onde parte da receita de outros modais, como os estacionamentos rotativos ou mesmo dos estacionamentos públicos, pode ser revertida para pagar os custos dos serviços de transporte coletivo.
O principal risco da tarifa zero é o equilíbrio entre o ritmo do crescimento da demanda ao ritmo da implementação das novas fontes de financiamentos. Com a tarifa zero, o crescimento da demanda é exponencial o que exige, num primeiro momento, a ampliação da oferta, a criação de novas linhas, novos horários e a aquisição de mais veículos. Esse input (aquilo que entra, que se insere num processo, trabalho ou sistema, para se obter um produto final, como a força de trabalho, o consumo de energia, a mão de obra ou os equipamentos) precisa ser planejado para que os pontos positivos da proposta não sejam invisibilizados em função do aumento da lotação dos veículos no início da mudança. Outra preocupação é a garantia da qualidade dos serviços prestados. Não que com a tarifa zero os serviços piorem, até porque atualmente eles são muito ruins. Mas, por ser gratuito, pode haver um desleixo com a qualidade, por isso, é fundamental que a tarifa zero seja pensada e implementada como estruturadora da política de mobilidade, como exemplo de uma nova concepção de acesso ao direito de mobilidade e não como uma ação isolada, paternalista ou populista.
Medida 03: como elemento complementar ao transporte coletivo, deve-se organizar e integrar os transportes públicos seletivos e individuais, como é o caso das lotações, dos serviços de taxi e dos serviços de transporte individual por aplicativos. Neste último caso, tenho defendido a criação de aplicativos públicos locais, capazes de atender as necessidades das comunidades e de remunerar de forma mais justa os motoristas, que atualmente são explorados pelas big techs, são empresas de tecnologia e inovação que dominam o mercado global. Elas são também conhecidas como gigantes de tecnologia. As principais são a Alphabet (Waze, Google e Youtube), Amazon, Apple, Meta (Facebook, Instagram e Whatsapp) e Microsoft e a chinesa Didi Chuxing (99Taxi) Esses serviços devem ser incorporados aos sistemas públicos de transportes de tal forma que haja espaços reservados para estacionamento, embarque, desembarque e acesso privilegiado a pontos tradicionais de atração de viagens. É necessário reconhecer que os aplicativos trouxeram segurança, previsibilidade e confiança dos usuários nestes sistemas. É preciso incorporar estas características aos serviços públicos de transportes.
ESTRATÉGIA 02: Fomento a Mobilidade Ativa
Com a crise da mobilidade, espontaneamente, muitas pessoas passaram a procurar opções de trabalho, estudo e lazer que exijam menos deslocamentos. A radicalização deste modelo é a cidade do não transportes, aquela em que, todas as necessidades das pessoas são acessíveis a pé, de bicicleta, de patinetes ou skate. Soma-se a essa visão, a procura cada vez maior, por um modo de vida saudável, através de caminhadas matinais e de atividades ao ar livre como exercício ou lazer. Para a mobilidade, esses deslocamentos não motorizados, são denominados de Mobilidade Ativa, porque é uma forma de deslocamento, de atividade física e de posicionamento político na defesa de uma vida sustentável. A mobilidade ativa deve ser incentivada, por isso proponho as seguintes medidas:
Medida 04: a ação mais importante para promoção da mobilidade ativa é implementação do plano cicloviário. Organizar os deslocamentos que já são feitos por bicicletas, primeiramente, nos bairros, periferias e nas zonas industriais, onde o uso da bicicleta é cotidiano. Depois, expandir para todo sistema viários principal, oferecendo uma rede de ciclovias ou ciclofaixas, devidamente sinalizadas, bem equipadas, com fiscalização permanente, acompanhada por campanhas de fortalecimento deste modal de deslocamento. Fundamental não pensar apenas na circulação dos ciclistas. O deslocamento visa atender a um interesse, um lugar onde se destina. Neste destino, é fundamental haver locais específicos e seguros para o estacionamento das bikes, da mesma forma, nos locais de moradia, para sua guarda. Ainda neste sentido, é fundamental o estímulo aos programas de bicicletas compartilhadas como política pública, uma solução viável, aliando saúde, economia e sustentabilidade.
Medida 05: os últimos dados de pesquisa de origem e destino indicam que os deslocamentos a pé cresceram, chegando a 14% do total, segundo dados do Censo IBGE 2020. Esta evolução é resultado da mudança de comportamento de parcela da sociedade que passou a optar por trabalhar próximo de casa ou a morar próximo ao trabalho. Com a evolução tecnológica, o trabalho home office também impactou na cultura das caminhadas porque as pessoas, passando mais tempo em casa, podem sair, ao longo do dia, para atividades no próprio bairro. Neste sentido, planejar e implementar melhorias na infraestrutura das calçadas, promovendo alargamentos, a retirada das barreiras arquitetônicas e a implantação de piso tátil, principalmente nos trajetos do local de moradia até os principais polos de atração de viagens e aos pontos de acesso ao transporte coletivo, são fundamentais. O tratamento dos cruzamentos, com redução da largura das pistas e a implantação de faixas de seguranças em elevação, também promovem conforto e segurança para os deslocamentos a pé. Calçadas bem conservadas, largas, acessíveis, bem-sinalizadas e que conectam as pessoas com seus interesses, são essenciais para garantir que se desloquem de forma confortável e segura.
ESTRATEGIA 03: Adoção de Tecnologias de Mobilidade Inteligente
Investir na cidade inteligente, onde a tecnologia auxilia na operação do transporte público e na gestão do trânsito, pode gerar um impacto positivo muito significativo. Cidade inteligente ou smart city é aquela que usa tecnologia para promover o desenvolvimento econômico e social, e melhorar a qualidade de vida dos seus habitantes. O uso de tecnologias de mobilidade, como aplicativos de transporte e sistemas de monitoramento em tempo real, otimizam a gestão e a integração dos vários serviços, melhorando a experiência dos usuários, por isso, proponho as seguintes medidas:
Medida 06: a integração entre diferentes modais de transporte, como ônibus, metrôs, bicicletas e até mesmo caronas, é fundamental para uma mobilidade mais eficaz. É preciso que os usuários dos serviços de transportes não tenham qualquer restrição na integração intermodal, sejam físicas, econômicas ou institucionais. Por isso, a adoção de um cartão mobilidade, que permita a transição entre modalidades sem a necessidade de pagamentos adicionais de tarifa, pode facilitar a vida dos usuários e reduzir a dependência do transporte individual.
Ao possui um cartão mobilidade, o usuário poderá acessar a qualquer um dos serviços, pagando a tarifa correspondente que será abatida da carga pré-paga. Nas hipóteses dos serviços gratuitos ou com subsídios, a própria tecnologia permite o acesso, sem cobrança ou com o débito do valor reduzido. Outra vantagem desta medida é viabilizar o subsídio cruzado, onde as receitas oriundas da utilização dos estacionamentos integrados, por exemplo, podem ser usada para reduzir as tarifas dos outros modais de transporte.
Para o cartão mobilidade funcionar, é necessária a constituição de um arranjo institucional, econômico e de gestão que integre os vários agentes públicos e privados que operam os serviços de mobilidade, tantos nas cidades como nas regiões metropolitanas, viabilizando, por exemplo, uma câmara integrada de compensação entre os vários modais e serviços.
Concluo este capítulo ressaltando que, essas medidas precisam estar articuladas e integradas entre si e que, para isso, é fundamental uma estrutura de gestão pública com capacidade real de planejamento, gestão, controle e fiscalização. Mas esse tema, junto com a questão da relação com o setor privado, iremos tratar no próximo e último capítulo. Até lá.
* Mauri Cruz é advogado socioambiental, especialista em direitos humanos, diretor executivo do Instituto de Direitos Humanos – IDhES e membro do CAMP – Escola do Bem Viver. Sócio da Usideias Consultoria.
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
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