No epílogo de O Brutalista, longa de mais de três horas que chegou aos cinemas brasileiros na última semana, estamos nos anos de 1980, na Bienal de Arquitetura de Veneza, que homenageia o arquiteto húngaro-judeu László Tóth, um sobrevivente dos campos de extermínio nazistas. O nome da exposição que traz inúmeros projetos e esboços do artista é ‘A persistência do passado’. Seu corpo de sobrevivente está agora debilitado pela idade. László surge numa cadeira de rodas, empurrada por Zsófia, sua sobrinha órfã, até então silenciosa durante todo o filme.
“Em suas memórias”, diz Zsófia, na abertura da exposição, “ele [László Tóth] descreveu seus projetos como máquinas sem partes supérfluas que possuíam um núcleo imóvel, um núcleo duro de beleza. Uma forma de direcionar a percepção de seus habitantes para o mundo como ele é. As leis inerentes às coisas concretas que as esculpem como rochas ou montanhas. Elas não indicam nada. Elas não contam nada. Elas simplesmente são.”
O corpo é essa pura presença material na qual o ser exibe sua face mais bela. A presença de um corpo jamais pode ser ignorada, mesmo no rastro sufocante do seu desaparecimento: nada é mais asfixiante do que a presença eterna de um corpo desaparecido. Corpo-vestígio, corpo-memória, corpo-traumático. São múltiplas as suas formas de aparição.
Corpo presente
Um corpo desaparecido nunca vai embora. Diferente do morto ritualizado, o desaparecido político vítima da ditadura civil-militar é um fantasma que assombra os familiares e amigos para sempre.
Um fantasma que sussurra a todo momento “ainda estou aqui“, desde o momento em que agentes do regime de exceção invadem a casa da família Paiva, e dilaceram de modo irreparável o cotidiano de Eunice e seus filhos.
Dar um destino exato ao corpo desaparecido é uma questão de sobrevivência, não aos mortos, mas aos que ficam para trás: os vivos.
Fragilidade
Em A garota da agulha (Magnus von Horn, 2024), uma sombria produção baseada nos crimes reais ocorridos na Dinamarca pós-Primeira Guerra, corpos mutilados e martirizados são enquadrados numa belíssima fotografia preto e branco, remetendo ao ambiente de freak show, que ganha sobrevida nos podcasts e documentários true crime atuais.
Somos pegos de surpresa por uma cena de infanticídio brutal: um frágil corpo de um recém-nascido esmagado e jogado no esgoto. A caridosa mulher que recebia dinheiro para encontrar famílias adotivas para mães sem condições de criar as crianças é, na verdade, uma assassina.
O subtexto provoca um choque ainda mais radical para esses tempos de leitura literal: o amor materno não é um dom natural e o amor filial é uma construção histórica recente.
Corpos sem peso
Em Duna 2, não são os corpos descomunais dos gigantescos vermes (“infilmáveis” sem elipses cuidadosas), que trazem sua presença mais marcante. O que é incontornável é a leveza com que se movem os corpos brutalistas de naves imensas. Esse contraste do pesado que levita não é novidade. Denis Villeneuve já havia feito levitar o estranho objeto alienígena de A Chegada (2016), e o imenso e sombrio Barão Harkonnen, em sua estranha cadeira, no filme anterior.
Nos primeiros segundos de Duna 2, ficamos espantados numa sala IMAX diante dos corpos dos mercenários com suas armaduras negras, nas sequências de abertura do filme, flutuando para o alto da rocha, sob a luz laranja de Arrakis, como se a gravidade tivesse de repente sido abolida.
Apontamos a mão na cadeira um tanto incrédulos e reticentes de perder o próprio peso dos nossos corpos de repente leves demais no assento.
Metamorfoses no capitalismo tardio
O corpo crítico se torna metamorfose e se apresenta como anomalia disforme em A substância (Coralie Fargeat), uma releitura de O Retrato de Dorian Gray, agora focalizando os corpos de mulheres, historicamente violentados por ideias irreais de beleza que só servem à máquina indiferente do lucro.
O corpo sem forma vai ao nível do choque pelo grotesco, mesmo não alcançando a potência de clássicos do gênero body horror recente, como Crimes do Futuro.
O monstruoso corpo alienígena de Alien: Romulus (Fede Alvarez) é a metáfora cyberpunk para o corpo incansável, desejo do capitalismo tardio. Um corpo capaz de acompanhar não só a expectativa fantasiosa de gráficos de crescimento econômico infinito, mas habitar quaisquer ambientes hostis à vida, como planetas irrespiráveis de puro minério, à imagem e semelhança do nosso próprio planeta num futuro não muito distante.
Corpos sobreviventes
O corpo intersexo aparece como uma engenhosa questão para uma Igreja que se quer alinhada às demandas do mundo contemporâneo, em Conclave (Edward Berger), com sua trama policialesca e fotografia belíssima. São nossos atos concretos que definem nossa ética mais radical, num horizonte de eventos cada vez mais cindido por uma nova e violenta onda nazi-fascista que coloca em risco os corpos e vidas de grupos historicamente massacrados.
Nesse ponto, Conclave é um filme mais interessante, bem concebido e realizado que Emília Pérez (Jacques Audiard). E também que Anora (Sean Baker), protagonista que carrega no corpo o sonho e o ódio de uma Cinderela sobrevivente, e se vê prisioneira das violentas barreiras de classe.
Menos óbvios ainda são os corpos aprisionados em busca de liberdade em Sing Sing (Greg Kwedar), meu filme favorito deste ano. Encenando um programa real de reabilitação de prisioneiros pelo teatro, o filme traz atores amadores interpretando a si mesmos ao lado de profissionais como Colman Domingo e Paul Raci. E mostra o poder libertador e transformador de um monólogo de Hamlet. O corpo imaginário é um corpo libertário. Dormir. E talvez sonhar.
O arquiteto László Tóth, protagonista de O Brutalista, é um sobrevivente do Holocausto. Constroi, sem que seu mecenas e contratante norte-americano perceba, um impressionante monumento à memória. Tóth é também o nome do deus egípcio que inventou a escrita.
Como afirma Jeanne Marie Gagnebin em Lembrar, escrever, esquecer, o genocídio armênio pelo Império Otomano em 1915 serviu de inspiração para Hitler: “Eu dei ordem às unidades especiais da SS de se apoderarem do front polonês e de matarem sem piedade homens, mulheres e crianças. Quem ainda fala dos extermínios dos armênios, hoje?”, disse ele em 21 de agosto de 1939. Jeanne Marie comenta: “O esquecimento dos mortos e a denegação do assassínio permitem assim o assassinato tranquilo, hoje, de outros seres humanos cuja lembrança deveria igualmente se apagar”.
Que monumentos teríamos que erguer para tornar o mal irrepetível?
A certa altura, László Tóth está dançando numa pequena cidade italiana, incrustada nas gigantescas pedreiras de mármore carrara. Seu mecenas o observa de modo estranho, do alto da sacada. E nesse momento entendemos tudo.
O rico empresário industrial segue László Tóth até um beco isolado. Encontra o arquiteto caído, semi-consciente, dopado com heroína. O corpo de László Tóth é violado. Não há lugar seguro.
Posteriormente, seu carrasco acaba envergonhado diante da elite norte-americana – a esposa de László o denuncia – e o mecenas termina morto no próprio monumento inacabado. A filantropia não vai salvar sua alma da podridão, tampouco deixar qualquer legado real. O sonho americano é um pesadelo sombrio.
Núcleo imóvel
Momentos antes, em tomadas silenciosas sobre as imensas montanhas, todas as coisas ganham sentido. Nos tempos de guerra, trabalhadores locais combateram e derrotaram os exércitos de Mussolini naquele terreno. “Ninguém conhece essa montanha como nós”, diz o pedreiro italiano. O mecenas-filantropo quase cai sozinho, desequilibrado na fina areia branca. Fendas se abrem sobre a rocha, cavando túneis e minas no interior impenetrável dos veios de mármore sólido. Blocos cujas formas geométricas – linhas silenciosas, ângulos retos, quinas triangulares – são muito mais indestrutíveis e agudas que a própria matéria concreta. Essas formas não indicam nada. Elas não contam nada. Elas simplesmente são. O núcleo imóvel da vida.
*Marcos Vinícius Almeida é escritor, jornalista e redator. Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP, colaborou com a Ilustríssima da Folha de S. Paulo e O Globo. É autor do romance Pesadelo Tropical (Aboio, 2023).