No final de fevereiro, a médica de carreira da Secretaria de Saúde do Distrito Federal (SES-DF), Lucilene Florêncio, pediu demissão do cargo de secretária, após dois anos e meio à frente da pasta. A demissão ocorreu duas semanas após publicação do decreto que criou o comitê gestor da saúde. No lugar de Lucilene, foi nomeado o então presidente do Instituto de Gestão Estratégica em Saúde (Iges-DF), Juracy Cavalcante.
Não é difícil imaginar que a troca tem como pano de fundo a publicação do decreto nº 46.833 do governador Ibaneis Rocha, que criou o comitê para gerir a saúde pública do DF. A ex-secretária foi exposta a uma série de constrangimentos para forçar seu pedido de demissão. O chefe do executivo praticamente tirou os poderes de gestão da SES e passou para o comitê, que inicialmente estava sob comando da Secretaria de Economia e dos serviços sociais autônomos, mais conhecidos como prestadores de serviços terceirizados.
Após forte pressão dos sindicatos, conselhos profissionais, do conselho de saúde do DF, de deputados, e da sociedade civil, Ibaneis Rocha revogou o decreto, publicando um novo em seguida (nº 46.855), que criou o Comitê de Planejamento da Saúde do DF, agora vinculado à SES. Apesar de passar o comando para a Saúde, o que se sabe, nos bastidores, é que tudo foi planejado à revelia da ex-secretária, inclusive a indicação dos 13 membros que irão compor a secretaria executiva do comitê.
Após a saída de Lucilene, as informações que chegam confirmam que a minuta de criação do comitê gestor da saúde (e do comitê de planejamento) foi feita por membros do Iges-DF. Para piorar a situação, além de nenhum dos 12 nomes (do total de 13) para compor a secretaria executiva do comitê ter sido indicado pela ex-secretária, todos são ligados à rede privada, sem vínculo algum com a Secretaria de Saúde.
Decreto fere dispositivos constitucionais
Portanto, o decreto segue ferindo dispositivos constitucionais, como o art. 9º da Lei Orgânica do SUS (Lei nº 8080/ 90), que afirma que a direção do SUS é única, de acordo com o inciso I do art. 198 da Constituição Federal, sendo exercida no âmbito dos Estados e DF pela respectiva Secretaria de Saúde ou órgão equivalente.
O decreto também fere a Lei 8142/ 90, que dispõe sobra a participação da comunidade na gestão do SUS, pois o Conselho de Saúde do DF, responsável por formular estratégias e atuar no controle da execução da política de saúde, sequer foi consultado sobre a criação de um Comitê para enfrentar uma das mais importantes crise pela qual a saúde pública do DF passa.
Mas o mais flagrante e escandaloso é a nomeação do presidente do Iges-DF, um prestador de serviço, para assumir a SES.
Quando isso foi feito pela primeira vez, em 2020, no auge da pandemia, com a nomeação de Francisco Araújo, o mesmo foi preso pela acusação de fraude em licitação e superfaturamento quando era presidente do instituto. E não faz muito tempo que ex-diretores do Iges foram alvo de uma operação da Polícia Civil (Escudero), oriunda de uma denúncia do Ministério Público de esquema de propina para favorecimento de empresas, superfaturamento e lavagem de dinheiro.
Mas antes de qualquer acusação leviana sobre o novo secretário (ou discurso ad hominem), é preciso apontar, sobretudo, qual será seu papel frente à Secretaria e o que sua nomeação representa.
Segundo informações do site Metrópoles veiculada no dia 20 de fevereiro, o secretário de saúde é sócio de cinco empresas: JJA Holding, Clio LTDA, G5 Holding, ERJ Holding e Participações e Embassy Healthcare Serviços Médicos. É categórico, portanto, que há um movimento do próprio governo para que o lobby privado avance sobre a saúde pública do DF.
Nomeação é imoral
O cargo de Secretário de Saúde é de livre provimento, portanto, cabe ao governador decidir quem ele coloca no comando, mas é imoral que um prestador assuma as funções de planejar, ordenar, fiscalizar e controlar as ações do próprio serviço que gerenciava. É importante ressaltar que o governo já destina mais de R$ 1 bilhão ao Iges-DF anualmente (instituído em Lei Orçamentária Anual).
É a maior transferência de verba pública para um serviço terceirizado da saúde no Brasil.
A nomeação de um presidente do Iges-DF pari passu à criação do comitê da saúde visa criar as condições para a entrega dos serviços da SES para prestadores de serviços terceirizados. Sabe-se que a SES possui instrumentos de planejamento das ações de saúde pública, construídos pela equipe técnica de servidores da pasta, tais como o Plano Distrital de Saúde, o Plano anual de Saúde, o Plano Plurianual, dentre outros.
O novo secretário, como membro do conselho comitê, vai cumprir o papel de desburocratizar e não apresentar resistência para que as decisões de terceirização se sobreponham ao planejamento técnico da saúde, já que o comitê de planejamento passa a ter uma composição com três membros da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal, um membro da Secretaria de Estado de Economia do Distrito Federal, um membro da Casa Civil do Distrito Federal e um membro do Conselho de Saúde do Distrito Federal.
Mediante ao que foi aqui exposto, fica nítido que a criação do comitê foi uma manobra administrativa para servir de instrumento único e exclusivo de legitimação da entrega do patrimônio e orçamento públicos da saúde para os serviços sociais autônomos. São R$ 14,4 bilhões de orçamento disponível para a saúde do DF em 2025, o que significa que o governo terá aproximadamente R$ 3 bilhões a mais no orçamento em relação ao ano de 2024.
Balcão de negócios
Toda essa trama revela a intensão do governo de se apropriar desse orçamento. 2025 é um ano pré-eleitoral e a corrida para fazer a linha sucessória ao Palácio do Buriti envolve ampliar o arco de aliança político com setores que dependem do repasse de verba pública como forma de acumulação de patrimônio. Não é nenhuma novidade que muitas das empresas e prestadores de serviços tem relação íntima com o governo e deputados de sua base na CLDF.
Quem se lembra da tentativa do Governo de encaminhar um Projeto de Lei para a Câmara Legislativa em caráter de urgência para entregar a gestão do Instituto de Cardiologia e Transplante (ICTDF) para o Iges-DF sem a realização de chamamento público? À época, um dos membros da junta interventora do Instituto era um ex-diretor do Iges-DF com relações estreitas com seguradoras e empresas da saúde, fato amplamente denunciado por deputados, sindicatos, conselho de saúde e pela mídia.
Na ocasião, Ibaneis enfrentou uma forte resistência na CLDF devido aos conflitos de interesses em relação à entrega da gestão do ICTDF ao IGES, os quais foram publicizados amplamente. A exposição do governo fez com que o PL fosse retirado de pauta para que não ampliasse seu desgaste político. O governo sabe que precisa reduzir a resistência para seguir seus planos de ampliar a terceirização, pois a saúde é a área onde ele tem a pior avaliação entre a população.
A saúde pública do DF não pode ser um balcão de negócios.
O que a saúde precisa é de mais investimentos para superar a atual crise. Só assim é possível frear o processo de terceirização da saúde, nomear mais servidores, melhorar sua infraestrutura, construir novas unidades, acabar com a fragmentação da rede assistencial, organizar o sistema de referência e contrarreferência, e controlar a eficiência da gestão com estratégias perenes para solucionar os problemas de saúde da população.
As entidades sindicais, movimentos sociais, as instituições científicas e acadêmicas, o controle social, parlamentares, os trabalhadores do SUS e a população devem repudiar essa manobra política do governador Ibaneis e exigir a revogação imediata do decreto que cria o comitê de planejamento da saúde. A sociedade deve se mobilizar contra esse ataque ao SUS. Os serviços terceirizados não podem dominar a saúde pública do DF.
Fora Iges-DF da SES!
O Iges-DF não manda no SUS!
*Jorge Henrique é presidente do Sindicato dos Enfermeiros do DF
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.
:: Clique aqui para receber notícias do Distrito Federal no seu Whatsapp ::