Xica Manicongo, considerada a primeira travesti não indígena do Brasil, será homenageada pelo enredo do Paraíso do Tuiuti, no Sambódromo da Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro (RJ), nesta terça-feira (4).
O compositor Cláudio Russo contou, em entrevista ao Brasil de Fato, como foi o processo de composição do samba que vai embalar a escola na terceira noite do Carnaval do Rio.
“Eu conheci uma entidade chamada Dona Praia e ela consta na letra do samba. Ela foi me contando tantas coisas que eu percebi isso que você falou em off, eu não poderia fazer um samba com uma narrativa comum, começo, meio e fim. Eu percebi que a Xica era muito mais do que um personagem da história. É uma ideia”, pontuou.
História
Sequestrada no Congo para ser escravizada em Salvador no século 16, Xica Manicongo foi batizada como Francisco. Sua história foi descoberta pelo antropólogo Luiz Mott, fundador do Grupo Gay da Bahia, que encontrou nos arquivos da Torre do Tombo, em Lisboa, uma denúncia de sodomia feita em 1591 à Inquisição.
Segundo os documentos, Xica faria parte de “uma quadrilha de feiticeiros sodomitas”. A palavra sodomia se refere a uma interpretação de uma passagem bíblica que faz referência a atos considerados imorais. Os arquivos diziam também que Xica, que trabalhou como sapateira na capital baiana, tinha grande resistência em usar roupas ligadas ao imaginário masculino.
Após ser denunciada, Xica foi condenada a ser queimada viva em praça pública, e seus descendentes desonrados até a terceira geração. Para não sofrer a condenação, ela deixou de lado o vestuário e os modos femininos e passou a se comportar como um homem. De acordo com a literatura, Xica foi definida como travesti pela primeira vez, na década de 2000, por Majorie Marchi, então presidente da Associação de Travestis e Transexuais do Rio de Janeiro (Astra-Rio).
Hoje, Xica é lembrada como um símbolo de resistência para a população LGBTQIAP+ negra e periférica. Seu nome é frequentemente citado em estudos sobre gênero, raça e escravidão no Brasil. Em Salvador e em outras partes do Brasil, a memória de Xica Manicongo tem sido resgatada por movimentos populares, artistas e historiadores que buscam dar visibilidade às histórias de pessoas LGBTQIAP+ na diáspora africana.
Ela também é citada em produtos culturais e artísticos, como na música Amor amor da cantora e compositora Linn da Quebrada, e tem seu nome estampado em coletivos e institutos, como o Quilombo Urbano Xica Manicongo, em Niterói (RJ).
Em 2022, as então vereadoras de São Paulo (SP) pelo Psol Elaine do Quilombo Periférico, Luana Alves e Erika Hilton (hoje deputada federal) propuseram nomear uma rua de Xica Manicongo, no Distrito do Grajaú, na Zona Sul da capital paulista. O projeto chegou a ser aprovado pela Câmara Municipal, mas foi vetado pelo prefeito Ricardo Nunes (MDB). Na justificativa, o emedebista informou que “a descrição da via não é suficiente para identificação do logradouro a ser denominado”.
Confira o samba-enredo do Paraíso do Tuiuti
Só não venha me julgar
Pela boca que eu beijo
Pela cor da minha blusa
E a fé que eu professar
Não venha me julgar
Eu conheço o meu desejo
Este dedo que acusa
Não vai me fazer parar
Faz tempo que eu digo não
Ao velho discurso cristão
Sou Manicongo
Há duas cabeças em um coração
São tantas e uma só
Eu sou a transição
Carrego dois mundos no ombro
Vim Da África Mãe Eh Oh
Mas se a vida é vã Eh Oh
Mumunha
Jimbanda me fiz
N Ganga é raiz
Eu pego o touro na unha
A bicha, invertida e vulgar
A voz que calou o “Cis tema”
A bruxa do conservador
O prazer e a dor
Fui pombogirar na Jurema
Chama a Navalha, a da Praia e a Padilha
As perseguidas na parada popular
E a Mavambo reza na mesma cartilha
Pra quem tem medo o meu povo vai gritar
Eu travesti
Estou no cruzo da esquina
Pra enfrentar a chacina
Que assim se faça
Meu Tuiuti
Que o Brasil da terra plana,
Tenha consciência humana
Chica vive na fumaça
Eh! Pajubá!
Acuendá sem xoxá pra fazer fuzuê
É Mojubá
Põe marafo, fubá e dendê (Pra Exu)