Organizações da sociedade civil que reúnem países da América Latina, África e Ásia voltaram a reivindicar a suspensão das autorizações do plantio e comercialização do trigo HB4 na Argentina, Brasil e Paraguai. E de importação na África do Sul, Colômbia, Nigéria, Nova Zelândia, Indonésia e China. Desenvolvida e negociada pela companhia argentina Bioceres, a semente promete resistir aos períodos secos do ano e às chamadas plantas invasoras, cada vez mais resistentes a agrotóxicos. Essa segunda característica se deve a uma modificação genética que permite ao trigo resistir a altas doses do herbicida glufosinato de amônio. Segundo as entidades, há estudos que mostram que essa substância chega a ser 15 vezes mais tóxica que o glifosato.
E aí é que está a grande preocupação. As plantas acumulam resíduos dos agrotóxicos nelas aplicados ao longo do cultivo. E em doses tão significativas que vão bem além das permitidas pela legislação, como mostraram diversas pesquisas de órgãos de saúde em amostras de hortaliças, frutas e outros alimentos. No caso do trigo transgênico, além de outros agroquímicos que serão utilizados, haverá concentração do glufosinato de amônio. Classificado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como potencialmente cancerígeno, o agrotóxico é associado ainda por diversos estudos científicos como causador de alterações genéticas, danos ao fígado e desregulação endócrina.

De acordo com a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia, um desregulador endócrino pode exercer vários efeitos nocivos, alterando os hormônios e suas funções. Isso é muito grave porque o funcionamento adequado do organismo, portanto, a saúde, depende de ação hormonal. E o mais perverso é que essa desregulação afeta principalmente fetos, crianças com até dois anos e adolescentes, por estarem em fase de desenvolvimento, com grande multiplicação celular. Não é por acaso que em 2009 o glufosinato foi banido na União Europeia.
Para piorar, o trigo transgênico se propõe a dominar a produção de um cereal que compõe a principal fonte de carboidratos, base da alimentação mundial. Ou seja, o pão de cada dia, seja do tipo que for. Além do café da manhã, está em muitas refeições diárias, como suporte para sanduíches e outros pratos. Tem ainda o macarrão, a pizza, bolos, biscoitos, doces e uma infinidade de subprodutos.
“Apesar da importância do trigo na alimentação humana, não existe um método público validado para detectar, identificar e quantificar a presença de trigo HB4 em farinhas e outros produtos de trigo”, alertam as entidades em comunicado divulgado nesta quarta-feira (5), na qual reivindicam a suspensão das autorizações já concedidas.
No documento, elas destacam também as circunstâncias nada democráticas em que o cultivo e a venda foram liberados. No caso Brasil, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) encerrou o processo em março de 2023. Foram ignorados alertas de cientistas, órgãos de saúde, meio ambiente e defesa dos direitos humanos e do consumidor. A opinião pública tampouco foi levada em consideração. E como tornou-se praxe no órgão criado justamente para assessorar o governo federal quanto à biossegurança, houve dispensa de pesquisas. Foram considerados suficientes os dados incompletos apresentados pela empresa interessada na aprovação.
“Pedimos que todas as licenças para o plantio e comercialização do trigo HB4 sejam suspensas e que um processo de reparo abrangente seja iniciado nos espaços já intervencionados”, destacam as organizações. Em junho de 2022 a Embrapa já havia anunciado a criação de campos de testes em Brasília.
O trigo HB4 já é vendido na Argentina desde maio de 2024, segundo anunciou na época a Bioceres. E os negócios avançam nos Estados Unidos. Nesta quinta-feira (6) a companhia anunciou ter obtido a primeira das quatro patentes solicitadas ao órgão oficial local. Já há também autorização do Departamento de Agricultura (USDA) e do Departamento de Administração de Alimentos e Medicamentos (FDA). O país é o quarto maior produtor mundial do cereal.
No entanto, nem só de notícia boa vive a Bioceres. No início de fevereiro, a própria companhia divulgou queda de 24% na sua receita, o que levantou fortes suspeitas de que a nova tecnologia tenha tudo a ver com isso. Embora a empresa não tenha explicado as causas do tombo financeiro, há desconfiança de fracasso comercial do novo trigo. Ou seja, não estaria oferecendo a resistência ou tolerância à seca prometida na propaganda.
“De acordo com dados oficiais, o trigo HB4 rende muito menos do que os trigos convencionais (não transgênicos), mesmo em anos de seca. Na média anual de dados de 2021, os trigos HB4 renderam 17% menos do que os trigos convencionais. Nos anos seguintes, nem o Estado nem a empresa publicaram dados de produção nas diferentes regiões. Talvez seja porque o fracasso produtivo da tecnologia foi confirmado, e a queda nas vendas e receitas da Bioceres fez com que a empresa saísse da venda de sementes”, acreditam as entidades.
Seja como for, ainda segundo essas organizações (veja lista no final da reportagem), o lançamento e posterior aprovação do trigo HB4 levantou expectativas entre os produtores. Apesar da falta de dados oficiais sobre o cultivo de trigo transgênico no Paraguai, circula por lá a informação sobre a adaptação de variedades em diversas regiões do país por corporações do agronegócio. Além disso, o uso de glufosinato de amônio aumentou substancialmente no país.
“Acreditamos que, diante do grande fracasso da tecnologia HB4, para a qual a empresa Bioceres está arrastando agricultores, é hora de enterrá-la definitivamente”, pedem as organizações.
Para o engenheiro agrônomo Leonardo Melgarejo, integrante do Movimento da Ciência Cidadã, que subscreve o comunicado, o trigo transgênico é “mais uma das promessas de uma tecnologia enganosa, patrocinada por interesses opostos às necessidades da população”. “Diante das promessas de redução no uso de agrotóxicos, de geração de plantas mais nutritivas, de benefícios aos pequenos agricultores e aos consumidores, nada mais coerente do que um trigo tolerante à seca, mas que não é tolerante a seca”, disse à reportagem.
Melgarejo foi além: “Penso que as evidências concretas de inconsistência entre os discursos dos técnicos interessados, as propagandas da mídia corporativa e a realidade observada nas lavouras expliquem os pedidos, e as aprovações, de dispensa de monitoramento pós liberação comercial destas tecnologias pela CTNBio”.
Em fevereiro de 2024, essas mesmas entidades enviaram petição aos Relatores Especiais sobre Direitos Humanos da ONU. O objetivo foi alertar para a gravidade do risco a que estão expostas as populações desses países e pedir providências. Isso porque o plantio e a comercialização violarão vários direitos humanos, como o direito à vida e aos estilos de vida, à saúde, à alimentação adequada e à soberania alimentar. E também a um meio ambiente equilibrado e livre de poluição, entre outros. Entretanto, ainda não houve resposta alguma das Nações Unidas.
Confira as solicitações aos Relatores Especiais da ONU:
- Inste os governos da Argentina, Brasil e Paraguai a suspender/revogar todas as autorizações para o cultivo comercial do trigo transgênico HB4
- Recomende ao governo do Paraguai que revogue a Resolução 556/2023 – por meio da qual o trigo transgênico HB4 foi aprovado – e que reforme a estrutura regulatória para organismos geneticamente modificados (OGMs), por meio de um processo aberto, transparente e participativo, com ênfase especial na necessidade de proteger os direitos dos povos indígenas e das comunidades camponesas
- Recomende que o governo da Argentina revogue a Resolução 27/2022, que se baseia apenas em informações documentais da Bioceres, a empresa que desenvolveu a variedade de trigo transgênico, e institua uma proibição adequada do cultivo de trigo transgênico no país
- Recomende que o Conselho Nacional de Biossegurança do Brasil proíba o cultivo comercial de trigo transgênico e suspenda a decisão da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), que permite a importação de grãos e farinha de trigo transgênico para o país, e promova uma revisão da legislação de biossegurança por meio de um processo participativo aberto, transparente e democrático
- Recomende que os governos da Colômbia, África do Sul, Nigéria e Indonésia instruam suas autoridades de biossegurança a revisar as aprovações de importação de trigo GM e iniciar uma moratória em todas as aprovações (autorização de produto, importação e liberação ambiental) de culturas Geneticamente Modificadas.
Confira as entidades que assinam o documento:
Associação Nacional para a Promoção da Agricultura Biológica
Instituto de Salud Socioambiental (InSSA)

Artigo original publicado em Blog do Pedlovski.