O sonho da moradia digna nunca esteve tão perto para Ni e Elis. Do prédio em reforma que abrigará 40 famílias de baixa renda, próximo ao centro de Porto Alegre, elas destacam que a luta por habitação tem o protagonismo das mulheres.
As duas são lideranças da cooperativa formada pelos moradores do Assentamento 20 de Novembro, que surgiu da organização das famílias ocupantes para a geração de renda. Neste 8 de março, Dia Internacional de Luta das Mulheres, elas recordam ao Bem Viver, programa do Brasil de Fato, a trajetória da luta por moradia do grupo.
A cooperativa conquistou o direito de dar função social ao prédio de quatro andares da União, abandonado havia cinco décadas. Foi construído para abrigar um hospital, mas a obra não chegou a ser concluída e a estrutura degradou-se. Após 18 anos de ocupação, a cooperativa será responsável até mesmo pela execução da obra, por meio do Programa Minha Casa Minha Vida Entidades.
Ceniriani Vargas da Silva, conhecida como Ni, é coordenadora estadual do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM). Ela está com o Assentamento 20 de Novembro desde o início, em 2006. Lembra que antes de ocuparem o local onde estão atualmente, passaram por, pelo menos, dois despejos, primeiro em um prédio no centro da capital gaúcha e depois em um terreno ao lado do estádio Beira Rio.
“Nós passamos por despejo, nós passamos por remoção da Copa do Mundo. Depois nós passamos por um golpe. Depois nós passamos por um governo genocida, por uma pandemia, e agora por uma enchente. Então são muitos processos, é um público que é de baixa renda, na sua maioria são mulheres, e mulheres muito guerreiras e muito persistentes, para conseguir chegar nesse momento do início da nossa obra finalmente”, comenta.
Contrato assinado
O contrato com a Caixa Econômica Federal foi assinado em outubro de 2024. As famílias deixaram o prédio ocupado para o início da reforma e vão pagar o financiamento depois da obra.
A expectativa agora é pela liberação do recurso. Esta é a primeira reforma do programa tocada pelos próprios moradores, o que traz muitos entraves burocráticos. Elis Regina de Vargas, da direção da Confederação Nacional das Associações de Moradores (Conam), conta que cada passo é uma conquista.
Assista:
“É por isso que essa emoção aflora assim, né? Cada parede, cada lugar aqui, cada lugar tem uma história. Aqui, mais do que casa, a gente tá construindo uma nova história. Tá construindo um projeto de país que entende a importância que tem para as pessoas tu ter o mínimo de dignidade, que é uma moradia digna”, analisa.
Projeto feminista
O projeto habitacional tem um olhar feminista. Foi elaborado por mulheres profissionais da empresa Arquitetura Humana em diálogo com as famílias, que sonhavam com uma moradia popular sustentável e voltada para o cuidado das pessoas. O prédio contará com energia solar, cisterna, horta comunitária, ciranda, biblioteca, pracinha e espaço cultural, além de uma sala de costura para geração de renda das mulheres.
“Essa questão do cuidado e da proteção, a geração de trabalho e renda também é importantíssima. Nós temos as costureiras da 20 [de Novembro], que trabalharam muito, que são muito boas e que continuam trabalhando. Desenvolvemos o bioabsorvente, que é um produto nosso que tá aí. A gente ensina Brasil inteiro a fazer, porque, para nós, o conhecimento não é só nosso”, conta Elis.
Ni complementa que a construção do projeto vem dentro de um contexto de muitas lutas. “A luta pro nosso povo trabalhador ter o acesso ao centro, que historicamente o povo foi tirado do centro”, explica.
“O projeto vem, na prática, demonstrar aquilo que a gente defende como política pública de habitação, e o que a gente defende por esse território. A gente olha para esse território e vê muitos vazios urbanos, vazios que poderiam servir de moradia para muita gente. Eles olham para esse território e eles enxergam possibilidade de lucro”, complementa.
Mulheres negras são maioria sem moradia digna
As lideranças destacam a relevância da política habitacional para as mulheres. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que o déficit habitacional no país atinge principalmente mães solo, que são 60%, e a maioria são mulheres negras que vivem abaixo da linha da pobreza.
Ni lembra também da relação de déficit habitacional com a violência doméstica. “A luta pela moradia acaba sendo uma luta das mulheres, né? Porque muitas, inclusive, encontram nas ocupações uma forma de fugir de uma situação de violência. Isso é uma realidade muito triste, a relação do déficit habitacional com a violência doméstica. Muitas mulheres têm como única saída pegar seus filhos e morar numa ocupação. E isso é uma realidade muito concreta para nós”.
Elis recorda da exclusão do povo negro e da correlação entre as lutas. “Habitação é uma pauta do movimento negro. Porque quem conhece a história sabe que quem não tem terra, quem nunca teve terra, quem não ganhou terra de ninguém foram os negros e negras nesse país.”
Militância ativa
Além da luta por moradia, Elis e Ni têm ampla atuação militante. E ancestralidade de resistência.
A diretora da Conam conta que é filha de uma empregada doméstica, mulher de matriz africana “que acolheu a vida toda”. Iniciou a atuação social ainda adolescente, em grupos de jovens da Igreja Católica, até perceber que aquele não era seu lugar, que o mundo pregado não era o da sua realidade.
“Comecei a ver a diferença da palavra e da ação. E aí nasce a revolta, porque isso tem que ser uma revolta, tu precisa te rebelar. É aí que nasce a militância e depois que nasce, aí não para mais”, afirma Elis.
Ela detalha suas outras lutas. “Eu estou presidente de uma entidade do movimento negro aqui no Rio Grande do Sul, que é chamada Unegro, a União de Negros e Negras pela Igualdade. Eu faço militância também no movimento feminista de mulheres negras. Hoje estou na coordenação da marcha nacional que vai acontecer em 25 de novembro, que é a Marcha das Mulheres Negras, que ocorre de 10 em 10 anos. E milito no movimento comunitário também.”
Ni conta que nasceu em uma ocupação. É filha de pai indígena Guarani com mãe pequena agricultora, que vieram do interior para a capital e construíram um barraco no Morro Santana. Iniciou sua militância ao lado da mãe, que até hoje é liderança comunitária. Quando jovem, quando participou de um grupo de multiplicadores de cidadania da Themis, organização feminista e antirracista.
“A partir dali me ampliou horizontes, até mesmo de compreender o nosso lugar no mundo, compreender as desigualdades sociais, que até então era uma luta muito comunitária, que eu acompanhava se ao lado da mãe”, recorda a coordenadora estadual do MNLM.
Ela também fala dos espaços onde atua. “Estou também na Coletiva Nacional das Mulheres pelo Direito à Cidade. Fui fundadora aqui da Cooperativa 20 de Novembro, sigo na coordenação dos nossos projetos aqui também. Faço parte do Conselho Municipal de Acesso à Terra, Habitação, enfim, já fui do Conselho Estadual de Juventude, do Conselho de Segurança Alimentar. A gente participa de tantas coisas, dá pra fazer uma lista.”
“Quando morar é um privilégio, ocupar é um direito”
Elas destacam o papel dos movimentos sociais de luta pela moradia na sociedade, na construção de um mundo diferente, em contraponto à exclusão que tomou conta das cidades nos últimos anos.
Ni lembra do lema do movimento de luta pela moradia. “A gente tem uma frase de luta que diz que ‘quando morar é um privilégio, ocupar é um direito’. Então a gente está numa cidade onde essa frase faz muito sentido, onde morar é um privilégio. E cada vez mais, com o fortalecimento da especulação imobiliária, que é a produção para um público muito diferente daquele que está ali, né, que é o grande público do déficit habitacional.”
Elis pontua que a conquista faz parte de uma transformação social. “Eu imagino que quando isso aqui tiver pronto, vai ser um momento da nossa vida de tanta realização, né? Porque não é só um CEP que a gente quer. A gente quer um outro mundo e esse lugar vai ser um pedacinho de um outro mundo.”
Quando o recurso para o início das obras for liberado, o prazo para a conclusão da reforma e reassentamento das 40 famílias é de dois anos.
E tem mais…
Bem Viver especial: luta das mulheres! Nesta edição o programa celebra ainda o aniversário de 100 anos da heroína da reforma agrária, Elizabeth Teixeira.
Vai um orgânico ai? Em Belém, a feira de agricultura familiar na Universidade Federal do Pará (UFPA) oferece alimentos de qualidade pra população.
Gema Soto traz uma receita deliciosa com seu tempero especial de “Vegetais com carne”.
E a Cozinha Popular Dona Nega dá um salve no programa direto da periferia de São Paulo.
Quando e onde assistir?
No YouTube do Brasil de Fato todo sábado às 13h, tem programa inédito. Basta clicar aqui.
Na TVT: sábado às 13h; com reprise domingo às 6h30 e terça-feira às 20h no canal 44.1 – sinal digital HD aberto na Grande São Paulo e canal 512 NET HD-ABC.
Na TV Brasil (EBC), sexta-feira às 6h30.
Na TVE Bahia: sábado às 12h30, com reprise quinta-feira às 7h30, no canal 30 (7.1 no aparelho) do sinal digital.
Na TVCom Maceió: sábado às 10h30, com reprise domingo às 10h, no canal 12 da NET.
Na TV Floripa: sábado às 13h30, reprises ao longo da programação, no canal 12 da NET.
Na TVU Recife: sábados às 12h30, com reprise terça-feira às 21h, no canal 40 UHF digital.
Na UnBTV: sextas-feiras às 10h30 e 16h30, em Brasília no Canal 15 da NET.
TV UFMA Maranhão: quinta-feira às 10h40, no canal aberto 16.1, Sky 316, TVN 16 e Claro 17.
Sintonize
No rádio, o programa Bem Viver vai ao ar de segunda a sexta-feira, das 11h às 12h, com reprise aos domingos, às 10h, na Rádio Brasil Atual. A sintonia é 98,9 FM na Grande São Paulo e 93,3 FM na Baixada Santista. Além de ser da transmissão pela Rádio Agência Brasil de Fato, segunda a sexta-feira, das 11h às 12h.
O programa conta também com uma versão especial, Conversa Bem Viver , transmitida pelas plataformas Spotify, Google Podcasts, iTunes, Pocket Casts e Deezer.