Sair para manifestar nas ruas é uma tradição histórica na Venezuela. Mas uma manifestação específica marcou um ponto de virada na história do país e marcou a vida de muitos venezuelanos. O movimento conhecido como Caracazo aconteceu nos dias 27, 28 e 29 de fevereiro de 1991 e, mesmo terminando fracassado, abriu esperança de novos tempos na Venezuela.
Raphael Humflam participou desse momento. O hoje funcionário público era estudante na época e saiu às ruas para protestar. Ele já fazia parte de grupos revolucionários de esquerda e sentia, desde o dia anterior, que o movimento poderia ganhar força. Em 26 de fevereiro daquele ano, os estudantes foram às ruas contra o acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) firmando um empréstimo condicionado a uma política neoliberal.
De acordo com ele, havia uma sensação generalizada de insatisfação na população já que, além da decisão de se aproximar do FMI, a inflação aumentava e o governo tomava cada vez mais medidas que afetavam a qualidade de vida da população. Segundo Humflam, os estudantes fizeram o protesto e havia a certeza de um confronto com a polícia nos dias seguintes, mas não da maneira que foi.
Em 27 de fevereiro, manifestantes começaram a sair para as ruas sem uma coordenação ou uma orientação de um movimento popular específico. Mas a bandeira era clara: derrubar o governo de Carlos Andrés Perez. Humflam entrou em um ônibus com outros 9 estudantes para ir ao Centro da capital Caracas. O veículo foi parado pela polícia e todos foram presos. No total, organizações populares e familiares de vítimas contabilizaram 396 mortes a partir dos confrontos daqueles dias.
Mesmo com muita repressão, eles foram soltos ao final do denominado Caracazo. Para Humflam, o movimento perdeu ao longo de três dias a sua cara original, de protesto contra o governo, por ter “saído de controle”. Ele entende que houve uma descaracterização do que os militantes de esquerda aspiravam para aquele momento.
“Foi um momento limite. Nós como estudantes sabíamos que, de um momento para o outro, poderia haver um confronto. Não dessa maneira, porque as autoridades acabaram massacrando os manifestantes. O Caracazo não foi um movimento próprio, foi um acontecimento porque toda Caracas saiu às ruas. Havia um trabalho em torno da ideia de tomar o poder, mas se perdeu um pouco a cara original”, afirmou ao Brasil de Fato.
Mesmo depois de soltos, os estudantes tiveram as casas revistadas e passaram por abordagens policiais nas ruas nos dias seguintes. Segundo Humflam, houve uma frustração com o fim daquele movimento que trouxe muita esperança para os manifestantes. Ainda assim, ele afirma que o acontecimento abriu uma porta na sociedade venezuelana que foi escancarada no movimento de 1992, quando surgiu o ex-presidente Hugo Chávez.
“Vimos como um fracasso naquele momento, mas, com o 12 de fevereiro de 1992, ficamos com a sensação de que havia um triunfo naquele movimento. Não só por termos visto uma movimentação popular, mas também por ter aberto uma porta para outra movimentação e mostrar que a sociedade venezuelana precisava de uma mudança de rumo”, afirmou.
Militares insurgentes
Reinaldo Hugo servia o Exército na ocasião do Caracazo. Ele já não estava de acordo com a política do então presidente Carlos Andrés Pérez, e, depois de ver o massacre promovido pelos próprios militares, decidiu se somar aos manifestantes para ajudar naquele processo. Naquele momento, outro fator pesou para os militares que queriam protestar: os baixos salários e as condições de trabalho.
De acordo com Hugo, as ruas amanheceram tensas em 28 de fevereiro. Ele e outros 50 militares testemunharam o que aconteceu um dia antes e saíram para protestar. Eles circularam pelo Centro da cidade, mas não havia naquele momento uma organização do movimento.
Alguns de seus companheiros foram presos, mas Hugo conseguiu se manter nos protestos até o final. Muitos deles tiveram que deixar o país e foram perseguidos. Hugo passou a ser perseguido e sofreu uma sanção dos militares que envolveu uma série de trabalhos nos anos seguintes, além de ter que sair da sua casa no bairro de Cátia e se mudar para o bairro de El Valle.
Hugo também entende que houve uma abertura para outra movimentação que deu espaço para Hugo Chávez. “Houve uma repressão, muitos foram perseguidos. Como estávamos contra o governo, fomos muito prejudicados. Eu saí para as ruas porque vi como estava massacrando o povo no dia 27 de fevereiro. Foi um massacre que não colocou a luz pública. Mesmo tendo essa tristeza com o fim do movimento, havia uma luz no fim do túnel”, afirmou ao Brasil de Fato.
O Caracazo
Em 1989 chegava ao fim a chamada década perdida para os países latino-americanos. Dívidas públicas altas e uma recessão econômica marcaram a última etapa dos anos 1980 para a América do Sul. Neste contexto, a Venezuela elegeu Carlos Andrés Pérez como um nem tão novo presidente. Ele já tinha comandado o país de 1974 a 1979 em uma época de forte crescimento econômico a partir da economia petroleira e prometeu retomar o período que ficou marcado como “Venezuela saudita”. No entanto, Perez implementa uma liberalização na economia a partir de um memorando assinado com o Fundo Monetário Internacional (FMI).
No dia 25 de fevereiro de 1989, o governo assina o documento com o fundo para a liberação de US$ 4,5 bilhões em empréstimo. Em contrapartida, promoveria um pacote que incluía a desvalorização da moeda venezuelana, o bolívar, redução do gasto público e do crédito, aumento nos itens de primeira necessidade e um reajuste que dobraria o preço da gasolina. O problema é que nada disso havia sido mencionado para a população durante a campanha eleitoral.
Dois dias depois, em 27 de fevereiro, as manifestações começaram bem cedo, antes das 6h, dispersas por Caracas e cidades vizinhas como La Guaira, Catia La Mar e Guarenas. O que, a princípio, se caracterizava como uma revolta contra o aumento dos preços das passagens ganhou proporção nacional e passou a ser um protesto contundente contra a política de Perez.
A polícia reprimiu e os atos foram ganhando proporções cada vez maiores. No dia seguinte, o presidente anunciou em rede nacional de televisão, toque de recolher e suspensão das garantias constitucionais. Com isso, a repressão aumentou violentamente. Os atos perderam força e deixaram de tomar as ruas em 29 de fevereiro.
“Caracazo” veio do nome da capital, Caracas, e foi inspirado em grandes protestos que haviam acontecido na capital colombiana, Bogotá, conhecidos como “Bogotazo”. Além da crítica para o sistema que estava vigente, o “Caracazo” expôs uma cobertura midiática que tinha interesses políticos e também sedimentou as bases para o surgimento de novas lideranças, especialmente o ex-presidente Hugo Chávez.