As cidades brasileiras têm sido um terreno fértil para a atuação de parlamentares que querem restringir o acesso ao aborto legal. Ainda que seja uma pauta de competência federativa, vereadores de extrema direita se articulam, usam seus mandatos e gastam dinheiro público para produzir e replicar projetos de lei inconstitucionais sobre direitos reprodutivos.
Foram apresentados 103 projetos de lei sobre os temas aborto ou nascituro em Câmaras Municipais das capitais, entre 2017 e 2024, período que corresponde às últimas duas legislaturas. O levantamento foi feito pela reportagem nas câmaras municipais das capitais do Brasil em janeiro deste ano (veja mais sobre a metodologia abaixo).

A campeã é a cidade do Rio de Janeiro, com 15 propostas apresentadas em 8 anos, seguida por Fortaleza, com 13 projetos, e São Paulo, com 11. A capital paulista é a única dentre elas onde o número de matérias que buscam garantir o direito ao aborto legal (oito) – supera as que querem restringir o direito (três).
O ano de 2023 registrou o maior número de projetos de lei sobre o tema apresentados nas capitais dentro do período analisado, com 26 matérias. Destas, 22 têm o objetivo de restringir o acesso à interrupção legal da gestação.

Redes de articulação antigênero
Em um movimento que especialistas chamam de ofensiva antigênero, projetos de lei buscam estabelecer uma série de exigências para acessar o serviço legal de interrupção da gestação.
Nos últimos 8 anos, vereadores de São Paulo (SP), Belo Horizonte (MG), Rio de Janeiro (RJ), Recife (PE) e João Pessoa (PB) propuseram que pessoas que buscam realizar um aborto legal fossem obrigadas a ouvir batimentos cardíacos do feto, receber informações falsas sobre supostos efeitos colaterais e psíquicos de um aborto ou se submeter a demonstrações de como um feto é extraído do ventre da mãe. Na capital paraibana, um projeto com propostas similares se tornou lei em 2024.

A imposição de tais procedimentos, além de poder ser equiparada à tortura, viola um marco internacional do Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas, explica Mariana Paris, advogada do Anis Instituto de Bioética. Trata-se do caso K.L. vs. Peru, em que o Comitê afirmou que obrigar uma sobrevivente de violência sexual a levar adiante uma gestação é uma forma de tortura. O país foi obrigado a pagar uma reparação à vítima.
A advogada indica que projetos que visam cercear o aborto e tramitam em âmbito federal são replicados nos legislativos de estados e municípios, com uma maior chance de aprovação. Entre 2023 e 2024, cinco capitais brasileiras protocolaram projeto de lei que busca notificar procedimentos de aborto realizados no município às secretarias de saúde ou à polícia, com textos idênticos ou similares: Belo Horizonte (MG), Rio de Janeiro (RJ), Maceió (AL), João Pessoa (PB) e Fotaleza (CE).
Na capital mineira, a proposta é de autoria da vereadora reeleita Flávia Borja (DC) e se tornou lei no último ano. A legislação estabelece que as notificações devem ser publicadas no Diário Oficial do município, indicando a razão do procedimento, faixa etária e raça da pessoa gestante.
Cidades do interior
O projeto sobre a notificação dos procedimentos de aborto às secretarias de saúde também tramita em cidades do interior do país, como é o caso de Uberlândia (MG), Niterói (RJ), Rio Grande (RS) e Sete Lagoas (MG). A última cidade nem mesmo dispõe do serviço de interrupção legal da gestação nos equipamentos de saúde municipais.
Uma proposta similar tramita no Congresso Nacional. O PL 1152/24, apresentado em abril de 2024 e de autoria do deputado federal Messias Donato (Republicanos-ES), exige não só que procedimentos de aborto sejam notificados ao Ministério da Saúde, mas também a divulgação de um relatório mensal contendo tempo gestacional em cada procedimento, idade da pessoa gestante e o CRM do médico responsável pelo atendimento. O projeto de lei já recebeu parecer favorável pela Comissão de Saúde e aguarda parecer da Comissão de Constituição e Justiça.
Para Camila Galetti, doutora em sociologia pela UnB, uma explicação possível para a articulação de vereadores em tantas cidades distintas pode estar nos grupos de formação política organizados por lideranças da extrema direita. Além disso, “em nível nacional, a maioria dos conselheiros tutelares são de extrema direita”, diz. “Pelas beiradas, essas pessoas estão capturando tudo que perpassa a pauta da infância e dos direitos reprodutivos”, completa Camila.
Interferir na atuação dos profissionais
Ainda que sejam projetos que “extrapolam as funções do legislativo municipal e afrontam a legislação federal”, Mariana Paris, advogada do Anis, alerta que as iniciativas não são inofensivas. A insegurança jurídica para que profissionais de saúde atuem em situações de aborto legal é uma das consequências da tramitação desses projetos, segundo a advogada.
“São iniciativas que oferecem muitos obstáculos ao aborto legal por, principalmente, aumentar o estigma e interferir na atuação desses profissionais, levando, inclusive, a perseguições”, explica.
O aborto é legal no Brasil em três situações: em caso de risco de morte da gestante; para gestações decorrentes de violência sexual; e em diagnóstico de anencefalia do feto. Mas, de acordo com dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde, do Ministério da Saúde, o serviço de interrupção legal da gestação é oferecido somente em 2% dos municípios.
O baixo número de hospitais com o serviço não é o único obstáculo. Para Rebeca Mendes, advogada e fundadora do Projeto Vivas, a criação de leis municipais que buscam dificultar o acesso ao aborto são a “cereja no bolo”. A ativista acompanha mulheres que têm sido denunciadas para a polícia pelo próprio hospital após a interrupção legal da gestação. “A legislação vem apenas para institucionalizar o que já acontece. Na prática, esses projetos de lei já existem”, diz.
O Projeto Vivas garante o acesso ao aborto legal no Brasil e em outros países da América Latina. Organizações com esse tipo de atuação também se tornam alvo de parlamentares da extrema direita. Em uma tentativa de perseguir e enfraquecer esses grupos, o projeto de lei nº 3088/2024, de autoria do vereador carioca Carlos Bolsonaro (PL), busca proibir apoio institucional ou financeiro da Prefeitura do Rio de Janeiro às organizações que defendem “pautas identitárias” ou aborto legal.
Homens apresentaram a maioria dos projetos
Parlamentares homens são responsáveis por 76% dos 69 projetos de lei antiaborto em Câmaras Municipais das capitais brasileiras. Por outro lado, as vereadoras mulheres são responsáveis por 68% das 34 propostas que buscam proteger o acesso ao aborto legal.
Conforme o levantamento da reportagem, 67% dos projetos protocolados (68 projetos) nos municípios sobre os temas buscam restringir o acesso ao direito ao aborto legal, seja por influenciar o debate público nesse sentido ou por propor alterações legais que dificultam o acesso ao procedimento.
Entre os que buscam influenciar o debate público, somente dois projetos são favoráveis ao direito, que fazem alusão a uma data pela legalização do aborto ou por conscientização sobre aborto legal: o PL 2357/2023 no Rio de Janeiro, em tramitação, e o PL 327/2021 em Salvador, que foi arquivado.
É em Fortaleza, no Ceará, onde atua o vereador campeão de projetos de lei que buscam restringir o direito ao aborto do Brasil. Jorge Pinheiro (PSDB) apresentou sete das 13 matérias legislativas sobre o tema, entre projetos de lei e projetos de indicação.
Uma das estratégias utilizadas pelos parlamentares de extrema direita é a apresentação de matérias como uma indicação, que são uma sugestão ao Poder Executivo. Uma vez aprovada a indicação pelo Plenário, quem ocupa o executivo municipal pode devolver a ideia para a Câmara, como um Projeto de Lei de autoria do Executivo, o que acelera a tramitação da proposta.
Campanhas antiaborto
Os vereadores antiaborto buscam crescimento político entre os eleitores com a pauta. Jorge Pinheiro foi eleito pela primeira vez em 2016 e chega ao seu terceiro mandato em 2025, com quase o dobro de votos da primeira eleição. O vereador cearense é advogado, membro da comunidade católica Shalom e se identifica como um “defensor da vida e da família”. Com uma cruz no peito, ele comemora, no seu Instagram, a aprovação de uma emenda à Lei Orgânica do Município, em dezembro de 2024, que estabelece a prioridade de investimento em políticas públicas “entre a concepção e os 6 anos de idade”.
Colega de Jorge na Câmara Municipal de Fortaleza, Adriana Gerônimo (PSOL) considera grave essa alteração na Lei Orgânica. A vereadora argumenta que a aprovação vai dificultar o acesso ao aborto legal por adolescentes e vítimas de estupro.
Um dos projetos apresentados pelo vereador, a ‘Semana pela Vida’ previa a realização de “campanhas de informação a respeito dos malefícios médicos e psicológicos da utilização de anticoncepcionais”. Projetos de lei idênticos a esse foram localizados pela reportagem em outras duas cidades do interior do país: Tabuleiro do Norte (CE) e Sete Lagoas (MG).
A proposta chegou a ser sancionada na capital cearense em setembro de 2021, mas o decreto de regulamentação publicado pelo então prefeito, José Sarto (PDT), frustrou o projeto inicial.
Depois de pressão popular e midiática, o decreto determinou que a programação da ‘Semana pela Vida’ deve incluir atividades informativas a respeito da gravidez na adolescência, sobre métodos contraceptivos de longa ação e conhecimentos sobre interrupção legal da gestação.
O gabinete do vereador Jorge Pinheiro (PSDB) foi procurado para prestar esclarecimentos à reportagem, mas não quis dar entrevista.
Financiamento público para infraquecer direitos
Somente dois projetos que buscam garantir o direito ao aborto legal tramitam na Câmara Municipal de Fortaleza. Um deles, da vereadora Adriana Gerônimo (Psol), protocolado em 2021, fala sobre a criação de um programa de atenção humanizada ao aborto legal.
A informação de que os projetos tramitam consta no sistema da Câmara, mas a vereadora afirma que não é bem assim. “O projeto nunca foi nem lido, né? Ele nunca passou nem pela leitura no plenário, nunca foi distribuído para nenhuma comissão”, afirma Adriana. Segundo ela, as últimas duas presidências na Câmara eram bem difíceis, “ligadas à igreja evangélica e articuladas com a extrema direita”, diz.
Um dos projetos de indicação do vereador Jorge é de que fosse construído um “monumento pró-vida dedicado ao nascituro e à gestante” em uma praça da capital cearense. O projeto foi aprovado pelo plenário em 2021 e enviado ao prefeito da época, José Sarto (PDT). Questionada pela reportagem, a Prefeitura de Fortaleza respondeu, em nota, que “ainda está estudando os projetos não implementados pela gestão anterior”, e não respondeu se existe um prazo para implementação.
Clara Wardi, socióloga pela UnB, defende que é preciso dar a devida importância às ofensivas de ataque ao direito ao aborto nos municípios. Projetos que buscam pautar o debate público, como institucionalização de datas comemorativas, palestras, campanhas, tratam-se da destinação de financiamento do Estado para enfraquecer um direito. “O que a gente tem observado é um acirramento desse processo. Faz muita diferença ter governadores, prefeitos, sancionando projetos de lei antiaborto sem o mínimo de constrangimento”, explica.
A socióloga reforça que são as pessoas que gestam em situação de vulnerabilidade econômica, negras e afastadas dos equipamentos de saúde, que mais sofrem com as imposições desses obstáculos.
Embora existam normativas federais que garantem direitos sexuais e reprodutivos, é preciso que os municípios atuem de forma positiva para garantir o acesso ao procedimento. Segundo a pesquisadora do Anis, Mariana Paris, é uma prerrogativa dos municípios implementar o direito à saúde, que está previsto em lei federal, e não legislar contra esse direito. “Em especial na atenção primária, oferecendo de maneira ampla o serviço de saúde sexual reprodutiva, planejamento familiar, contracepção, educação sexual, estabelecer fluxos integrados e eficientes para encaminhar de maneira rápida os casos já previstos em lei”, argumenta.
Circo de horrores
Uma das razões para o avanço articulado da ofensiva antiaborto nos municípios, na avaliação da socióloga Camila Galetti, é de que a maioria dos vereadores e vereadoras pertencem a partidos de direita ou extrema direita, o que reflete na escolha de agenda ideológica e política. Mas não só isso. A socióloga explica que esses políticos se dedicam a construir uma agenda de pânico moral.
Camila dá o exemplo de uma encenação de “aborto” que aconteceu no Senado Federal, em junho de 2024 e argumenta que os debates que o campo antidireitos promove buscam equiparar o aborto a uma morte, mobilizando os afetos. “Nessa narrativa que é construída, a autonomia, o corpo da mulher que está gestando é deixado de lado”, lamenta a socióloga.
No Rio de Janeiro, capital com maior número de projetos de lei sobre aborto e nascituro no Brasil, as parlamentares feministas enfrentaram votações violentas em sessões plenárias sobre o tema. Uma delas, relembrada pela vereadora Mônica Benício (PSOL), foi durante a apreciação de um projeto de Marielle Franco. O PL 442/2017 tratava da fixação de cartazes informativos nos serviços públicos do Rio de Janeiro sobre direitos das vítimas de violência sexual, como o acesso à interrupção legal da gestação sem necessidade de boletim de ocorrência ou autorização judicial.
O projeto foi votado em março de 2023, com a presença de manifestantes. “Aquilo virou um circo de horrores. A direita fez mobilização, com mulheres que foram para a galeria com roupas que lembravam a série O Conto de Aia, com golas altíssimas, crucifixos no pescoço, uma bandeira do Brasil gigante com um feto no centro”, conta Mônica Benício.
A proposta recebeu uma emenda do vereador Rogério Amorim (PL) durante a votação, que obrigava a mulher a ir até a delegacia para fazer o boletim de ocorrência antes de procurar um atendimento médico. Com a emenda aprovada, o projeto passaria a ser votado com o texto de Amorim.
A vereadora solicitou que o PL fosse derrotado e se surpreendeu quando o próprio Amorim rejeitou a proposta. “Ele votou contra o projeto, mesmo com o texto dele. Ou seja, nunca foi sobre a vida das mulheres”, denuncia Mônica.
Enfrentamento difícil e solitário
Algumas parlamentares relatam fazer um enfrentamento solitário da pauta. Adriana Gerônimo (PSOL) diz que é a única a defender direitos sexuais e reprodutivos no plenário em Fortaleza e que quando fala sobre isso, sofre violência. “O que acontece é um linchamento mesmo, eles me chamam de abortista, que eu gosto de assassinar criança”, comenta Adriana.
Fazer a defesa desse direito no meio institucional não é fácil, segundo a vereadora, mas ela diz que não pretende recuar. “Quando toca nessa pauta, eu já boto a mão na cabeça e penso ‘ai, meu Deus, vai começar tudo de novo’, porque é uma semana que eles acabam com o nosso psicológico”, desabafa Adriana.
O mandato municipal com mais projetos de lei que tentam garantir o acesso ao aborto legal é o de Silvia Ferraro da Bancada Feminista (PSOL) na capital paulista. Com seis matérias protocoladas no período de tempo analisado, quatro delas estariam em tramitação na Câmara Municipal de São Paulo, mas, na verdade, estão paradas em comissões.
Dafne Sena, co-vereadora no mandato, explica que algumas comissões, como a CCJ, são altamente controladas pela extrema direita, o que faz com que os projetos não caminhem. Para a co-vereadora, o silenciamento é uma das violências sofridas ao tratar da pauta do aborto legal. “Quando a gente propõe um projeto que sequer é relatado na primeira comissão que ele passa, eu acho que isso é uma violência”, afirma.
A vereadora Mônica Benício (Psol) diz que existe um distanciamento das pessoas da política institucional, que enxergam esse espaço como corrupto, ineficiente e que não representa a população. “A gente não nos vê na fotografia do poder”, diz. Para mudar essa lógica, Mônica diz que busca trazer transparência para o que acontece dentro da Câmara e para que haja uma troca com a sociedade.
Luciana Boiteux (Psol), ex-vereadora pelo Rio de Janeiro (RJ) e uma das autoras da ADPF 442, que busca descriminalizar o aborto até a semana 12, avalia que o número de parlamentares progressistas não é tão baixo, mas há um risco eleitoral que precisa ser considerado ao se comprometer com a pauta do aborto. Na opinião dela, o país vive em uma política pautada no populismo de direita, e isso afeta direitos sexuais e reprodutivos, em especial.
“Basta você protocolar um projeto onde eles encontrem a palavra aborto que já vão acompanhar para tentar prejudicar”, destaca Luciana e acrescenta que é muito difícil conseguir a maioria mínima para avançar nesses projetos. Para a vereadora do Rio, até mesmo pessoas que não são conservadoras têm medo de falar sobre aborto em espaços institucionais. “A lógica é perversa.”
*Esta reportagem foi produzida a partir do edital Vozes de Impacto: Jornalismo investigativo sobre direitos humanos e democracia, promovido pela Fiquem Sabendo em parceria com a Embaixada Britânica no Brasil.
Artigo original publicado em Azmina.