O avanço da extrema-direita em todo o mundo, com a eleição de figuras como Javier Milei, na Argentina, Donald Trump, nos Estados Unidos, e o fortalecimento de setores da bancada evangélica e do agronegócio no Brasil, no Congresso Nacional, tem colocado em risco direitos historicamente conquistados pelas mulheres globalmente.
Na Argentina, Javier Milei, eleito em 2024 pelo partido La Libertad Avanza, foi categórico ao extinguir o Ministério da Mulher, Gênero e Diversidade, alegando ser uma pasta “esquerdista” e com o intuito de cortar orçamentos sociais. O ministério foi reestruturado e transformado em uma subsecretaria.
Nos Estados Unidos, com o retorno de Trump à Casa Branca, políticas antigênero têm sido implementadas, afirmando que existem apenas dois gêneros: masculino e feminino. Isso causou retrocessos até no Brasil, como o fechamento da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAid), que, entre outras ações, financiava projetos voltados para mulheres, especialmente indígenas, que participavam de cursos de gênero, inglês e valorização de cadeias produtivas sustentáveis. Esse fechamento de recursos essenciais impacta de forma direta projetos voltados à capacitação e empoderamento feminino.
As ações do atual presidente estadunidense refletem diretamente no Brasil. Segundo pesquisa de especialistas e lideranças dos movimentos feministas, o fechamento da USAid impactou a destinação de recursos essenciais para essas iniciativas.
“Trump é uma ameaça para nós, no Brasil, o inominável está forte. Quem leva internet para os territórios indígenas? A Starlink de Elon Musk. Todos os governadores da Amazônia são de direita. O governador do Pará vendeu vários territórios para o mercado de carbono. O poder político da direita está forte”, analisa a antropóloga Braulina Baniwa. Se antes as terras eram negociadas em troca de bens simbólicos, hoje a conectividade tem se tornado um fator central, com a expansão de serviços como a Starlink, de Elon Musk, nos territórios.

No Brasil, grupos antigênero se fortaleceram com a eleição do Congresso mais conservador dos últimos tempos. Em 2024, mulheres foram às ruas em protesto contra o PL 1904/24, apelidado de “PL da Gravidez“, de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), que propunha a proibição da interrupção da gravidez após 22 semanas de gestação, considerando-a homicídio. A pauta “Criança não é mãe”, defendida por organizações feministas, ganhou força nas redes sociais e nas ruas, forçando os deputados a recuarem.
No palco da política, a representatividade de mulheres no Congresso cresceu, mas ainda de maneira tímida. Nas últimas eleições, dos 513 deputados eleitos, 311 são homens que se declararam brancos, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). A bancada feminina aumentou para 91 mulheres, representando cerca de 18% da composição, o que ainda reflete um descompasso em relação à realidade nacional, em que as mulheres representam a maior parte da população.
Além disso, a misoginia também se expressa na violência política, com o aumento dos ataques contra mulheres candidatas. Uma pesquisa realizada pelas organizações Justiça Global e Terra de Direitos identificou que 46% dos casos de violência política entre novembro de 2022 e 15 de agosto de 2024 foram contra mulheres, afetando principalmente mulheres negras e trans.
Diante desse cenário, especialistas e pesquisadoras em direitos das mulheres apontam que a conjuntura atual tem contribuído para o aumento do feminicídio. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 90% dos assassinos de mulheres são homens. Além disso, dados de 2024 revelam um aumento de 47% nos casos de pornografia e divulgação de cenas de estupro, com 83 mil casos de estupro registrados apenas neste ano.
Para Analba Brazão Teixeira, educadora do SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia e militante da Articulação de Mulheres Brasileiras e da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco (PE), o movimento feminista tem sido o que mais cresceu nos últimos anos e o que mais avançou em termos de direitos. No entanto, também é visto como uma grande ameaça por setores políticos.
“O movimento feminista tem sido uma grande ameaça para a extrema direita. Por sermos uma ameaça, o antifeminismo se alimenta nos discursos, isso é evidente nas igrejas pentecostais. Os movimentos feministas e LGBTQ+ são vistos como uma ameaça. A criminalização da luta, o individualismo, o empobrecimento das mulheres e a precarização da vida estão em ascensão”, avalia.
Fundamentalismo religioso
O ataque aos direitos das mulheres não se limita ao âmbito político, mas também se estende a questões do fundamentalismo religioso, que atacam não apenas os direitos reprodutivos, mas também geram divisões nos territórios indígenas. “O nosso maior silêncio é causado pelas igrejas, que estão dividindo as comunidades. Algumas lideranças estão sendo cooptadas”, afirma Braulina Baniwa.
No Brasil, a intolerância religiosa tem sido uma realidade cada vez mais presente, com ataques explícitos a práticas religiosas de matriz africana e ao direito das mulheres de seguirem suas próprias crenças. Como observa Analba Brazão Teixeira, “estamos vendo os terreiros sendo queimados”, evidenciando a perseguição e a violência religiosa contra aquelas que professam religiões afro-brasileiras. Mulheres negras, que geralmente ocupam posições de liderança espiritual nessas religiões, têm sido alvos não só de agressões físicas, mas também de ataques simbólicos e morais, sendo deslegitimadas.

Além disso, a crescente presença de grupos religiosos conservadores têm colocado em risco a autonomia das mulheres, tentando impor uma visão única sobre moralidade, sexualidade e direitos reprodutivos. Em comunidades indígenas, essa imposição de crenças também tem causado rupturas, enfraquecendo a resistência feminina contra a opressão histórica. A intolerância religiosa vai além da perseguição às crenças: ela é um fator de opressão que restringe os direitos das mulheres, prejudica suas expressões culturais e espirituais e, muitas vezes, as coloca em situações de vulnerabilidade social e política.
Racismo ambiental
Como guardiãs dos saberes ancestrais e medicinais, as mulheres indígenas têm sido duramente afetadas pelos efeitos das mudanças climáticas. Braulina Baniwa relata os impactos devastadores da seca nos rios e da poluição causada pelo garimpo, que afetam diretamente a segurança alimentar e a saúde das mulheres e povos indígenas.
“As maiores afetadas pelas mudanças climáticas são as mulheres. No Amazonas, em algumas comunidades, rios azedaram, peixes morreram e mandiocas ficaram podres”, denuncia.

A escassez de alimentos e a contaminação das águas agravam doenças e enfraquecem ainda mais as comunidades, especialmente mulheres e crianças. A insegurança alimentar, impulsionada pelas mudanças climáticas, é um problema crescente, pois muitas dessas aldeias dependem da pesca e da agricultura. Somado a isso, a exploração de territórios indígenas intensifica a violência e o racismo ambiental, afetando diretamente as mulheres, vítimas de violência física, sexual e psicológica. A luta das mulheres indígenas, como Braulina, contra a degradação ambiental e a defesa de seus direitos territoriais é também uma resistência ao sistema que historicamente as silencia.
Novas gerações: “Esse canto precisa ser cantado mais vezes“
A avalanche de desinformação nos territórios indígenas e pressões nos territórios têm sido alguns dos maiores desafios para o engajamento da juventude nos movimentos de mulheres. Analba e Braulina manifestaram preocupação com a formação e participação das juventudes indígena e negra, destacando a necessidade de fortalecer esse engajamento para o futuro dos direitos das mulheres.
Analba compartilha a visão de que o movimento de mulheres precisa buscar novas linguagens para se comunicar com a juventude, mas que a juventude também precisa olhar para trás e aprender com quem chegou antes.

“Precisamos de novas linguagens para engajar a juventude no movimento. O tradicional nem sempre capta sua atenção, e as redes sociais, embora importantes, podem reforçar o individualismo em vez da coletividade. A geração mais velha precisa se abrir para as novas formas de expressão da juventude, que ainda desconhece conceitos como a educação popular feminista, algo que poderia ser discutido nas redes. Gosto muito do conceito de Sankofa: olhar para o passado, refletir sobre o presente e projetar o futuro. É um desafio constante, mas precisamos nos abrir ao novo, que pode somar e fortalecer nossa luta”, aponta.
A necessidade de formar novas gerações também é uma visão compartilhada por Braulina, que avalia a importância das mulheres indígenas terem novas referências no movimento. “A Maninha Xukuru, a Tuíra Kayapó foram referências para nós. A Sônia Guajajara (atual ministra dos Povos Indígenas) também será uma grande referência. Esse despertar da força das mulheres precisa ganhar espaço na cena. Hoje temos caderno e caneta, mas é preciso criar momentos de formação. É necessário fortalecer esse espírito de liderança e a presença no espaço institucional. A força do canto, esse canto precisa ser cantado mais vezes”, diz.
A luta por justiça e igualdade
Apesar do cenário de violência, retrocessos e ameaças aos direitos das mulheres, tanto Analba quanto Braulina reafirmam a importância da luta feminista e indígena como um movimento de resistência e de esperança. Ambas destacam a importância da organização coletiva como a principal ferramenta para a transformação. Para Analba, “o que precisamos fazer é nos organizar em movimento”, enquanto Braulina aponta que “a educação é o caminho”, reforçando a necessidade de formação para que as mulheres indígenas possam se tornar líderes e ocupar espaços de poder.

Os movimentos de mulheres negras e indígenas no Brasil se preparam para uma agenda de mobilização forte no ano de 2025, que conta com a 4° Marcha das Mulheres Indígenas, no mês de agosto, e a 2° Marcha das Mulheres Negras, no mês de novembro, ambas em Brasília. A perspectiva das mulheres negras é levar um milhão de mulheres para a capital federal, que marcharão por “Reparação e Bem Viver”, temática da mobilização neste ano.
Reportagem produzida em parceria com a Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE).