A grande votação da Alternativa para a Alemanha (AfD) nas eleições parlamentares acendeu o sinal de alerta na Europa. Reafirmou a expansão da ultradireita e, teme-se, a ressurreição do nazismo com outra roupagem. No Brasil, onde o bolsonarismo urdiu um frustrado golpe contra a democracia, as posições mais extremadas também promovem razões para preocupação. No Sul do país, sobretudo em Santa Catarina, ressurgem grupos neonazistas. Aliás, foi no Norte catarinense, em Timbó, onde seu deu a fundação do Partido Nazista no Brasil. Era 1928 e seus núcleos se espalharam por 17 estados antes da sigla ser banida.
No chão catarinense, lembra o historiador João Klug, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), operavam 300 agrupamentos neonazis no final de 2022. Klug retornou alarmado de uma viagem à Alemanha em 2024 onde os eleitores “bebem na fonte poluída do nazismo, mesmo não querendo reconhecê-la como tal”.
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Com pós-doutorado na Universidade Livre de Berlim, ele tem se debruçado, ao longo da carreira, sobre temas como imigração e colonização alemãs, luteranismo, identidade e germanidade. Assim, adverte que não se pode conectar automaticamente a imigração alemã com o nazismo. Em terras catarinenses, a filiação à direita da população inclui outros fatores como, exemplifica, o peso político das oligarquias Ramos e Konder na calcificação de um pensamento conservador.
Klug aponta que o ressurgimento das ideias supremacistas, homofóbicas e racistas – comuns ao nazismo – ganhou fôlego com os discursos e ações do governo Bolsonaro. Siga a entrevista:
Brasil de Fato RS: Durante sua pesquisa, a antropóloga Adriana Dias constatou a existência de 12,5 mil sites de disseminação de conteúdo neonazista ou assemelhado no Brasil. À época – o ano era 2007 – ela citou a presença de 150 mil neonazis no país, a maioria deles no Sul, especialmente em Santa Catarina. Como estarão esses números hoje, sobretudo após o avanço da extrema direita no Brasil e no mundo?
João Klug: Segundo a antropóloga Adriana Dias, em 2019 havia em torno de 300 grupos neonazis no Brasil. No final de 2022, este número saltou para cerca de 1200 grupos ativos, dos quais em torno de 750 atuavam no Sul do Brasil e destes, 300 em Santa Catarina.
É possível supor uma relação de causa e efeito sobre tais números impulsionada pelos quatro anos do mandato Bolsonaro?
O que aconteceu no Brasil entre 2019 e 2022? Estabeleceu-se uma conjuntura favorável, exatamente no período do governo Bolsonaro, o qual fazia uma clara apologia a vários tipos de violência e negacionismos. Neste contexto, esses grupos proliferaram, pois o solo estava preparado para o seu crescimento.
Já antes do governo Bolsonaro era possível destacar algumas declarações que incentivaram esta visão excludente e antidemocrática. Em 2014, o então medíocre deputado federal fazia uma declaração claramente machista ao afirmar ´É uma desgraça ser patrão nesse país com tantos direitos trabalhistas, pois a mulher engravida e vai ter seis meses de licença remunerada e depois ainda direito de férias. Em 2016, ele afirmou em entrevista que “O erro da ditadura foi torturar e não matar…” A ditadura que ele negava ter existido.
O “vírus”, para o qual não existe vacina, proliferou enormemente neste contexto no estado e no país
Ainda em 2016, por ocasião do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, Bolsonaro fez a apologia do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, um torturador no auge da ditadura militar, cuja memória jaz no esgoto fétido da história. O deputado estimulava uma ideia que encontrava adeptos. E teve – e tem – efeito multiplicador nefasto.
Chamo a atenção para o fato de alguns anos antes, em 1999, ele já havia dito que “Os militares mataram poucos, pois tinham que ter matado pelo menos uns 30 mil – e se morressem inocentes, tudo bem”. Este tipo de declaração gerou um caldo de cultura que incentivava uma visão negativa da democracia e suscitava uma postura de apologia à violência.
A profusão de gestos em público, simulando uma arma, “ajudando” crianças de colo a fazer o gesto de alguém com uma arma na mão, também teve um efeito altamente negativo. Diante do danoso efeito pedagógico, que estimulava crianças a brincar com armas, a Sociedade Brasileira de Pediatria emitiu uma nota intitulada “Fuzil não é Brinquedo”, na qual condenava estes gestos envolvendo crianças.
Na minha perspectiva, estes discursos e ações, encontram grande semelhança no nazismo dos anos 1930, dando significativo impulso na formação de grupos neonazis no Brasil e aqui em Santa Catarina. O “vírus” – para o qual não existe vacina – proliferou enormemente neste contexto. Na realidade, muita gente já tinha uma predisposição para este comportamento e no período citado sentiram-se livres para “sair do armário”.
A História é a mestra da vida mas ela tem alunos dispostos a aprender?
Nos anos 1920/30 houve a eclosão do fascismo e do nazismo em uma Europa que fora devastada pela guerra de 1914/1918. Cem anos depois, ocorre novamente uma ascensão de movimentos e lideranças de extrema direita que contestavam tanto a democracia liberal quanto o comunismo. A História se repete hoje com outro figurino?
No campo político percebe-se certa semelhança com aquilo que se verificou nos anos 1920-1930, e agora em escala mundial. A democracia não é apenas contestada, mas também desprezada, de forma dogmática. Volta-se ao populismo “barato”, e nesse processo, as instituições são enfraquecidas, a organização da classe trabalhadora é esvaziada (veja-se o sindicalismo no Brasil e suas dificuldades internas) e os avanços sociais são esperados, não a partir da organização da sociedade, mas sim das promessas oriundas dos discursos de líderes populistas que prometem estabelecer a ordem com mão forte.
A História, a rigor, não se repete. As conjunturas históricas podem ser semelhantes – que é o ponto em questão – assim como seus resultados, evidenciando que não se aprendeu com a História. Afirma-se com muita frequência, que a História é a mestra da vida (historia magistra vitae). OK, a História é a mestra da vida, no entanto, cabe perguntar: ela tem alunos dispostos a aprender?
É fundamental questionar certo senso comum que associa o assustador crescimento de grupos neonazistas com a população de origem alemã
Considerando-se a população de Santa Catarina – 7,6 milhões de habitantes – o estado é o que mais concentra agrupamentos neonazistas. Além da grande presença da imigração alemã, é, também, dominado por oligarquias e que nunca elegeu – ao contrário dos outros dois estados sulinos – um governo de esquerda ou mesmo de centro-esquerda. Qual é a relação que é possível estabelecer entre essas raízes e o avanço da ultradireita e mesmo do neonazismo?
É fundamental questionar certo senso comum que associa automaticamente o assustador crescimento de grupos neonazistas com a população de origem alemã em Santa Catarina.
Temos que buscar o entendimento desse fenômeno levando em conta também uma série de outros aspectos, tais como economia, política, cultura da maior parte do estado catarinense. Só o ingrediente étnico não é suficiente. Temos que levar em conta que estamos falando de um estado no qual o predomínio político de direita é algo que se insere na longa duração e sempre revelou dificuldade para lidar com o ‘outro’, o ‘diferente’, com a alteridade.
Desde a 1ª Guerra Mundial as relações entre os governos de Santa Catarina e a população teuto-catarinense foi problemática. A ideia do ‘perigo alemão’ era uma realidade entre a maioria dos políticos e também dos intelectuais, o que pode ser percebido na imprensa da época. As relações não eram nada amistosas em função daquilo que se denominou “quisto étnico”.
A rivalidade entre as oligarquias Ramos x Konder também contribuiu no processo. Em 1934, o então governador Aristiliano Ramos negou-se a receber o embaixador alemão em visita ao sul do Brasil. O contrário verificou-se no Rio Grande do Sul com o governador Flores da Cunha.
Os nazis causaram muitos problemas aos alemães e seus descendentes. Eram uma minoria absoluta, no entanto, faziam muito barulho e tentaram assumir o poder de todas instituições alemãs no estado, tais como sociedades de canto, grupos de teatro, clubes de ginástica, bolão, tiro ao alvo, escolas etc.
O discurso do governador catarinense destacou a branquitude de Pomerode
Creio ser relevante em relação a esse assunto, uma afirmação do professor Robert Soechting, diretor da Escola Alemã de Joinville. Num relatório de 1934, ele afirma que “os membros do Partido (nazista) não são confiáveis. Criaram inimizade com quase todos e são recusados tanto pelos alemães natos quanto pelos teuto-brasileiros. São beberrões e microcéfalos…
São alguns aspectos que evidenciam que a ´identidade étnica` apenas não é suficiente para responder à questão. O passado político com predominância de governantes conservadores, a ação das oligarquias, a ´cultura do trabalho`, a ideia de ordem, etc. são fatores que contribuíram – e contribuem – para o avanço de certo clientelismo político e o avanço da ultradireita aqui.
Também julgo oportuno mencionar que, mais recentemente, a indústria do turismo passou a vender a imagem de que Santa Catarina é o estado mais europeu do Brasil (diga-se alemão).
Veja-se o recente discurso do governador catarinense (Jorginho Melo, do PL) na abertura da festa pomerana, no qual destacou a branquitude de Pomerode.
Tem se vendido a ideia de que é possível visitar a Alemanha sem sair do Brasil. Basta visitar as áreas de imigração alemã em Santa Catarina. A etnia alemã foi mercantilizada. Em tal contexto, associa-se, de forma simples e rápida, a etnia alemã com o crescimento do neonazismo.
‘Estamos em guerra e todo o poder emana do cano de uma arma’, disse a deputada
Vale acrescentar que foi em Santa Catarina que o bolsonarismo deitou raízes mais profundas tanto que, em 2022, Bolsonaro venceu a eleição em todos os 295 municípios do estado, algo que não ocorreu no Rio Grande do Sul nem no Paraná, dois estados que deram a vitória ao candidato da ultradireita porém por margem menor e com Lula vencendo em mais de 200 cidades somando-se os dois estados. O que pode se concluir disso?
Concordo com a afirmação de que, em Santa Catarina, o bolsonarismo deitou raízes profundas. Entendo que o solo para que isto acontecesse vem sendo preparado há muitas décadas e o auge da vitória da ultradireita se verificou nas eleições de 2022.
Minha conclusão é que o fenômeno se deve muito ao “trabalho” de total subserviência do governador negacionista Jorginho Melo. Ele sempre esteve muito afinado com Bolsonaro e sempre tocou no mesmo tom. O mesmo se verificou na maioria dos municípios, especialmente os mais populosos. O discurso negacionista e de apologia a diferentes formas de violência encontrou ouvidos abertos e a concordância a este discurso se manifestou nas urnas. A “bagatelização” da violência pode ser percebida através da constatação de que Santa Catarina é o quarto estado mais armado do Brasil, o que é muito preocupante.
Um exemplo da apologia à violência pode ser percebido numa afirmação da deputada federal Julia Zanatta (PL), por ocasião da inauguração de um clube de tiro em julho de 2022 (e o governador estava presente), quando afirmou: ´… Estamos em guerra e todo o poder emana do cano de uma arma`. Este discurso traduz uma visão política que encontra ampla aceitação em Santa Catarina e, lamentavelmente, dessa maneira o ovo da serpente é chocado.
O senhor já observou que existe uma grande diferença entre os trabalhadores catarinenses do Norte e do Vale do Itajaí na comparação com os do Sul (Criciúma e entorno) com os sulinos sendo menos patronais e menos submissos. Se formos comparar a votação de Bolsonaro nas duas regiões, isso também fica claro, não?
A realidade era muito mais evidente e tinha relação com a atividade econômica e com sindicatos mais militantes (no Sul), se comparados com o sindicalismo do Vale do Itajaí e do Norte catarinense. Esta realidade vem mudando e o avanço da ultradireita ganhou força onde antes estas forças eram mais equilibradas.
Mas também é verdade que, no Norte e no Vale do Itajaí, o peso da imigração alemã é bem mais evidente, não?
A população de origem alemã tem sim, peso muito maior no Vale do Itajaí e Norte. No entanto, novamente chamo a atenção de que a força da ultradireita nestas regiões não se deve apenas ao ingrediente étnico.
É necessário levar em conta uma série de fatores, especialmente a forma de trabalho ainda uma realidade para muitas famílias (a figura do “colono operário”), as relações de trabalho, o clientelismo político, entre outros fatores.
Existem muitos neonazistas que não têm nada a ver com etnia alemã e nem sabem o que é o nazismo
Qual seria o perfil hoje de um neonazista em Santa Catarina? Jovem? Desempregado ou subempregado? De baixa escolaridade? Profundamente ressentido?
É difícil estabelecer esse perfil hoje. O que se percebe, aquilo que vem à tona, é que são indivíduos mais jovens e de classe média com certo temor de estarem perdendo espaço na sociedade. Portanto, entendem que devem se impor e impor a sua visão de sociedade e de mundo. Os neonazistas são agressivos. Não tem argumentação e, onde faltam os argumentos, a violência é uma ferramenta de convencimento. São dissimulados, fazem intenso uso das redes sociais espalhando mentiras, aliás, uma marca do nazismo desde o seu início. Fazem uso de uma pseudo-ciência, a eugenia e assim revestem o seu racismo de “cientificidade”.
Também quero lembrar que existem muitos neonazistas em Santa Catarina que não têm nada a ver com etnia alemã, não sabem o que é o nazismo, e tem sérios problemas de inserção na sociedade, mas se sentem empoderados ostentando abertamente ou veladamente, símbolos nazistas de várias formas. No neonazismo encontram o ambiente adequado para extravasar, através da violência, suas frustrações e sua cosmovisão, a qual é, por princípio, excludente e racista.
Os perfis psicológicos de um neonazi e de um bolsonarista raiz são bastante próximos e partilham elementos comuns tais como racismo, xenofobia, misoginia, LGBTfobia, aporofobia, anticomunismo e violência. Ou não?
A semelhança é enorme. São irmãos gêmeos que foram alimentados com o leite do ódio, da mentira e do negacionismo. A fonte continua a mesma, daí a dificuldade em lidar com o diferente. A alteridade não entra nesse universo viciado.
Aqui não houve uma guinada para a extrema direita, pois ela já estava aí
A vinculação entre Santa Catarina e o bolsonarismo é bastante citada, inclusive o filho mais jovem de Bolsonaro mudou-se para Balneário Camboriu onde foi eleito vereador. Hoje, talvez o catarinense mais conhecido nacionalmente seja o empresário Luciano Hang que, durante o mandato Bolsonaro, transformou-se em uma espécie de mascote do governo, assumindo uma persona claramente publicitária com a criação de um personagem vestido de verde e amarelo. Fosse candidato ao governo estadual ou ao Senado seria eleito provavelmente com imensa votação. Essa guinada à extrema direita de Santa Catarina – que sempre esteve à direita – surpreendeu você ou havia sinais de que isso ocorreria?
Eu diria que aqui não houve uma guinada para à extrema direita, pois ela já estava aí. O que houve foi o seu enorme fortalecimento no período do (des) governo bolsonarista. Muita gente se identificou e saiu do armário. O que me surpreendeu foi a força desta visão de ultradireita. A quantidade de municípios nos quais Bolsonaro teve mais de 75% dos votos é muito grande. Vários com mais de 80% dos votos. Estes dados, sim, me surpreenderam e o Estado como um todo vende a ideia de que isto é bom, de que aqui reina a ordem, aqui o povo é trabalhador, aqui, como afirmou o governador ´bandido não se cria…`É um quadro muito preocupante, o qual, considerando-se as lideranças que aí estão, tende a se perpetuar dessa forma.
Me impressionou o crescimento da ultradireita em algumas regiões na Alemanha, como na Turíngia
No ano passado, o senhor passou um período na Alemanha onde estudou o tema da ascensão do neonazismo expresso, por exemplo, na rejeição maciça aos imigrantes e no alto percentual de votos da Alternativa para a Alemanha (AfD). Que relação é possível traçar entre o que ocorre lá com o que ocorre em seu estado?
Me impressionou o crescimento da ultradireita em algumas regiões. Acompanhei in loco o que aconteceu no estado da Turíngia, onde a AfD conseguiu uma votação impressionante. Conversei com várias pessoas a respeito e o principal argumento é que ´Chega de imigrantes` ou ´A Alemanha é para os alemães`. Mas, na própria Turíngia, caso os estrangeiros sejam deportados, muitas empresas entrariam em crise por falta de força de trabalho. Esses meus interlocutores são enfáticos em afirmar que rejeitam o nazismo, e que a AfD apenas quer ´Colocar a Alemanha no lugar que merece`. Rejeitam o nazismo, mas… Bebem na fonte poluída do nazismo, mesmo não querendo reconhecê-la como tal.
A xenofobia é uma realidade que se expande a cada dia, assim como outras tantas mazelas próprias do nazismo. É notória a tensão política na Alemanha em função do avanço da ultradireita, o que leva muita gente comum, especialmente idosos, ao questionamento ‘Será que não aprendemos nada com nossa história? Será que querem revivê-la?’
Claro que a medida que a ultradireita cresce lá, a ultradireita daqui bate palmas e nela se inspira. Esse quadro estimula, entre outras coisas, a xenofobia por aqui (desprezo ao nordestino, por exemplo), a ideia de ordem, de ódio ao debate de ideias, etc. E se isto está ocorrendo na Alemanha, que é o grande exemplo para os nazistas, então esse também deve ser o caminho a ser trilhado aqui. Na visão deste pessoal, a ultradireita precisa governar – e aí estamos.
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