As medidas do governo federal para a redução do preço dos alimentos anunciadas nesta quinta-feira (6) foram celebradas pelos setores governistas, porém, analistas da própria esquerda têm ressalvas sobre a efetividade das ações no combate à inflação e temem o efeito delas sobre a produção nacional. Segundo especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato, o problema só será resolvido de maneira estrutural enfrentando o modelo agroexportador, que leva à perda do espaço destinado à plantação de alimentos para a produção de commodities, vendidas ao mercado externo. Eles criticam ainda a demora do anúncio.
Entre as ações anunciadas, está a de zerar as alíquotas de importação de carne, açúcar, milho, biscoitos, massas, farinha, óleo de cozinha e azeite de oliva. Sobre o azeite, houve um aumento da cota de importação, que hoje está em 65 mil toneladas, para 150 mil toneladas. O vice-presidente da República, Geraldo Alckmin (PSB), descartou que a isenção de impostos sobre importação possa prejudicar a produção nacional desses produtos. “Nós não vamos substituir, mas complementar”, atestou.
O economista e doutor em história pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Pedro Faria, destaca alguns produtos sobre os quais a isenção de impostos sobre importação pode incidir sobre os preços ao consumidor, como sardinha, óleos e biscoitos. “Já no caso do café, açúcar, o impacto é menos provável, porque justamente o Brasil é um grande produtor e exportador, e o problema do preço, principalmente no caso do café, é justamente a quebra de safra no Brasil e, inclusive, em outros países”, destaca.
O professor aposentado de economia agrícola do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e cofundador do Instituto Fome Zero, Walter Belik, avalia positivamente a intenção do governo em apresentar medidas para a redução do preço dos alimentos. No entanto, acredita que elas chegam tarde.
“O governo tinha que apresentar alguma coisa, porque está sofrendo muita pressão da opinião pública, mas algumas medidas estão chegando um pouco tarde. Na verdade, tem uma série de coisas que o governo poderia ter feito preventivamente e não fez. O governo tem instrumentos suficientes para analisar as tendências de mercado e ver o que pode acontecer nos próximos meses. Então algumas coisas eram previsíveis e o governo não tomou nenhuma atitude”, avalia.
Segundo o economista, a maior carga de tributos sobre os alimentos é aplicada pelos estados. “A redução de imposto passa muito pelos governos estaduais. A gente quer ver o que que os governos estaduais têm para contribuir”, afirma. O governo federal sinalizou que haverá negociação com governadores para que os tributos sobre alimentos da cesta básica sejam zerados, já que ainda há unidades da federação que cobram Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) de alimentos básicos.

A medida é avaliada de modo positivo por Belik. “A gente tem que conseguir mexer nessa questão dos impostos interestaduais. Tem muito produto que circula entre os estados e paga imposto interestadual altíssimo, de até 18%. E isso daí precisa melhorar”, defende o professor.
Belik defende ainda que o governo estabeleça um diálogo permanente com os empresários do setor alimentício, garantindo um mínimo de previsibilidade sobre o movimento dos preços. “O governo deveria conversar regularmente com essas pessoas, não desse jeito midiático, chamando a imprensa para dizer: olha, estamos aqui conversando com os empresários”, defende.
Modelo agroexportador
A venda de commodities no mercado internacional para obtenção de renda e, em contrapartida, a substituição da produção nacional pela estrangeira é o que se conhece no mundo da economia como rentismo, prática comum na economia brasileira que adota o modelo agroexportador. Os especialistas são uníssonos em afirmar que essa é uma armadilha para a soberania alimentar.
O reflexo disso já é sentido no Brasil, com a perda gradual de área cultivada para a alimentação, como destaca Faria. “A gente tem visto o declínio da área cultivada de certos alimentos como feijão, mandioca e o aumento da área cultivada de milho, soja, que são as commodities de exportação”, afirma. “E é preciso ter uma atenção do governo para dar mais incentivos para essas culturas que são essenciais para a alimentação, para a segurança alimentar do país.”
A economista Juliane Furno, professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), considera as medidas anunciadas pelo governo como uma sinalização importante à sociedade de comprometimento sobre um tema que preocupa os brasileiros. No entanto, avalia que devem ser de caráter emergencial, já que, a longo prazo, poderiam ter um efeito nocivo para a segurança alimentar e a produção interna do país. Segundo ela, incentivos fiscais dados à produção de commodities tendem a aprofundar a redução da área plantada de alimentos.
Durante o anúncio desta quinta, o vice-presidente da República afirmou que não foi discutida qualquer medida para retomar os impostos sobre exportação, sobretudo de commodities, isentas de tributos pela Lei Kandir (Lcp87), vigente no país desde 1996.
Furno defende a taxação sobre exportações como uma forma de incentivar a produção nacional e reduzir os preços no mercado interno. “É preciso descentralizar essa cadeia de comercialização e distribuição, garantir que haja, inclusive, um elemento que é bem polêmico, mas que poderia ser uma medida emergencial, que é a taxação sobre exportação”, defende.
Já Belik vê com cautela esse tipo de proposta. “Eu discordo dessa visão de que você tem que taxar exportação. Isso daí já foi feito no Brasil, de certa forma, e deu errado. No caso da soja, nós tivemos um mercado paralelo de produto. Os produtores mandavam a soja para o Paraguai, exportavam via Paraguai, e o Paraguai teve um boom de exportação de soja”, explica, destacando que o cenário político não é favorável a esse tipo de medidas.
“No atual clima político que nós estamos vivendo, cutucar isso daí, do ponto de vista do chamado agronegócio, não vai ser muito produtivo. Vai ter turbulência no mercado”, afirma o professor que, por outro lado, pondera: “Eu também acho que a isenção completa de imposto de exportação, como foi desenvolvido pela Lei Kandir, lá nos anos 90, foi contraproducente para o Brasil. Nós tivemos uma primarização da nossa economia, porque o produto primário não pagava imposto nenhum.”
Enfrentando problemas estruturais
Nesse mesmo sentido, a deputada federal Fernanda Melchionna (Psol-RS) é co-autora do Projeto de Lei Complementar (PLP) 48/2025, que propõe a criação de uma taxação mínima de 5% para produtos primários e semielaborados, com uma previsão de arrecadação de R$ 59 bilhões. O PLP ainda cria um sistema de estabilização automática, onde a alíquota é ajustada acima do piso de 5% para produtos que encareçam acima da inflação.
“Está previsto na legislação, mas desde os anos 90 os governos têm mantido a taxação zero para exportação. Então, é muito mais lucrativo para o agronegócio vender toda a produção para fora, o que encarece esse o produto internamente”, destaca a parlamentar.
“Cria-se essa alíquota e uma previsão de acompanhamento da alíquota do imposto de exportação para subsidiar uma outra série de políticas públicas, como o aumento dos estoques públicos para baixar os alimentos, por exemplo. Com a possibilidade de arrecadação, a gente prevê um aumento do Bolsa de Família para R$ 800, que são temas estruturantes para ajudar o povo brasileiro diante das dificuldades econômicas”, ressalta Melchionna, que avalia positivamente as medidas anunciadas, mas pondera sua limitação em resolver a raiz do problema. “Sem enfrentar estruturalmente o agro, não tem jeito”, completa.
Questionado sobre a proposta, Belik avalia que pode ser positiva. “É interessante, porque dessa forma se homogeniza as alíquotas. E você estabelece uma competição, vamos dizer, justa”, avalia. “No Brasil, a gente tinha uma exportação de óleo de soja importante, e hoje em dia a gente exporta o grão. Uma coisa totalmente sem sentido. Se jogar 5% e equalizar com o produto industrializado, de repente, começa a valer a pena.”
A avaliação é compartilha por Furno. “É importante ser proposto, porque você abre a discussão com a sociedade de que tem um setor se beneficiando do aumento dos preços domésticos. Isso é muito positivo”, avalia. “O fato de o agronegócio estar se beneficiando desse momento não diz respeito ao seu próprio ganho de produtividade. Não é que ele foi um setor que desenvolveu uma tecnologia nova, que empregou recursos para tornar o campo mais produtivo. Ele está se beneficiando de um elemento externo, que é o preço de venda dessas mercadorias, que nada tem a ver com as determinações internas”, ressalta a economista.
“Que se taxe os lucros exorbitantes dessa logística exportadora”, defende Melchionna, que reconhece a dificuldade de avanço de medidas como essa no Legislativo sem mobilização social e participação ativa do próprio governo e sua articulação política. “É difícil passar no Congresso sem mobilização. A gente sabe que a bancada do agro é grande, mas o governo poderia usar a sua força política para fazer esse debate com a população, para fazer o enfrentamento. Se a gente não aproveita esses momentos para tentar inverter a lógica da agenda econômica brasileira, infelizmente fica difícil de dar respostas para o povo”, avalia a deputada gaúcha.
Uma das medidas anunciadas pelo governo considerada estruturante por Belik é a recuperação dos chamados “estoques reguladores”. Ela estava prevista no Plano Nacional de Abastecimento, lançado pelo governo em outubro do ano passado, mas, segundo o professor, pouco avançou desde então. “Não teve nada. Tem no plano, mas o plano não tem orçamento, não tem metas”, avalia Belik, que questiona o projeto de modernização e reformulação das Centrais de Abastecimento (Ceasa), também anunciado e não realizado. “Esse é um passo importantíssimo, porque o preço que chega no varejo hoje passa pelo atacado, passa pelas Ceasas, que estão com estruturas obsoletas”, afirma o economista.
Juliane Furno vai na mesma direção. “As Ceasas podiam cumprir um papel muito maior do que elas cumprem. Por exemplo, identificando quais são as demandas dos supermercados e suprindo essa demanda com oferta dos produtores, direto do produtor, reduzindo o custo grande do atravessador. Ela [Ceasa] podia atuar mais diretamente nos supermercados locais, colocando esses produtos dos produtores direto que são precificados com custo de produção, e barateando diretamente na ponta”, explica.
Outro aspecto da produção local destacado por Furno foi a redução do preço dos insumos e bioinsumos para a agricultura familiar. “Tem que começar agora a estimular a produção de bioinsumos, porque, embora a produção seja feita aqui, os insumos praticamente na sua totalidade são importados. Então se a gente pudesse dirimir a vulnerabilidade cambial com insumos e bioinsumos, inclusive, dialogando com a questão ambiental, seria muito importante”, avalia a economista, que destaca ainda a necessidade de reestruturação do Plano Safra para que priorize a produção de alimentos para o consumo interno.
O anúncio
Na questão regulatória, o governo federal anunciou a aceleração do Sistema Brasileiro de Inspeção de Produtos de Origem Animal (Sisbi) para permitir que o atual sistema municipal possa servir como referência para o sistema nacional, além de aumentar a aplicação do sistema de vigilância dos atuais pouco mais de 1,5 mil municípios para 3 mil municípios. O objetivo, segundo o governo, é ampliar a produção de leite, ovos e mel. Atualmente, o Sisbi se aplica apenas a produtos dirigidos a exportação.

Foi anunciado também que o Plano Safra 2025-2026 terá foco no estímulo da produção de alimentos da cesta básica, sobretudo da agricultura familiar, e no fortalecimento da política de estoques reguladores. No entanto, não foram mencionados os valores que serão destinados à agricultura familiar e ao agronegócio. No ano passado, o setor do agro recebeu mais de R$ 500 bilhões em créditos e incentivos do Plano Safra, enquanto a agricultura familiar recebeu pouco mais de R$ 76 bilhões.
Além disso, haverá uma parceria com a iniciativa privada para dar publicidade aos melhores preços, visando estimular a disputa e ajudar o consumidor a economizar. As medidas não têm prazo de validade. De acordo com o governo, ficarão vigentes até que haja redução significativa do preço dos alimentos.
O anúncio não estava previsto e foi decido às pressas. Pela manhã, houve reunião da equipe econômica do governo com o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro (PSD), em que esteve presente o chefe da Secretaria de Comunicação Social (Secom), Sidônio Pereira. Na saída, Fávaro e Sidônio afirmaram a jornalistas que haveria um anúncio no Palácio do Planalto.
Logo depois, os ministros se dirigiram ao Planalto onde, junto com os titulares do Desenvolvimento Agrário, Paulo Teixeira (PT), Casa Civil, Rui Costa (PT), e Alckmin, apresentaram a proposta ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que teria, então, dado o aval para as medidas, caso houvesse apoio do setor empresarial.
Em seguida, houve uma reunião, que já estava agendada, entre os ministros e cerca de 40 representantes do setor de alimentos. O presidente Lula estava no Planalto, mas não participou. Por volta das 19h, a imprensa foi chamada à sala de reuniões para uma coletiva dos ministros, em que foram feitos os anúncios.