Mais um Carnaval passou. E a festa desse não podia ser menos polêmica. Cada vez mais a realidade da capital gaúcha nos aponta um abismo entre as pessoas que convivem nesse mesmo território. Eu já fui uma pessoa mais apaixonada por Porto Alegre. Mais esperançosa nos dias, mais desfrutadora das oportunidades e das coisas boas que essa cidade oferece. Mas a gente percebe a olhos vistos que esse porto não é mais tão alegre quanto costumava ser.
Lembro que em meio à grande enchente de 2024, quando me abriguei na casa de uma amiga, de onde podia ver o Centro Histórico da cidade e ali, memórias do último evento de rua que celebramos, pulavam na minha memória como foliões de fanfarras. Na época escrevi um texto movida, principalmente por essa falta. A de desfrutar as ruas em pura alegria e festejo.
Um pouco antes do Carnaval, naquele ritmo em que as pessoas se apressam para fazer tudo antecipadamente, porque vão querer curtir os seus poucos dias de folga, e ainda estão pensando que o ano não começa de verdade se não for depois do Carnaval. Justamente nesse ano, senti que aquele ‘clima de renovação’ faltou no final de dezembro se acumulou todo para ser finalmente desfrutado agora nos dias da folia de momo.

Porto Alegre já teve seus áureos tempos de folia, especialmente na região da Cidade Baixa. Aqui, a famosa CB é berço da cultura do samba, da cultura negra. Porto Alegre tinha até um príncipe negro que morava na Travessa Venezianos, procure saber! Esse príncipe era, inclusive, muito procurado pela elite da cidade para atendê-los com seu jogo de búzios e orientações espirituais. A Cidade Baixa sempre foi um território popular. Um território boêmio, de alegria na rua, de festa, de candombe, de mil e duas manifestações culturais. E ainda hoje é um dos territórios onde se encontra uma maior concentração de diversidade, muito diferente dos outros bairros de Porto Alegre. Porém, o que pretende a atual gestão da Prefeitura de Porto Alegre vem na contramão da história e do potencial desse lugar.
Durante os festejos de Carnaval, nosso prefeito estava lá, na Holanda. Lá, se deslumbrou em como são maravilhosas as famosas cidades esponjas – enquanto aqui em Porto Alegre ele desmata e cimenta a orla do Guaíba inteira. Se mostrou abismado com a mobilidade urbana, enquanto aqui não presta o menor incentivo para o uso, por exemplo, de bicicletas no transporte da cidade. As ciclovias de Porto Alegre seguem em seu eterno péssimo estado e além disso, não existe nenhum apoio à cultura da bicicleta. Já imaginou que legal seria se cada pessoa que fosse de bicicleta para um show recebesse um desconto no valor do ingresso? Já pensou que interessante seria se cada espaço cultural que oferecesse um bicicletário tivesse desconto nos impostos?
Mas, não… o prefeito Melo e o governador Eduardo Leite querem mesmo uma cidade na contramão. Leite foi curtir a Sapucaí no Rio de Janeiro e em entrevista não ousou citar Porto Alegre como uma cidade que tem Carnaval. Ele aprecia a festa e a cultura, mas não a cultura local. Ele é, como eu gosto de dizer, um gay “palatável”: um homossexual dentro de um padrão estético, branco, cis. Discreto, ele “não dá pinta” e sendo assim é tolerado e engolido por uma classe média branca que entende que “não é de bom tom” ser homofóbico com o governador. Ele é altamente passável, tolerável, perdoável.
Assim como é o rapaz que tentou se formar na UFRGS com uma suástica desenhada no rosto. Até agora eu não entendo, de fato, como foi que ele obteve o diploma, uma vez que cometeu um crime momentos antes de subir ao palco. Sim, ele cometeu um crime, dentro de uma instituição federal. Um homem adulto, com ensino superior, ou seja, que não pode ser interpretado como “burro”– voluntariamente desenhou um símbolo nazista no rosto e recebeu ainda o benefício da dúvida. Grande parte da população tem o costume de “passar a mão na cabeça” dos homens, e redimí-los facilmente dos erros, sob o pretexto de “Ah, mas ele não teve a intenção”.
Não mesmo? Com que intenção as pessoas se pintam e põem símbolos nos rostos, se não a de se vincular com um código específico de valores?
Chocante, também é perceber que uma manifestação criminosa dentro de um auditório de uma universidade pública federal, foi menos reprimida do que as manifestações de alegria que tentaram acontecer na cidade de baixo durante o Carnaval. A intenção das pessoas era se pintar e brincar na rua, celebrar, festejar. E essas manifestações foram violentamente reprimidas pela Brigada Militar, que na mão do Governo do Estado e da Prefeitura de Porto Alegre são apenas mais um fantoche. Às vésperas do Carnaval, denúncias foram feitas acerca de beneficiamento de alguns bares e algumas regiões da cidade e essas denúncias trazem novamente a ótica de gestão racista e higienista que a gente vive por aqui.
A Cidade Baixa hoje é vista como alvo de interesse das grandes construtoras, as maiores financiadoras das campanhas do Melo, e o objetivo como sempre foi transformar o histórico bairro boêmio num bairro resideFoto: Giulian Serafim/PMPAncial, reprimindo qualquer manifestação de alegria e de festa que possa acontecer nas ruas. Mais uma vez, a desculpa da Prefeitura foi que não haveria efetivo da BM para garantir a segurança da população, porém durante todos os dias de Carnaval essa mesma BM esteve em peso na Cidade Baixa.
E eu pergunto: quem oferece mais risco à sociedade? uma alcoolizada em um final de festa ou um jovem neonazista e misândrico? Porém, as mesmíssimas pessoas que acham que o nazistinha da UFRGS não teve a intenção de causar, são as pessoas que defendem que o Carnaval não precisa existir. Já notaram?
Disseram algumas pensadoras: o fascismo, ele se alimenta de corpos tristes. Assim, o maior inimigo do fascismo é a liberdade, a alegria e a possibilidade de ser quem se é. E o Carnaval é exatamente isso: quando os corpos tomam as ruas numa ânsia de liberdade, quando a gente veste a nossa fantasia e sonha que Porto Alegre é uma cidade bonita feliz, leve. E as mesmas pessoas que acreditam que não precisa ter Carnaval são as pessoas que defendem o fascismo dentro de uma instituição, são as pessoas que silenciam atitudes fascistas porque não suportam o peso da liberdade alheia.
No fim de tudo, Porto Alegre agoniza entre suásticas e purpurinas. As mesmas pessoas, uma multidão insatisfeita, que acha mais fácil de engolir um neonazista do que corpos com pele à mostra. E o mais triste de tudo isso é a gente ainda precisar defender o Carnaval sob uma ótica capitalista, lembrando as pessoas que, bom, se você não concorda com a festa, pelo menos concorde com movimentar a economia. Pelo menos tolere que os comerciantes da Cidade Baixa precisam gerar renda depois da enchente, quando foram abandonados pelo poder público, pela gestão municipal. Pelo menos aceite, o povo quer celebrar, apesar de toda a dor.
Enquanto o Brasil inteiro se mobiliza pelo direito de ocupar as ruas e sorrir, Porto Alegre se fantasia de filme de terror. Mas, para o alento de quem acredita que “nós vamos sorrir, sim”, ainda há uma alegria, resistente com glitter, brilhando em frente aos horrores da ditadura.
