Durante a 3º Ação Internacional da Marcha Mundial das Mulheres, em 2010, foi lançada a tradução para o português de um livro muito interessante de Ana Isabel Alvarez González: As Origens e a Comemoração do Dia Internacional das Mulheres, publicado pela editora Expressão Popular. Diversas são as histórias que existem sobre esse dia, que é comemorado no 08 de março, e a autora nos apresenta uma possibilidade de desvendarmos esses fatos e mitos sobre uma data tão simbólica para a luta das mulheres e para a sociedade como um todo.
A pesquisa realizada pela autora vai a fundo conhecer a história do movimento de mulheres socialistas do final do século 19 e início do século 20. Revela embates e contradições dentro do movimento socialista quanto ao reconhecimento da importância da igualdade entre os sexos e da libertação das mulheres.
A luta das mulheres reivindicava o direito ao voto, ao reconhecimento como portadoras de bens e direitos, o acesso ao trabalho e ao espaço público. A autora relata os acontecimentos do trágico e marcante incêndio em uma fábrica nos Estados Unidos, onde mais de cem operárias foram mortas. Tal evento foi de suma importância para o desenvolvimento do movimento operário estadunidense, no entanto, a autora desconstrói o mito que o vincula à criação do Dia Internacional das Mulheres.
Ao se completar um século desde que as mulheres socialistas reunidas em Copenhague aprovaram a proposta do Dia Internacional das Mulheres, a recuperação do significado dessa data é uma contribuição importante para a reflexão sobre os desafios, as formas de organização e as reivindicações que mobilizam a luta das mulheres ainda hoje.
Abaixo, confira a apresentação do livro, escrita pela militante feminista Nalu Faria, liderança histórica da Marcha Mundial das Mulheres e coordenadora da Sempreviva Organização Feminista (SOF), que partiu em 06 de outubro de 2023.
Por Nalu Faria
Quando a Segunda Conferência Internacional de Mulheres Socialistas, realizada em Copenhague em 1910, decidiu pela realização de um dia internacional especialmente dedicado à luta das mulheres, nascia, cem anos atrás, o principal dia de luta do movimento de mulheres no mundo. Retomar o sentido da comemoração do Dia Internacional das Mulheres é recuperar parte da história de luta das mulheres, de alguns dos seus debates mais importantes e do esforço das militantes socialistas para convencer suas organizações políticas da centralidade da luta pela libertação das mulheres.
O direito ao voto era, então, bandeira central das mulheres em grande parte dos países no mundo. As militantes socialistas nos Estados Unidos já haviam organizado um dia de mobilização pelo voto em anos anteriores. Inspirado nesse exemplo, o movimento de mulheres socialistas aprovou a proposta de um dia de luta unificado internacionalmente.
Em diversos países já existiam movimentos de mulheres por mudanças na legislação civil, em especial na regulamentação do casamento e do divórcio, pelo direito de frequentar escolas e exercer ofícios e profissões, de terem acesso à herança e aos bens da família, de participar de associações políticas e sindicais. Mas a reivindicação que mais se destacava e mobilizava especialmente as mulheres era o direito de voto, considerado um instrumento indispensável para que os demais direitos pudessem existir.
Formou-se, assim, um expressivo movimento em torno dessa reivindicação, um movimento sufragista, que com características e dinâmicas distintas mobilizou mulheres em diferentes países, por um largo período. Esse mesmo período, as últimas décadas do século 19 e inícios do século 20, foi um momento de grande confronto de classes, com a organização do movimento socialista em diversos países. É no marco desses debates e conflitos que as militantes socialistas se organizaram, buscando formar um movimento forte, capaz de combinar a luta pela libertação das mulheres com a luta pela transformação global da sociedade, com argumentos – e força – para convencer os camaradas homens que a opressão das mulheres, sua permanência no estreito círculo da família e do trabalho doméstico, era uma força contrária às propostas de igualdade defendida pelo socialismo.
O direito de voto foi uma reivindicação central para as distintas correntes que se formaram na mobilização das mulheres. A discussão sobre as formas de luta e a construção de alianças provocava uma permanente tensão tanto nas correntes do movimento sufragista independente quanto entre as militantes socialistas. Alianças que pareciam tão óbvias entre setores oprimidos permaneciam sempre conflituosas e frágeis e, com frequência, se rompiam em prejuízo de seu elo mais fraco: as mulheres. Alguns exemplos são bastante simbólicos. A dedicação das organizações de mulheres nos Estados Unidos à luta pelo fim da escravidão dos negros não garantiu a elas que os abolicionistas apoiassem a igualdade para as mulheres, fossem brancas ou negras, uma vez abolida a escravidão.
Da mesma forma, no movimento socialista as militantes terão que dedicar parte importante de suas energias, e muitas vezes abrir mão de suas reivindicações, para convencer os partidos de esquerda que valia a pena lutar pela igualdade para as mulheres. E nem sempre foram bem-sucedidas. Nos textos de Alexandra Kollontai e Clara Zetkin, de diferentes períodos entre 1906 e 1920, apresentados como anexos ao final deste livro, é insistente a argumentação de que a luta das mulheres, ao contrário de ameaçar a luta do proletariado, a reforça.
A história do Dia Internacional das Mulheres traz o debate da difícil construção da luta pela igualdade entre mulheres e homens no conjunto da esquerda ao mesmo tempo em que mostra os limites da luta feminista quando não se insere na busca de transformações estruturais das relações sociais e econômicas. A opressão das mulheres não surge com a sociedade de classes, mas em todas as formações sociais homens e mulheres foram reinseridos segundo sua classe, e a desigualdade entre mulheres e homens se remodela favorecendo a dominação masculina ao combinar as relações sociais de sexo (ou de gênero) com a dominação de classe.
A luta das militantes feministas socialistas, com os distintos instrumentos teóricos e políticos da cada época, é marcada pelo esforço de construir as condições para uma transformação integral das relações sociais. Isso exige uma elaboração teórica e uma ação política que altere os estreitos limites com os quais a esquerda ainda enxerga a luta das mulheres.
Como um texto histórico, o livro de Ana Isabel retrata o debate da época, e nos estimula a refletir sobre as formulações e contribuições que o feminismo trará, posteriormente, para a análise marxista e os diferentes desafios da luta socialista. A partir dos anos 1960 e 1970, desenvolve-se um amplo debate no feminismo sobre o significado dos mecanismos de opressão das mulheres, das distintas formas de organização familiar e o papel do trabalho das mulheres em todas as sociedades e formações históricas. Aprofunda-se a compreensão da particularidade do capitalismo que, ao radicalizar a divisão entre público e privado, distancia produção e reprodução possibilitando uma redução do conceito de trabalho (enfatizada na elaboração marxista tradicional) que não reconhece o enorme volume de trabalho realizado pelas mulheres por detrás das relações mercantis propriamente ditas.
Em particular a elaboração feminista sobre a divisão sexual do trabalho como estratégia integrante da exploração capitalista e como mecanismo que revalida as relações de poder e opressão entre mulheres e homens traz uma nova perspectiva para a análise da dominação capitalista e, também, das razões da permanência da chocante desigualdade entre mulheres e homens naquelas sociedades que tentaram romper com a desigualdade de classe. São questões que, sem dúvida, exigem elaboração muito além do que aqui se pretende abordar; de fato, são um pano de fundo permanente do debate que uma perspectiva feminista socialista cobra da esquerda.
Por outro lado, em grande medida devedora ou herdeira da ousadia teórica e política de militantes como Alexandra Kollontai, a chamada segunda onda do feminismo, após os anos 1960, coloca em destaque a proposta da autonomia das mulheres e a essencial igualdade também no âmbito das relações pessoais e no exercício da sexualidade. Com instrumentos teóricos e políticos inexistentes nas primeiras décadas do século 20, o feminismo retoma uma plataforma de igualdade nas relações pessoais, de crítica aos modelos tradicionais de família, da exigência da autonomia das mulheres, insistindo na importância do controle sobre a reprodução.
Uma plataforma que em grandes linhas e com surpreendente radicalidade vemos presente em medidas tomadas pelos bolcheviques nos primeiros anos da Revolução Russa. Aliás, o que deveria nos chocar é perceber o quanto a esquerda se tornou conservadora nas décadas seguintes e o quanto esses debates se perderam na memória de grande parte dos militantes, homens e mulheres, até que o feminismo viesse cobrar, novamente, a coerência da construção da igualdade entre mulheres e homens na proposta socialista.
Recuperar o histórico do Dia Internacional das Mulheres como parte da luta social, como inegável ponto de intersecção entre a luta das trabalhadoras, do movimento socialista e da luta feminista, evidencia o caráter político dessa comemoração e, ao mesmo tempo, retoma historicamente o esforço das militantes socialistas em construir uma dinâmica de organização e luta específica das mulheres. A história evidencia a resistência – e mesmo o rechaço – de setores do movimento socialista à perspectiva de organização das mulheres, alicerçada na recorrente incompreensão do direito das mulheres à igualdade no mundo público (ao trabalho e à participação política), contrastando com a realidade da sua presença no trabalho agrícola e no proletariado industrial, já fortemente marcado pela divisão sexual do trabalho. Em diversos setores a mão de obra feminina era mesmo majoritária. Difícil seria pensar na organização da luta revolucionária sem a participação das trabalhadoras.
No entanto, duas lógicas aparentemente contraditórias se complementam – o impulso para a presença das mulheres no mercado de trabalho e o reforço de seu lugar na família. A exploração capitalista não destrói a estrutura familiar, como inicialmente imaginaram os pensadores marxistas. E o movimento sindical, predominantemente masculino, apoiou e reforçou o papel da família operária e o lugar ideal das mulheres como donas de casa e mães de família. A contradição entre reivindicações de melhoria das condições de trabalho muitas vezes se apoiou na restrição ao direito das mulheres ao trabalho, alimentando uma lógica de organização do mercado de trabalho, legitimada durante décadas, que considerava “natural” a demissão das mulheres ao se casarem, ou a existência de profissões consideradas “adequadas” ao padrão de feminilidade imposto. São alguns dos mecanismos de controle da exploração dos trabalhadores em seu conjunto, e das mulheres em particular, que favorecem os trabalhadores do sexo masculino reforçando a desigualdade entre mulheres e homens.
Após sua aprovação na Segunda Conferência de Mulheres Socialistas em 1910, inspirada no Woman’s Day (Dia da Mulher) organizado pelas socialistas dos Estados Unidos, as comemorações de um dia internacional das mulheres organizadas pelas militantes socialistas ocorrem em dias diferentes a cada ano nos distintos países. O livro nos relata a história dessas comemorações, orientadas prioritariamente para a reivindicação do direito de voto, sem a definição de um dia específico para sua realização entre os anos de 1911 e 1920. Foram as manifestações das mulheres na Rússia, no dia 8 de março de 1917 (dia 23 de fevereiro segundo o antigo calendário russo) que motivaram a escolha do dia 8 de março como a data comum para comemoração do Dia Internacional das Mulheres, alguns anos depois.
A confluência das comemorações do Dia Internacional das Mulheres com a greve das operárias têxteis e a revolta das mulheres com a escassez de alimentos foi o estopim da Revolução de Fevereiro de 1917 na Rússia. O texto de 1920 de Kollontai, publicado neste livro, descreve a mobilização das mulheres:
Em 1917, no dia 8 de março (23 de fevereiro), no Dia das Mulheres Trabalhadoras, elas saíram corajosamente às ruas de Petrogrado. As mulheres – algumas eram trabalhadoras, algumas eram esposas de soldados – reivindicavam “Pão para nossos filhos” e “Retorno de nossos maridos das trincheiras”. Nesse momento decisivo, o protesto das mulheres trabalhadoras era tão ameaçador que mesmo as forças de segurança tsaristas não ousaram tomar as medidas usuais contra as rebeldes e observavam atônitas o mar turbulento da ira do povo. O Dia das Mulheres Trabalhadoras de 1917 tornou-se memorável na história. Nesse dia as mulheres russas ergueram a tocha da revolução proletária e incendiaram todo o mundo. A revolução de fevereiro se iniciou a partir desse dia.
Da mesma forma Trotski relata o início da revolução em A história da Revolução Russa (capítulo 7), enfatizando que as mobilizações das mulheres passaram por cima do receio das direções partidárias que consideravam que as condições para um movimento grevista não estavam dadas:
O dia 23 de fevereiro era o Dia Internacional da Mulher. Os círculos da social-democracia tencionavam festejá-lo segundo as normas tradicionais: reuniões, discursos, manifestos. Na véspera ainda ninguém poderia supor que o Dia da Mulher pudesse inaugurar a Revolução. Nenhuma organização preconizara greves para aquele dia. (…) Tal foi a linha de conduta preconizada pelo Comitê, nas vésperas do dia 23, e parecia ter sido aceita por todos. No dia seguinte, pela manhã, apesar de todas as determinações, as operárias têxteis de diversas fábricas abandonaram o trabalho e enviaram delegadas aos metalúrgicos, solicitando-lhes que apoiassem a greve. Foi “contra a vontade”, escreve Kayurov, que os bolcheviques entraram na greve, secundados pelos operários mencheviques e socialistas-revolucionários. Visto tratar-se de uma greve de massas, não havia outro remédio senão fazer com que todos descessem à rua e tomar a frente do movimento (…) ninguém, absolutamente ninguém – podemos afirmar categoricamente baseando-nos em todos os documentos consultados – supunha que o dia 23 de fevereiro marcaria o início de um assalto decisivo contra o absolutismo.
A mobilização das mulheres respondia a mais de uma motivação. E detonava a insatisfação exacerbada pelo longo período de opressão e de guerra. Como já mencionara Kollontai, para a mobilização das mulheres nas ruas confluíram as grevistas do setor têxtil, as imensas filas para a distribuição do pão, mulheres familiares dos soldados do exército – chamadas de soldatki – explodindo uma revolta acumulada contra a repressão do regime tsarista intensificada pela guerra. A revolta se estendeu por vários dias, ganhando, cada vez mais um caráter de greve geral e de luta política. O relato de Trotski pontua com detalhes a iniciativa das mulheres:
É evidente pois que a Revolução de Fevereiro foi iniciada pelos elementos de base, que ultrapassaram a resistência de suas próprias organizações revolucionárias, e que esta iniciativa foi tomada espontaneamente pela camada proletária mais explorada e oprimida que as demais – as operárias da indústria têxtil, entre as quais, deve-se supor, estavam incluídas numerosas mulheres casadas com soldados. O impulso decisivo originou-se das intermináveis esperas nas portas das padarias. O número de grevistas, mulheres e homens, orçou, neste dia, por volta dos 90 mil. (…) Uma multidão de mulheres, nem todas operárias, dirigiu-se à Duma Municipal, pedindo pão. Era o mesmo que pedir água a uma pedra. Em outras partes da cidade foram desfraldadas bandeiras vermelhas cujas inscrições atestavam que os trabalhadores exigiam pão, mas que também não queriam mais a autocracia nem a guerra. O Dia da Mulher foi bem-sucedido, cheio de entusiasmo e sem vítimas. Anoitecera e nada revelava ainda o que esse dia trazia em suas entranhas.
Foi para relembrar a ação das mulheres na história da Revolução Russa que o Dia Internacional das Mulheres passou a ser comemorado de forma unificada no dia 8 de março. A decisão de unificação da data foi tomada na Conferência de Mulheres Comunistas, coincidindo com o Congresso da Terceira Internacional, realizado em Moscou, em 1921. Parte dessa história, entretanto, ficou esquecida durante vários anos. É verdade também que, em especial a partir da década de 1930, o estalinismo corrompeu o sentido de luta do 8 de Março, transformando-a durante longos anos em uma festa de exaltação da maternidade, em defesa da paz e da pátria soviética. O sentido de reivindicações das mulheres, de construção da igualdade é deixado para trás, assim como foram destruídas várias das conquistas iniciadas com a Revolução de 1917.
Quando novamente ganharam fôlego as comemorações, após os anos 1960, muitas versões se contaram, se confundiram, se criaram e os acontecimentos e motivações que deram origem ao Dia Internacional das Mulheres, ao 8 de Março ficaram submersos. Quantas de nós já não ouvimos, e repetimos, que a origem do 8 de Março está vinculada a um incêndio que causou a morte de uma centena de operárias…! Um incêndio que de fato existiu, acontecimento trágico e marcante na história do movimento operário dos Estados Unidos, mas cuja história não se vincula à proposição de um dia de luta das mulheres e, tampouco, à definição da data de sua comemoração.
A publicação deste livro, que busca desvendar As Origens e a Comemoração do Dia Internacional das Mulheres, é assim bastante oportuna. A autora recompõe com detalhes a história da criação do Dia Internacional das Mulheres e a definição posterior de um dia unificado para sua comemoração, o dia 8 de março, acontecimentos diretamente vinculados à luta das mulheres socialistas. Ao mesmo tempo, aponta os dados que nos ajudam a compreender como uma versão tão diferente se impôs por tanto tempo em mais de um país.

A tentativa de desvendar essa história não é uma iniciativa inédita, a própria autora esclarece. O estudo pioneiro de Renée Côté, publicado em 1984 no Quebec, Canadá, inspirou indagações e a pesquisa da história. Logo após aparece artigo de Temma Kaplan, nos Estados Unidos, impulsionado pelas dúvidas levantadas por militantes feministas francesas… Assim a história vai se recompondo.
No Brasil, a retomada dessa história dá os primeiros passos em 1996, com um texto de Naumi Vasconcelos, apoiado em Renée Côté. E vai pouco a pouco sendo divulgada, com mais ênfase, mas não apenas, em publicações da esquerda e dos movimentos sociais, algumas delas abordando distintos aspectos da história.
O livro de Ana Isabel Álvarez González, agora publicado em português, contribui para a divulgação da história, ao mesmo tempo em que elucida o tema do incêndio e relata a permanente tensão das militantes socialistas para que as organizações e partidos da classe trabalhadora incorporassem as reivindicações das mulheres. Tensão que aponta para a necessidade de organização das mulheres no conjunto da esquerda e para a construção do movimento de mulheres.
A segunda onda do feminismo, tal como a primeira, teve um rápido processo de internacionalização e, a partir dos anos 1960, o Dia Internacional das Mulheres é retomado com destaque como uma data de luta do movimento. A existência de um dia comum tem um papel significativo de mobilização. A incorporação pela ONU do 8 de Março como data mundial contribuiu para essa retomada em larga escala, ao mesmo tempo em que também incentivou um viés institucional da comemoração.
Em especial após os anos 1980, os meios de comunicação, diversas instituições e empresas vêm tentando absorver o Dia Internacional das Mulheres e transformá-lo em mais um evento do mercado, um dia de flores, de homenagens, de presentes… e de reforço da feminilidade tradicional. Nos últimos anos esse tem sido, até mesmo, um momento de investida antifeminista: jornais e revistas publicam artigos questionando se o feminismo ainda existe ou se ainda é necessário buscar a igualdade. Uma vez que “as mulheres já conquistaram tudo”, tratar-se-ia agora de combater os exageros feministas para que a mulher não perca a feminilidade.
Ao se tornar referência no mundo inteiro, o 8 de Março tem um importante papel na manutenção da identidade de um movimento amplo de mulheres e é um instrumento de mobilização e aglutinação das mulheres em torno da luta pela igualdade. Em um movimento tão amplo e disperso, que é característica do movimento de mulheres, a construção de um calendário de lutas pode ter um papel decisivo de mobilização e construção de uma identidade política, assim como a construção de símbolos, de dinâmicas próprias e o compartilhamento de uma história comum.
No Brasil, tornou-se também parte do calendário de lutas do conjunto dos movimentos, com o esforço permanente para garantir o protagonismo das mulheres; assim como uma dinâmica de luta, de mobilização e resistência, permanece como uma disputa política e depende do grau de organização e força das militantes feministas socialistas no movimento. Afinal, a perspectiva organizativa de qualquer luta, o rumo de qualquer movimento são resultado de projetos políticos. Não serão resolvidos por decisões administrativas e tampouco pela eliminação sectária das divergências ou de setores do movimento. Um 8 de Março militante é parte do projeto de construção de um movimento de mulheres forte, capaz de atuar em conjunto com outros movimentos sociais, aglutinando as militantes organizadas também nos movimentos e organizações sociais mistos, em torno de uma plataforma que articule a luta pela igualdade entre mulheres e homens com a luta pela transformação das relações de classe e de raça. Em síntese, trata-se de atuar para que uma perspectiva que integre a luta pela igualdade, anticapitalista, antirracista e antipatriarcal seja o eixo estruturador do movimento de mulheres, um movimento feminista e socialista.
Essa disputa não se faz apenas no interior do movimento de mulheres. No campo da esquerda, dos movimentos, partidos e organizações dos trabalhadores ainda prevalecem visões equivocadas do que é o feminismo e o movimento de mulheres. Com frequência, o movimento de mulheres, e suas reivindicações, é caracterizado como um movimento de classe média, intelectualizado, sem relação com o que se avalia serem as necessidades das “mulheres comuns”. Ao mesmo tempo, a opressão das mulheres é vista por uma ótica culturalista, no plano das ideias, sem que se compreenda, ou se admita, as contradições materiais concretas das relações sociais de sexo, que são a base efetiva da necessidade da organização própria das mulheres.
A força das ideias feministas, mesmo que não com esse nome – isto é, a força da luta pela igualdade entre mulheres e homens – se construiu através de amplas lutas sociais, em consonância com uma proposta de mudança anticapitalista. Lutas em que as mulheres trabalhadoras tiveram e têm um papel fundamental, na maior parte das vezes tensionadas pela cobrança que contrapõe nossa fidelidade à classe trabalhadora à nossa rebeldia contra a opressão das mulheres. É nosso desafio romper com essa dicotomia. Um novo mundo só nos corresponderá se for de igualdade também para as mulheres. Assim, a construção de uma prática e uma consciência feminista pode ser sintetizada na palavra de ordem: para mudar a vida das mulheres temos que mudar o mundo e, portanto, todas as lutas por mudanças são também lutas das mulheres.
Ao se completar um século desde que as mulheres socialistas reunidas em Copenhague aprovaram a proposta do Dia Internacional das Mulheres, a recuperação histórica do significado dessa data é uma contribuição importante para a reflexão sobre o que é constitutivo da luta feminista: a afirmação, cada vez mais, da autonomia e soberania das mulheres e de que a igualdade entre os sexos tem que ser parte fundamental de todos os processos de transformação. Esse é o lugar do 8 de Março na longa jornada das mulheres: reafirmar que sem socialismo não há feminismo, sem feminismo não há socialismo.
*Maura Silva integra a equipe de comunicação da editora Expressão Popular