As primeiras semanas da administração Trump — marcadas pelo número e conteúdo das ordens executivas assinadas pelo presidente — podem ser descritas usando o título do filme Fast & Furious (Velozes e Furiosos), ao que podemos acrescentar, letal. No presente artigo, usando as ordens executivas, ressalto elementos do que caracterizo como uma administração ‘veloz, furiosa e letal’.
No que diz respeito às ordens executivas — que podem ser revertidas pelo próximo presidente — a aprovação do Congresso não é necessária, mas podem ser bloqueadas pelo Congresso e juízes. Para ilustrar, cito a ordem executiva que propõe acabar com a cidadania por nascimento — que visa imigrantes em situação irregular ou com status de permanência temporária nos Estados Unidos. A medida foi julgada inconstitucional e bloqueada por vários juízes por ir contra a 14ª Emenda da Constituição que garante que qualquer pessoa nascida no país tem direito à cidadania. A administração Trump está apelando e o caso pode chegar à Corte Suprema. Quanto ao Congresso é mais difícil vetar as ordens executivas pois, no momento, o partido Republicano, o partido de Trump, é a maioria no Congresso.
Governando usando caos, destruição e crueldade
Trump passou das promessas de campanha para a concretização dessas promessas, sobretudo via ordens executivas. No seu primeiro mandato (2017-2021), o presidente assinou 220 ordens executivas, mas no segundo, entre 20 de janeiro e 03 de março, já tinha assinado 81 ordens. Para as ordens executivas e outras ações, há as referências: Presidential Actions – The White House; Tracking Trump’s executive orders and actions | CNN Politics; Federal Register : Executive Orders.
Há o questionamento se algumas dessas ordens não poderiam ser um comunicado de imprensa, ou se são legais. Com relação ao primeiro ponto, talvez sim, mas não há dúvida que assinar uma ordem executiva chama mais atenção do que um comunicado de imprensa. Quanto à legalidade, várias ordens estão sendo contestadas, incluindo por organizações não-governamentais (ONGs).
O incontestável é que a avalanche de ordens executivas é parte de uma estratégia, também empregada na primeira administração Trump, chamada “flood the zone” (inundar a zona) — que visa “desestabilizar e diminuir a capacidade de resposta da oposição”. Mas, como destacado, “desta vez, a inundação é maior, mais ampla e mais brutalmente eficiente”. Recentemente, Steve Bannon, controverso aliado de Trump, falou sobre a atual administração e o uso dessa estratégia que ele definiu como “inundar a zona”, com “muzzle velocity” (velocidade de saída) — que é a velocidade de um projétil no momento que sai de uma arma. É importante destacar que essa estratégia também inclui a produção de desinformação.
Várias ordens executivas estão sendo vistas como uma grave ameaça aos direitos humanos. Como por exemplo, a que reconhece a existência de somente dois sexos (feminino e masculino) que tem o título “Defendendo as mulheres do extremismo da ideologia de gênero e restaurando a verdade biológica para o Governo Federal”; a que bane pessoas transgênero do serviço militar; e as três ordens executivas que acabam com iniciativas e programas em diversidade, equidade e inclusão (em inglês Diversity, Equity and Inclusion, conhecido pela sigla DEI) — Ending Radical And Wasteful Government DEI Programs And Preferencing – The White House; Restoring America’s Fighting Force – The White House; e Ending Illegal Discrimination And Restoring Merit-Based Opportunity – The White House. Tais ordens devem ser implementadas em todas as esferas do governo assim como também em projetos apoiados por recursos federais dentro e fora dos Estados Unidos. Está sendo noticiado que empresas privadas começaram a mudar suas políticas internas para ficarem de acordo com as ordens executivas.
O que essas ordens têm em comum é privar determinados segmentos da população de direitos, tendo a existência negada pela remoção de referência em publicações e sites oficias. É como se tais populações pudessem ser esquecidas ou como se nunca tivessem existido. Tal situação pode ser comparada com o que Herbert Daniel chamou de “morte civil”, conceito que criou para lutar contra o estigma e para afirmar e defender os direitos das pessoas vivendo com HIV e AIDS.
Algumas das ordens executivas — como as que visam a destruição de agências federais — têm, como consequência, a interrupção de serviços e programas dentro e fora dos Estados Unidos. O fechamento de agências que servem populações vulneráveis e promovem e garantem direitos estão gerando confusão, medo, e caos. Mas essas não são consequências indesejáveis ou que não foram previstas. Como indica o título do artigo, de Adam Serwer, comentando a primeira administração Trump: The Cruelty is the Point (A Crueldade é o Ponto). Ou, como descrito em artigo de Timothy Snyder, sobre a segunda administração Trump, a destruição (do governo) é o ponto. Ou, como destacado no comunicado de imprensa da Federação Americana de Funcionários do Governo (American Federation of Government Employees) — sindicato que representa cerca de 800.000 trabalhadores — “o caos é o ponto.”
A solidariedade como força política
Um artigo publicado no New York Times analisou mais de 8.000 páginas em vários sites do governo que foram retiradas do ar desde 31 de janeiro de 2025 para ficarem de acordo com as ordens executivas, sobretudo as que são contra diversidade, equidade e inclusão. O artigo descreve os expurgos que removeram informações sobre vacinas, cuidados com veteranos, crimes de ódio e pesquisas científicas, entre muitos outros tópicos.
Trump, com as ordens executivas e outras medidas, busca provar que, o que é visto como ‘inconveniente’, pode deixar de existir, ‘saindo do ar’. É como se, quando a informação é deletada, direitos são negados ou eliminados, palavras são removidas de textos, e pessoas são retiradas de suas posições a memória individual e coletiva fosse apagada, causando um estado de “amnesia coletiva” que, como resultado final, levam à “morte civil” das pessoas afetadas.
Para enfrentar o Trumpocalypse Now e para evitar a mistura de pânico e indignação que pode levar à inação e paralização — como muito bem colocou Judith Butler — devemos, parodiando o título do filme de Walter Salles, agir e afirmar que ‘ainda estamos aqui’.
Em um governo em que a crueldade, a destruição, o caos, a fúria e o sadismo parecem ser os principais objetivos do exercício do poder, e para contrapor o flood the zone com muzzle velocity que, como estratégia de governo, tem como resultado uma perda de humanidade em uma narrativa perversa que nega direitos ao ‘outro’, é bom lembrar, como dizia Herbert Daniel, “que a solidariedade é uma força política — a única capaz de transformar o mundo”.
* Jane Galvão Integra o Conselho de Curadores da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA).
Doutora em Saúde Coletiva, pelo Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro; com Pós-doutorado em Saúde Pública, Escola de Saúde Pública, Universidade da Califórnia, Berkeley; e mestre em Antropologia Social, pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.