Apesar de não ser mais amplamente discutida na mídia, a Aids/HIV continua sendo uma epidemia persistente e multifacetada, com impactos ainda profundos, especialmente no Rio Grande do Sul.
Este ano, o assunto voltou ao centro das atenções devido à decisão do presidente norte-americano Donald Trump de suspender a ajuda financeira dos Estados Unidos a programas internacionais de combate ao HIV/Aids, através do Plano de Emergência do Presidente dos Estados Unidos para Aids (PEPFAR). A medida gerou preocupações globais, especialmente nos países que dependem dessa ajuda para sustentar seus programas de tratamento e prevenção. No Brasil, a Secretaria Estadual de Saúde (SES) do Rio Grande do Sul manteve os programas de tratamento e prevenção ativos, mas o cenário epidemiológico no estado continua desafiador.

O Rio Grande do Sul é há mais de 15 anos um estado com um cenário epidemiológico complexo, especialmente na Região Metropolitana de Porto Alegre, onde, conforme o estudo Atitude, realizado em junho de 2023, a prevalência de HIV é alarmante: 1,64%.
“Temos dificuldades em modificar de forma contundente essa realidade”, afirma Carla Almeida, presidenta do Gapa/RS e conselheira do Fórum Ongs Aids do RS. A Região Metropolitana de Porto Alegre, além de registrar uma das maiores taxas de HIV, também apresenta índices elevados de mortalidade, com a capital gaúcha destacando-se negativamente, com um coeficiente de mortalidade quatro vezes superior à média nacional e uma taxa de HIV entre gestantes cinco vezes maior que a média do Brasil.
As consequências disso são evidentes: Porto Alegre, Canoas e Alvorada estão entre os cinco municípios do Brasil com os contextos epidemiológicos mais complexos, com elevados números de novas infecções e mortes por Aids. “Estamos enfrentando uma epidemia generalizada, com tendência à interiorização, com prevalências altas nos vales e no Sul do estado”, explica Carla.
Quatro décadas de epidemia: transformações e novos desafios
Desde o início da epidemia no Brasil, nos anos 1980, a Aids se modificou e se espalhou, ganhando novas formas de aquisição do HIV. Para o infectologista Dimas Kleimann, a epidemia de Aids se tornou mais multifacetada ao longo do tempo. “A primeira grande transformação foi a implementação dos antirretrovirais de alta potência, que diminuíram consideravelmente a mortalidade por Aids”, afirma. Hoje, as pessoas vivendo com HIV podem ter uma expectativa de vida semelhante à da população em geral, o que levou a um relaxamento nos cuidados e estratégias de prevenção.
Recentemente, com a implementação da Profilaxia Pré-Exposição (PrEP), um medicamento preventivo contra o HIV, houve uma diminuição no uso de preservativos, o que também contribuiu para mudanças nos padrões de transmissão. Para Kleimann, o cenário atual da epidemia é muito mais complexo. “Hoje, temos grupos mais vulneráveis, como mulheres cis brancas, mas as mulheres trans são ainda mais afetadas. Não é mais possível apontar um único fator como responsável pela disseminação do HIV. As mudanças vão continuar acontecendo com o tempo.”
O Rio Grande do Sul em números
Entre 2013 e 2024, o Rio Grande do Sul registrou 39.686 casos de infecção pelo HIV, representando quase metade dos casos da região Sul do Brasil. O aumento de casos, que começou a ser observado até 2015, foi seguido por uma queda de 32,65% em 2020. No entanto, os dados mostram uma leve recuperação, com um aumento de 10% nos casos em 2021. Nos últimos cinco anos, o estado teve uma média de 2.633 novos casos anuais.
Em 2023, a taxa de detecção de Aids no Rio Grande do Sul foi de 24,4 casos por 100 mil habitantes, uma redução de 43,5% em relação a 2013, quando a taxa era de 43,2 casos. Apesar da queda, o estado subiu uma posição no ranking nacional, ocupando o 5º lugar. “O Rio Grande do Sul ainda está entre os estados com as maiores taxas de Aids no Brasil, o que reflete um cenário de grande vulnerabilidade”, alerta a Secretaria Estadual de Saúde (SES).
Além disso, o Rio Grande do Sul também apresenta taxas de mortalidade por Aids superiores à média nacional. Em 2023, o estado teve um coeficiente de mortalidade de 6,3 óbitos por 100.000 habitantes, ficando na 4ª posição no ranking nacional. Contudo, houve uma redução de 13,7% em relação a 2022, quando o coeficiente era de 7,3.

Efeito Trump: impactos e consequências
O impacto da decisão de Donald Trump de suspender a ajuda internacional destinada ao combate ao HIV pode afetar diretamente o Brasil, que historicamente se beneficia de recursos do PEPFAR. “O Brasil foi o primeiro país a oferecer tratamento antirretroviral gratuito e universal”, destaca a SES, que enfatiza o papel do Sistema Único de Saúde (SUS) na manutenção da resposta ao HIV. No entanto, com o corte de recursos, alguns serviços, como o projeto “A Hora é Agora” em Porto Alegre, foram afetados. “Os usuários desse projeto foram remanejados para outros serviços de referência, mas sem a mesma capacidade de atendimento”, explica a secretaria.
Carla Almeida, do Gapa/RS, também aponta a gravidade do corte de recursos. “Os serviços de referência, como o que existia nos bairros Navegantes e Comerciários, foram fechados. O município de Porto Alegre tem tentado reorganizar esses atendimentos, mas ainda há muitas incertezas sobre como esse processo ocorrerá”, afirma Carla. Ela também levanta preocupações sobre os impactos dessas mudanças na agenda de direitos humanos, que abrange questões de direitos sexuais e reprodutivos, identidade de gênero e a luta contra o estigma e a discriminação.
O que o futuro reserva: estratégias para o combate ao HIV
Dr. Dimas Kliemann destaca que, para combater o HIV de forma mais eficaz, é preciso uma mudança na abordagem dos serviços de saúde. “É necessário incluir o exame de HIV em consultas de rotina, como check-ups, tanto para jovens quanto para adultos. O diagnóstico precoce é fundamental”, defende. Ele também sugere que mais estratégias de prevenção, como o uso de preservativos e a PrEP, sejam implementadas de forma mais ampla. “Ainda temos muitas pessoas que não sabem que vivem com o HIV, e é fundamental que elas façam o teste, pelo menos uma vez na vida, e mais frequentemente, se tiverem relações desprotegidas.”
A SES, por meio do programa Previne RS, continua investindo em ações de prevenção e cuidados, com foco na redução de mortalidade e eliminação da transmissão vertical do HIV.
“O programa inclui a habilitação de Centros Regionalizados de Atenção Integral e Prevenção às Infecções Sexualmente Transmissíveis, HIV/Aids e Coinfecções”, destaca a SES. Mas, para Carla Almeida, a rede de serviços de saúde está sendo progressivamente desmontada. “Os serviços públicos de referência estão em estruturas precárias e há uma falta de profissionais de saúde qualificados. A situação é ainda mais grave quando se trata da atenção primária, que enfrenta um histórico de subfinanciamento e terceirização dos serviços”, critica.
A luta contra o HIV no Rio Grande do Sul
Para Carla, a epidemia de HIV/Aids no Rio Grande do Sul continua a representar um desafio significativo, com altas taxas de infecção e mortalidade, principalmente na Região Metropolitana de Porto Alegre. “A luta contra o HIV requer uma abordagem integrada e intersetorial, com um forte foco na prevenção, diagnóstico precoce e manutenção de políticas públicas consistentes, como o SUS. No entanto, a redução de recursos internacionais e a precarização dos serviços locais podem prejudicar os avanços conquistados nas últimas décadas. O futuro da resposta ao HIV no estado depende de uma renovação do compromisso com a saúde pública e a garantia dos direitos humanos.”
