“Conta o passado e ilumina o presente”. Assim o ator Selton Mello, que viveu o personagem Rubens Paiva, resumiu a importância do filme ‘Ainda Estou Aqui’. O deputado federal cuja história é retratada na produção cinematográfica foi cassado logo após o golpe militar de 1964. Em janeiro de 1971, foi tirado de sua casa e, pouco depois, assassinado pela ditadura. O exército nunca esclareceu a sua morte e o seu corpo jamais foi entregue à família.
O prêmio de melhor filme internacional no Oscar de 2025 lavou a alma do cinema nacional e de milhões de brasileiros que torceram no clima das antigas copas do mundo. Exagero do nosso jeito expansivo? Talvez, mas convém refletirmos sobre os significados do filme, em emoção, historicidade e consciência.
A obra decorre do encontro de gigantes: Marcelo Paiva escreve sobre o desaparecimento do pai, com sentidos que somente a vida vivida permitiria; Walter Salles, amigo de infância de Marcelo, realiza direção impecável e sensível; um elenco fabuloso, encabeçado por Fernanda Torres, nos mostra a grandeza e a força de Eunice Paiva. A esposa de Rubens não se dobrou frente às fardas e suas condutas momentaneamente assassinas e, também, transcendeu a dor pessoal para abraçar lutas coletivas de populações vulneráveis, como a dos povos originários.
Nos cinemas, as pessoas puderam tomar contato com a brutalidade que devastou uma família de carne e osso, com características de uma típica classe média bem-sucedida, da zona sul branca de qualquer cidade brasileira. Ficou claro que direitos fundamentais, como o direito à vida, foram suspensos naquele período. Isso é ameaçador!
A maior parte dos milhões de espectadores ao redor do mundo se emociona e tem a oportunidade de perceber a importância das garantias individuais e coletivas que protegem a vida. No Brasil, homens e mulheres de cabeça branca choraram em momentos mais agudos dos efeitos autoritários. Alguns, mesmo depois das luzes acesas, não conseguiram conter a dor que volta, revivendo perdas irreparáveis. Ficaram sentados, em pranto nada silencioso.
Já para os mais jovens, uma vivência de acesso à história recente e de uma possível tomada de consciência transformadora. Vivemos nos últimos anos manifestações populares em apoio a pautas da extrema direita, ocupações de espaços em frente a quartéis com pedidos de intervenção militar. Tudo isso culminou em 8 de janeiro de 2023. Era um plano para viabilizar um novo golpe militar. Vencido o plano, instituições lideradas pelo Supremo Tribunal Federal buscam aplicar a lei para julgar os acusados pelos crimes cometidos. Do outro lado, o senador Mourão (Republicanos), ex-vice-presidente da república, já tinha proposto o projeto de lei (PL) 5064, buscando anistia para envolvidos.
Em dezembro de 2024, o Datafolha publicou uma pesquisa sobre o assunto: 62% são contrários à anistia; 33% são favoráveis; 69% apoiam a democracia; e 8% são favoráveis à ditadura. Na consulta pública sobre o PL, 579.843 pessoas já se manifestaram contra o projeto, enquanto 557.442 demonstraram apoio. Esses números mostram que temos que lutar, se quisermos manter o regime democrático.
O filme parece ser uma grande oportunidade de despertar uma maior consciência coletiva sobre o tema. Esperemos novas pesquisas. Enquanto isso, façamos a nossa parte. Refletir coletivamente visando construir referências que nos permitam enxergar que a fragilidade da nossa democracia para entregar serviços à população, com ética e justiça, não pode ser desculpa para rupturas democráticas. Trata-se de retrocesso irracional. Na melhor das hipóteses, anos depois, retornaríamos ao ponto em que estamos, de lutar por instituições melhores. Melhor enfrentarmos o desafio de avançar, democraticamente.
Leice Garcia é presidente dos Observatórios Sociais de Belo Horizonte e de Brumadinho.
Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato MG.