Enquanto o Brasil respira Carnaval, inalamos fatos trágicos num porto triste, como esse que está circulando abundantemente em vídeos nas redes sociais, ocorridos na madrugada deste sábado: violação de direitos e de violência perpetrada pelo Estado, tendo como alvo pessoas trans, negras, mulheres, e jovens. Enquanto o Carnaval brasileiro é reconhecido pela UNESCO como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, em Porto Alegre vigora a proibição do desfile oficial dos blocos de rua no seu mais tradicional bairro boêmio, a Cidade Baixa. Ações da Brigada Militar, como uma espécie de “polícia moral”, cerceiam a participação da alegria no passeio público, tal qual num sistema teocrático totalitário. Esse é o cenário. E o que faremos?
Uma capital brasileira impedida de expressar seu Carnaval de rua revela-nos muito mais do que um fato isolado, uma outra opção de data ou, quiçá, o atendimento a supostas reclamações da vizinhança. Carnaval é uma data oficial do calendário brasileiro, e se faz com apoio de governos municipais e estaduais, e pode sim funcionar muito bem. É direito, e temos feriado pra quê? Mas a senha que as atuais administrações municipal e estadual gaúchas nos entregam é a criminalização da ocupação do espaço público, assim como já vem tentando fazer com os movimentos sociais, criminalizando a concentração popular e a expressão da alegria.
Além disso, provoca uma crescente desvalorização da Cidade Baixa tal como a conhecemos, palco de tantas manifestações artísticas, mobilizações políticas e estudantis, prestando especial favor à especulação imobiliária. Ei, moradores de regiões históricas de Porto Alegre, esse cheiro não lhes é familiar? Temos visto esse processo de gentrificação acontecer há mais de um século. Perguntamo-nos: como os veículos de comunicação estão noticiando a repressão e a violência dirigida aos frequentadores deste bairro? Onde ocorrem os debates acerca dos abusos e da violência policial?

Outro exemplo infeliz é o da Prefeitura de Canoas, município vizinho que, através de sua Secretaria de Cultura, proibiu as escolas de samba canoenses de abordarem enredos sobre temas de religiões de matriz africana, negros e comunidade LGBTQIAPN+ no Carnaval municipal, chegando, por fim, ao cancelamento da comemoração oficial. No livro 1984, de George Orwell, enquanto um regime supremo e autoritário controla o Estado, a população vive como uma turba, com medo e sem perspectiva. Seriam a nossa natureza e o nosso desejo, os alvos de governos que defendem a ditadura na tribuna do Legislativo, e agem de acordo com dogmas religiosos nada disfarçados, na contramão do estado laico brasileiro?
Isso está cheirando a quê mesmo? Seria a um declínio intelectual e político, expresso em ações de um estado impotente que se posta viril através da violação do outro?
Aos poucos as últimas governanças municipais foram nos roubando espaços instituídos dos encontros e combinações para um mundo melhor. Porto Alegre possuía a tradição de receber-nos ao sol e à sombra de árvores (cada vez mais raras), nas noites de aniversário da cidade comemoradas no Parque da Redenção, nas reuniões na Esquina Democrática, nos shows, comícios e palanques no Largo Municipal Glênio Peres. Onde estamos nós que dantes nos reuníamos? Onde nos encontraremos com as novas gerações?
Esse cheiro suspeito que estamos tragando não é, nem de longe, dos Restos de Carnaval ─ aludindo à crônica memorável de Clarice Lispector ─ muito menos do tenro aroma de Meu bolo favorito ─ corre na Cinemateca Paulo Amorim para assistir a este filme iraniano, dirigido por Maryam Moghaddam e Behtash Sanaeeha! ─ Cheiram mal os governos numa longínqua alegre capital.
Os “donos do mundo” pretendem evacuar para Marte… e você aí? E nós aqui? Precisamos sair para ver a rua, para nos indignarmos com os maus-tratos da rua, com os acintes do poder público à população em situação de rua. Quem sabe se as ocupássemos mais, a vulnerabilidade social diminuiria? Uma conta praticamente exata.
Sim, esse é um chamado às ruas, para que nos reconheçamos nelas: a Casa de Cultura Mário Quintana, as bibliotecas públicas e comunitárias, as cinematecas, sebos e livrarias de calçada, o Centro Histórico, os parques; a conversa presencial, o sabor do chimarrão compartilhado, a inspiração da companhia numa caminhada, o odor da grama, a textura do banco de praça. As manifestações, os protestos, as reivindicações. Os blocos. As festas. O fazer muito na conspiração de dois, e mais.
Defendamos o encontro. Defendamos o Carnaval na sua essência, espaço genuíno da ancestralidade, resistência e diversidade. Um sistema criativo que também gera renda, sustentabilidade e empregabilidade, entornando emoção ao celebrar a vida e a alegria. E o movimento! O constante desafio do diálogo e da participação enquanto nos movimentamos das mais diversas formas, orientados pela democracia, continuará nos nutrindo de lucidez para respondermos a esses governantes deteriorados, cheirando a regime de aiatolá.
* Escritora, socióloga, mestre em educação.
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
