Ambulantes que trabalham na Rodoviária do Plano Piloto, em Brasília, vivem clima de incerteza após a administração do local ter sido concedida a uma empresa privada. Segundo relatos, houve intensificação nas ações de fiscalização e de recolhimento das mercadorias. Na tarde anterior ao ato oficial de entrega da gestão ao Consórcio Catedral, que administrará o local nos próximos 20 anos, policias militares utilizaram spray de pimenta contra ambulantes durante uma operação do DF Legal.
Segundo a Secretaria de Transporte e Mobilidade do Distrito Federal (Semob-DF), a proposta é que os ambulantes que trabalham na rodoviária sejam formalizados, para que continuem exercendo suas atividades. De acordo com uma ambulante que trabalha no terminal há mais de 8 anos e preferiu não se identificar, cerca de 250 trabalhadores já entregaram os documentos requisitados para a formalização, mas o processo de entrega dos crachás ainda não foi concluído.
“Tudo que nós queremos é trabalhar. Porque da forma que está, a gente se sente amedrontado. Eles [os auditores] estão chegando 4h30 da manhã e se a gente não correr, não sair imediatamente, eles realmente tomam as mercadorias”, relata a fonte.
Os ambulantes formalizados poderão trabalhar na plataforma superior da rodoviária. Segundo a Semob, os trabalhadores que não conseguirem a formalização para continuar no local serão “alocados para outros espaços”.
Um dos pontos apontados como justificativa para tirar os ambulantes da parte inferior da Rodoviária, que também é uma reclamação de parte da população que transita pelo terminal, é a dificuldade de caminhar pelo espaço, já que as mercadorias ficam espalhadas pelo chão.
A trabalhadora ouvida pelo Brasil de Fato DF concorda que isso pode ser um transtorno para quem anda pelo local, mas que poderia ser resolvido com a organização do espaço. “A culpa é do governo que não faz nem questão de nos realocar em algum lugar de fluxo, que seja ali pela rodoviária ou nos arredores da rodoviária. Porque se colocarem a gente para longe, aonde não tenha fluxo, ninguém vai”, defende.
Cerca de 600 mil pessoas passam diariamente pela Rodoviária do Plano Piloto, o que torna o local tão atrativo para o comércio. “Camelô vende de manhã para poder comer à noite. Então a gente não pode ficar um dia sem trabalhar. E a cada dia que passa a fiscalização é maior”, destaca a fonte, que afirma que os ambulantes já estão há mais de 15 dias sem conseguir trabalhar, desde que a transferência da gestão foi iniciada.
Após o episódio de repressão truculenta aos ambulantes da rodoviária, que aconteceu no dia 21 de fevereiro, o deputado distrital Fábio Felix (Psol-DF) exigiu do Governo do Distrito Federal (GDF) alternativas viáveis para os trabalhadores.
“Os ambulantes estão sendo retirados sem nenhuma alternativa da Rodoviária do Plano Piloto. Esses ambulantes saem de casa pra pagar as contas, pra trabalhar, pra vender roupa, pra vender fruta, pra vender bebida. Estão há décadas na rodoviária, que é onde tem gente pra eles trabalharem”, afirmou o parlamentar em sessão na Câmara Legislativa do DF (CLDF).
O distrital também destacou o alto índice de desemprego do DF, que é o dobro da nacional. Segundo dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), em dezembro de 2024, a taxa de desemprego no DF foi de 14,6%, enquanto a nacional ficou em 6,2%.
“A realidade do DF é uma tragédia. E esses ambulantes precisam trabalhar”, avaliou Felix. “Nós não podemos abandonar os trabalhadores que trabalham na rodoviária há décadas. É um absurdo, é abusivo, é um horror o que estão fazendo com esse povo”, concluiu.
O parlamentar também compartilhou, em uma rede social, o vídeo da ação de fiscalização realizada por auditores do DF Legal e por agentes da Polícia Militar do DF (PMDF) no dia 21 de fevereiro. Nas imagens, é possível ver policias utilizando spray de pimenta contra as pessoas.
O que muda com a privatização?
A concessão da gestão da Rodoviária do Plano Piloto ao Consórcio Catedral foi oficializada pelo governador Ibaneis Rocha (MDB) na madrugada do dia 22 de fevereiro deste ano, com a assinatura da Ordem de Início da transferência, que deve ser finalizada em até 90 dias, período em que gestão permanece compartilhada entre a Semob e as empresas.
O Consórcio, formado pela RZK Concessões e pela Atlântica Construções, Comércio e Serviços Ltda, administrará o espaço pelos próximos 20 anos. De acordo com o contrato, as empresas têm um prazo de seis anos para executar investimentos em obras de modernização do terminal e de recuperação estrutural, implantação de um centro de controle operacional, além da prestação de serviços de limpeza, segurança e manutenção. A previsão é que as empresas invistam R$ 120 milhões no local.
Em contrapartida, o consórcio pode cobrar por publicidades na rodoviária e pelo aluguel de lojas. As empresas de ônibus terão que pagar uma “taxa de acostamento”. Para cada parada do ônibus no terminal, é cobrada das empresas uma taxa de R$ 2 a R$ 14.
“E quem vai pagar essa conta? Com certeza, a população, com passagens mais caras, estacionamentos pagos e o aumento no preço do pastel e do cafezinho”, avalia o deputado distrital Gabriel Magno (PT-DF).
O governador Ibaneis Rocha afirmou que não haverá reajuste nas passagens até 2026, quando termina seu mandato.
A área concedida ao consórcio abrange todo o complexo rodoviário. Também estão incluídos os estacionamentos superiores e inferiores próximos ao Conjunto Nacional e ao Conic, no Setor de Diversões, que passarão a ser pagos.
Críticas
A privatização da rodoviária foi criticada por parlamentares da oposição, que apontaram o tempo recorde de tramitação do projeto de lei como indício de falta de transparência e de participação popular no processo decisório, e especialistas.
Luiz Eduardo Sarmento, presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-DF), aponta que uma privatização como essa pode trazer diversos impactos, como prejudicar o espaço mais popular, democrático e vivo do centro da metrópole da capital do país.
“A privatização pode impactar profundamente a vida dessa população, pois, uma vez privatizado, o espaço passa a ser regido por interesses comerciais, e não mais por outros valores, como o social ou o histórico do imóvel. O que prevalece é o lucro que o metro quadrado pode gerar para o concessionário”, ressalta o especialista.
Para Pedro Burity, membro do Movimento Passe Livre, com a privatização, a rodoviária vai se tornar cada vez mais comercial. “Tradicionalmente, a Rodoviária do Plano Piloto é um lugar vivo, com muito história, é um ponto de encontro entre as pessoas. Muita coisa acontece lá”, diz Pedro.
“Vai ser mais difícil a população conseguir acessar a própria rodoviária, mesmo sendo ali o coração de Brasília, onde passam milhões de pessoas diariamente. Vai ficar mais difícil para a população acessar os espaços. A privatização vai trazer taxas aos lojistas, e aos próprios ônibus. Vai ficar um lugar mais caro e mais inacessível”, destaca.
O que diz a Semob?
Procurada pelo Brasil de Fato DF, a Semob, que ainda é co-responsável pela administração da rodoviária enquanto o processo de transferência não é concluído, falou a respeito do futuro dos ambulantes no local.
“A Secretaria de Transporte e Mobilidade (Semob) esclarece que os trabalhadores que não conseguirem formalização para continuar no local serão alocados para outros espaços. A pasta acrescenta que a unidade de atendimento móvel do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae-DF) está desde o dia 18 de fevereiro estacionada na plataforma superior da Rodoviária do Plano Piloto para oferecer gratuitamente orientações e serviços aos micro e pequenos empreendedores e, principalmente, aos comerciantes ainda informais que atuam no espaço”, detalhou em nota.
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