Há quase 50 anos, sempre na terça-feira de Carnaval, amplos setores cristãos e sociais do Rio Grande do Sul se reúnem, ecumenicamente, para celebrar a memória de Sepé Tiaraju e a luta que herdamos dele e do povo Guarani por uma terra repartida e habitável. Este evento que une fé e luta pela terra é organizado anualmente pela Comissão Pastoral da Terra, pela secção regional da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e pela diocese onde se realiza.
Desde a sua origem, a Romaria da Terra foi diferenciada em relação às romarias tradicionais. Mesmo sendo inspirados e sustentados pela fé cristã, os romeiros não se reúnem num santuário convencional, mas no santuário das dores e esperanças humanas; não caminham para reparar pecados morais, mas para denunciar e derrotar pecados sociais. Por isso, é realizada sempre num local diferente, um território ou uma situação onde os clamores humanos ressoam de modo mais gritante naquele período.

Como o povo hebreu, que identificou no fogo ardente da sarça a Presença e a Voz de Deus, os romeiros tiram as sandálias e caminham numa terra consagrada pelo sofrimento humano e assumem o desafio de reinventar a sociedade, livre da exploração da terra e da opressão do homem sobre o homem. E como Jesus, que frequentou mais os santuários das dores e esperanças humanas que o templo de Jerusalém, peregrinamos de mãos dadas com as vítimas da opressão e, neste ano, com as vítimas da emergência climática que, apesar dos seus sinais mais que evidentes, continua sendo negada e renegada.
Por isso, a escolha do lugar deste encontro de fé, solidariedade e esperança nunca é casual. E a diocese de Santa Cruz do Sul, situada nos vales do rio Taquari, Parto e Jacuí, foi uma das mais atingidas e devastadas pelos eventos climáticos extremos que se abateram sobre o Rio Grande do Sul em setembro de 2023 e maio de 2024. Arroio do Meio, cidade que acolherá a 47ª Romaria da Terra, é uma das cidades que mais sofreu e sofre com estas catástrofes provocadas pela irresponsabilidade humana. Como sempre, os abusos dos mais ricos atingem dolorosamente os mais pobres.
No chão sagrado dos vales do Rio Taquari, do Rio Pardo e do Rio Jacuí, os clamores das pessoas e comunidades atingidas ainda ressoam, mesmo em meio ao rumor das iniciativas de reconstrução. As lágrimas derramadas pelas perdas humanas, culturais e econômicas continuam brotando, mesmo que não sejam mais visíveis e audíveis na grande mídia. A terra desnudada e os rios assoreados continuam expondo suas feridas e convocando-nos a tratá-los mais como companheiras que como fontes de lucros e cloacas de dejetos.
O desafio da reconstrução é muito mais amplo que abrigar os desabrigados e recuperar a fertilidade da terra devastada. Esse desafio inclui uma mudança de hábitos ampla e radical e a adoção de políticas de cuidado, prevenção e preservação a longo prazo. O Papa Francisco, que inspira a campanha quaresmal do Brasil no ano em curso, nos lembra que tudo está interligado; que a mesma lógica que oprime os pobres também devasta a terra; que a globalização da indiferença fere, ao mesmo tempo, a terra e os filhos e filhas da terra; que a causa dos pobres e a causa do planeta são duas faces da mesma luta humana e cristã.
“Reconstruir e cuidar da Casa Comum com fé, esperança e solidariedade” é o lema e compromisso que guiará esta grande celebração que pretende reunir a Igreja sofrida, que ainda chora a dor pelas perdas irreparáveis, e a Igreja solidária, que não se negou e não se nega a repartir recursos, estender a mão e pisar na lama para socorrer seus irmãos e irmãs. Esta Romaria quer ser o encontro samaritano das comunidades, terras e cidades arrasadas com as pessoas, comunidades e organizações que não desviaram o olhar para passar adiante. Será uma bela e estimulante antecipação da Páscoa do Senhor celebrada no altar da vida.

O Brasil de Fato RS produziu uma edição especial impressa sobre a Romaria da Terra e a Missão Sementes de Solidariedade. Para ler outras matérias e reportagens sobre o tema, clique aqui para baixar a edição na íntegra.
*Dom Itacir Brasssiani, MSF – Bispo de Santa Cruz do Sul (RS), doutorando em Geografia
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
