Por conta da abundância de recursos hídricos, a Chapada do Araripe, localizada na divisa entre Ceará, Pernambuco e Piauí, é chamada de “caixa d’água do Sertão”. A região de planície é composta por 38 municípios e chega a uma altitude de até mil metros, com nascentes importantes e uma bacia sedimentar com águas subterrâneas. Enquanto os bens naturais e culturais do território concorrem ao reconhecimento de Patrimônio Mundial pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), porém, atrai ao mesmo tempo o olhar do agronegócio para a região, reconhecida como Área de Proteção Ambiental (APA) desde 1997.
“A chapada absorve a água da chuva e serve como uma ‘esponja’, contribuindo com a recarga de aquíferos da região”, explica o professor Társio Alves, coordenador do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Abelhas (Nupea) do Instituto Federal Sertão Pernambucano – Campus Ouricuri.
Além da riqueza hídrica, o Araripe é revestido por uma transição peculiar de biomas em cerca de um milhão de hectares, habitado em boa parte por povos e comunidades tradicionais de origem camponesa. Além de Caatinga, há Cerrado e Mata Atlântica, constituindo fauna e flora características. O local também abriga uma formação geológica com elementos que remontam a 180 milhões de anos e registros arqueológicos da presença humana do passado.
A proteção ambiental permite a ocupação humana do espaço, na condição de se realizar atividades sustentáveis. Entretanto, nos últimos anos, a presença de monoculturas como soja e algodão é vista com preocupação por parte da população local. Empresas do setor estão avançando e modificando o cenário e as expectativas de equilíbrio ambiental da região.
Para Alves, essa expansão abre a possibilidade de repetição de uso irracional dos recursos naturais, que já aconteceu anteriormente. “A expansão das fronteiras agrícolas com plantios em grandes escalas de monoculturas deixa a população do território apreensiva com os possíveis impactos”, afirma ao citar queimadas, desmatamentos e uso de agrotóxicos em larga escala.
O promotor de justiça Thiago Marques Vieira, que atua no município do Crato (CE), explica que o avanço de monoculturas não é proibido na APA Chapada Araripe. Entretanto, ele faz coro com a preocupação popular. “Há uma diferença muito grande entre a agricultura de subsistência, ou até a agricultura de pequeno e médio porte, e a agropecuária de grande exploração, principalmente aquela baseada em monoculturas de determinados produtos. Sabemos que esse tipo de exploração agrícola, como é o caso da soja, já têm avançado um pouco mais por Pernambuco e chega agora de uma forma mais incisiva no território cearense”, alerta.
No dia 4 de setembro de 2024, a Secretaria de Desenvolvimento Econômico (SDE) do Ceará inaugurou o “Projeto Algodão do Ceará”, incentivando a retomada de uma cultura que foi dizimada décadas atrás pelo desequilíbrio ambiental diante do besouro conhecido como “bicudo”. Dessa vez, a proposta de repaginada da atividade foi feita em cerimônia com homenagens a representantes do agronegócio do Mato Grosso. De acordo com publicação da página institucional da Secretaria, no dia do lançamento “foi anunciada a aquisição de três mil hectares de terras no município de Araripe, na Chapada do Araripe”. Entre elogios aos “investidores”, o texto cita que “a área será destinada ao plantio de algodão, soja e outras culturas”.
Thiago Marques destaca os possíveis impactos de uma mudança nas características tradicionais da agricultura no território por um modelo agroindustrial de grande escala, a exemplo do que acontece em Mato Grosso. “Não é novidade o que já aconteceu em várias outras regiões do país, com alastramento de monoculturas. Só a título exemplificativo, a monocultura da soja é o segundo maior causador de desflorestação no mundo, perdendo só para a criação de gado. Precisamos colocar em questão o que aconteceu na região pantaneira e na região amazônica”, destaca o promotor que atua também no Centro de Apoio e Defesa do Meio Ambiente do Estado do Ceará.
Desmatamentos e queimadas
Na APA Chapada do Araripe, o avanço dos empreendimentos de monoculturas em larga escala coincide com a recorrência de queimadas e desmatamentos nos últimos anos. O ano de 2023, por exemplo, foi considerado o mais preocupante pelos órgãos fiscalizadores, alcançando a marca de perda de 5.900 hectares de vegetação nativa. O número chamou a atenção e, em 2024, houve uma redução de 38% nos registros. Para Carlos Augusto Pinheiro, chefe da unidade do Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio) Araripe, a redução faz parte de um monitoramento de irregularidades. “Conseguimos identificar as áreas e fazer um combate desse desmatamento de forma irregular. Por que é de forma irregular? Porque o proprietário pode ter autorização para atividade agrícola, mas se tiver desmatamento, ele é obrigado a ter uma autorização específica. Então, muitos não buscam essa autorização”, explica, ao afirmar que a média anual dos últimos anos ainda é bastante preocupante.
As fontes ouvidas pelo Brasil de Fato afirmam que não são contrários a qualquer tipo específico de cultura agrícola, mas alertam para seus contextos ambientais e socioeconômicos de produção, que podem causar impactos de proporções desastrosas. De acordo com a SDE Ceará, 12.500 hectares da Chapada do Araripe foram adquiridos por “investidores”. Por sua vez, o governo do estado teria apresentado uma logística dessa iniciativa relacionada ao Complexo Industrial e Portuário do Pecém, para ser integrado à região produtora de grãos do território do Matopiba via Transnordestina.
Társio e Thiago alertaram que a expansão de grandes empreendimentos agrícolas representam uma ameaça da perda da biodiversidade, do comprometimento dos recursos hídricos, do aumento do risco de desertificação, da diminuição da capacidade do solo de infiltrar água e do aumento da ocorrência de queimadas e secas. “A água da Chapada também influencia diretamente o microclima local, ajudando a regular as temperaturas e a manter o ciclo hidrológico. Essa regulação é essencial para mitigar os efeitos das mudanças climáticas e para combater os períodos de seca extrema que são frequentes em regiões semiáridas”, explica Francier Silva Júnior, diretor da Associação Cristã de Base (ACB), a organização cearense que integra a Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA).
Preservação
A especulação imobiliária sem planejamento também foi apontada como um dos desafios para a preservação natural da APA Chapada do Araripe. Os relatos apontam esse movimento principalmente na região do Cariri cearense. De acordo com Thiago, algumas ocupam áreas sensíveis, como mananciais e locais de grande altitude. “Existe uma expansão para esses locais sem que haja um planejamento urbano”, aponta.
Considerando a expansão agrícola e imobiliária, algumas ações específicas foram defendidas para se avançar na preservação da Floresta do Araripe. Uma delas é a regulamentação das práticas no local. Társio Alves, por exemplo, cita a importância da aprovação do Plano de Manejo da APA Chapada do Araripe. “A elaboração vem desde 1998 e se arrasta ao longo dos anos. Entretanto, a partir de 2021 criou-se um grupo de trabalho que, reconhecendo os desafios da Chapada do Araripe, identificou os atores sociais e formulou uma minuta, que desde 2022 está sendo avaliada pelos setores responsáveis”, detalha.
Thiago Marques cita o avanço das fiscalizações de irregularidades, exemplificando as ações do Ministério Público do Ceará com o projeto APA Regular. De acordo com ele, esse sentido é fortalecido com um mapeamento das atividades agrícolas na região. Ao mesmo tempo, o promotor destaca a necessidade da identificação de possíveis fragilidades nas secretarias municipais de meio ambiente. “Tentamos fazer uma coordenação e um mapeamento de como a fiscalização é feita, e principalmente como ela pode ser melhorada”, afirma, ao complementar que a importância de emitir recomendações para garantir que licenças sejam concedidas corretamente.

Francier Silva Junior apontou a necessidade de ampliar as práticas sustentáveis de famílias agricultoras que estão desenvolvendo práticas agroecológicas. “Essa estratégia potencializa o uso da terra, permitindo que as famílias agricultoras cultivem uma variedade de produtos numa mesma área, o que diversifica suas fontes de renda e reduz a vulnerabilidade econômica associada à dependência de um único tipo de cultivo. A transição para os Sistemas Agroflorestais não apenas beneficia o meio ambiente, mas ajuda as famílias agricultoras com para uma gestão agrícola mais resiliente e adaptativa às mudanças climáticas e de mercado”, defende.
A promoção de mais espaços de debates públicos e trocas de conhecimentos sobre o cenário do território também foi levantada por todas as fontes ouvidas pelo Brasil de Fato. “Se conseguirmos acender essa interrogação no sentido de pensar e repensar nosso território, eu acho que estamos cumprindo o papel que a nossa Constituição delega ao direito ambiental, tendo a fiscalização, o poder público, e a sociedade de forma individual e coletiva, protegendo o meio ambiente”, aponta Thiago.
Campanha
Um exemplo concreto de apropriação popular do tema foi feito em janeiro deste ano, no XI Encontro de Saberes da Caatinga, evento anual que reúne mestres e mestras de conhecimentos tradicionais em Exu (PE), na Chapada do Araripe. Defendendo a relação entre os patrimônios naturais culturais da região, o público participante elaborou um manifesto e organizou uma campanha virtual em defesa da APA. De acordo com o texto, o “território está sob ataque. Especuladores e grandes empresas promovem a destruição da terra, substituindo a vegetação nativa por monoculturas mecanizadas, como soja transgênica”, denuncia.
O documento completo chegou a ser lido publicamente durante uma intervenção política na Conferência Intermunicipal do Meio Ambiente, reunindo gestores públicos de 14 municípios e do governo do Estado de Pernambuco, no dia 22 de janeiro, na sede da cidade de Exu. “Monoculturas de grande escala consomem quantidades excessivas de água, comprometendo os recursos hídricos locais e prejudicando as comunidades que dependem desses mananciais”, afirma outro trecho do “Manifesto pela Vida da Chapada do Araripe”.
Já a campanha virtual pode ser apoiada por pessoas de outras localidades. Ela pretende juntar 20 mil votos para que o tema seja debatido no Senado. A proposta é de pressionar pelo reconhecimento e proteção da Chapada do Araripe como patrimônio imaterial da humanidade. A petição cobra uma proibição da prática de monoculturas extensivas na Chapada do Araripe, alegando seus impactos negativos ao meio ambiente e à população. Clique aqui para conhecer a consulta.
Patrimônio da humanidade
As movimentações para a candidatura da Chapada do Araripe na Lista Indicativa do Patrimônio Mundial da Unesco começaram com estudos em 2018. Em 2020, houve um mapeamento do território para identificar bens naturais e culturais com potencial valor universal excepcional. A candidatura é baseada em três pontos principais de critérios estabelecidos pela Unesco: o testemunho de uma tradição cultural viva; a relevância de eventos de importância cultural; e a representação efetiva de processos geológicos. Na opinião de fontes ouvidas pelo Brasil de Fato, o reconhecimento – que pode sair até 2026 – ajudaria a preservar os bens naturais e culturais da Chapada do Araripe.

O Brasil de Fato entrou em contato com a SDE Ceará, mas não obteve retorno até o fechamento desta reportagem. Caso haja alguma manifestação, o texto será atualizado.