Belo Horizonte se despediu, no último mês, de uma de suas figuras mais icônicas do universo LGBTQIA+. O cabeleireiro e artista Nero, nascido em São João del-Rei, deixou sua marca na capital mineira, ao desafiar as normas de gênero e abrir caminhos para as futuras gerações. Com sua presença andrógina e irreverente, ele se tornou referência tanto na vida noturna quanto na cena cultural da cidade.
“Eu vim para confundir”: a estonteante figura de Nero
Ao chegar em Belo Horizonte na segunda metade dos anos 1960, Nero já era uma figura singular. Com uma beleza andrógina e uma atitude desafiadora para os padrões da época, ele não demorou a chamar atenção.
“Ele embaralhava a mente das pessoas. Sempre dizia: ‘Eu vim para confundir'”, contou, em entrevista ao Brasil de Fato MG, o pesquisador Luiz Morando, estudioso da memória LGBTQIA+ da cidade.
Mesmo diante da repressão social e policial, Nero se manteve fiel a si mesmo. Sofreu violências por sua expressão de gênero e foi alvo constante da “polícia de costumes”, que tentava corrigir e reprimir sua identidade.
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“Ele foi abordado diversas vezes por usar roupas consideradas inadequadas para um homem. Na época, a carteira de trabalho valia mais que a identidade para evitar ser enquadrado como ‘pessoa vadia’ [alguém sem ocupação formal de trabalho] e levado para a delegacia”, explica Luiz Morando.
O salão na Galeria do Ouvidor: um marco na cidade
Em 1969, aos 22 anos, Nero abriu seu próprio salão de cabeleireiro na Galeria do Ouvidor, no centro da cidade. O espaço se tornou histórico por ser o primeiro salão unissex de Belo Horizonte, atendendo homens e mulheres sem distinção de horário. “A clientela formava longas filas no corredor da galeria, tanto para cortar cabelo quanto para ver Nero em ação”, relata o pesquisador.
O salão permaneceu ativo por décadas, resistindo às mudanças do tempo e consolidando Nero como um nome respeitado na cidade. Mesmo internado no fim de dezembro do ano passado, sua presença ainda era sentida no local.
A arte e a noite LGBTQIA+
Nero também brilhou nos palcos das casas noturnas de Belo Horizonte. Criou shows, se apresentou em clubes LGBTQIA+ e até para públicos heterossexuais nas décadas de 1970 e 1980. Sua fama o levou a participar de diversos concursos de Miss Gay e Miss Travesti, integrando bancas de jurados entre as décadas de 1970 e 1990.
“A beleza de Nero era considerada exótica e extraordinária. Se ele entrasse em um concurso, já seria visto como favorito absoluto”, destaca Luiz Morando.
O cabeleireiro-artista não apenas ocupou espaços, mas os transformou, ajudando a legitimar a presença LGBTQIA+ na sociedade mineira. Em reconhecimento à sua importância, Nero recebeu, em 2007, o título de Cidadão Honorário de Belo Horizonte pela Câmara de Vereadores. Uma honraria justa para quem abriu caminhos para tantas outras pessoas.
Conservadorismo e a efervescência cultural
A cidade que Nero encontrou ao se estabelecer em 1968 passava por intensas transformações. Apesar da fama de ser uma capital conservadora e provinciana, Belo Horizonte vivia um momento de efervescência cultural. O teatro, a literatura e as artes plásticas cresciam, e a inauguração do Edifício Maletta, em 1961, trouxe um novo dinamismo à vida noturna.
“O Maletta passou a concentrar bares, restaurantes e boates, tornando-se um polo de diversão e sociabilidade. Mas também era um espaço de perigo para pessoas dissidentes de gênero. Grupos de rapazes formavam ‘corredores poloneses’ para agredir gays e travestis que passavam por ali”, conta Luiz Morando.
Mesmo nesse contexto de repressão, figuras como Nero ajudaram a consolidar uma cena LGBTQIA+ mais visível e atuante. Sua trajetória reflete não apenas sua própria força, mas também a resistência e a luta por espaço de toda uma comunidade, segundo Luiz Morando.
“Ele tem toda essa trajetória de história que o coloca num lugar muito além dos outros daquele período, e que o torna uma espécie de referência, de exemplo, de modelo para nós aqui na atualidade”, reafirma o pesquisador.