Após as águas da enchente histórica de 2024 no Rio Grande do Sul baixarem, era desoladora a situação do assentamento Integração Gaúcha, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em Eldorado do Sul (RS). A cidade localizada na região metropolitana de Porto Alegre ficou 100% submersa.
Além das perdas de tudo em casa, depois de quase 30 dias de alagamento, as 64 famílias assentadas encontraram hortas e arrozais devastados, infraestrutura e máquinas destruídas e a incerteza sobre o futuro.
Menos de um ano após a tragédia climática e ainda com desafios a serem superados, o Bem Viver, programa do Brasil de Fato, mostra que a produção das hortas agroecológicas já está de volta às feiras e a safra do arroz agroecológico prestes a ser colhida.
Retomada iniciada ainda em 2024, depois que um estudo realizado por pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) atestou que o solo mantinha boa qualidade. Fruto do manejo realizado pelos assentados ao longo dos anos, com técnicas agroecológicas.
Em meio a sua horta, Marinês Riva e seu companheiro, José Mariano Matias, o Jalo, explicam o trabalho.
“A gente tira o mato e coloca de volta no solo pra que a terra fique protegida, porque existe a erosão da chuva e a erosão do sol. Se nós tirar agora essa cobertura e deixar a terra nua, a terra vai sofrer, o alho poró vai sofrer e principalmente os bichinhos que estão aí na terra também vão sofrer”, afirma Marinês. Segundo ela, a família usa vários tipos de cobertura de solo, como alimentos não aproveitados, mato retirado dos canteiros e até mesmo papelão.
Retomada com manejo e solidariedade
Há 34 anos o assentamento ocupa a região e já chegou a produzir mais de 11 mil sacas de arroz orgânico por ano. Apesar das dificuldades, trabalho e solidariedade foram essenciais para retomar a produção. Jalo recorda dos primeiros dias após as águas da enchente baixarem.
“Aí a gente começou devagarinho, então, a fazer uma drenagem do solo, recuperando esse solo também. Deixou ele enxugar, recuperando ele com compostagem, calcariamos [aplicação de calcário para corrigir a acidez do solo], adubação verde. E aí também nós, através do Movimento Sem Terra, a associação agroecológica lá da feira, a gente começou numa campanha também para arrecadar sementes e mudas, para recuperar aqui os plantios”, conta o agricultor. A campanha arrecadou junto à sociedade valores essenciais para o reinício da produção.
Marinês reforça os benefícios do manejo agroecológico. “A gente usou muito composto, né, a gente usou os preparados biodinâmicos, que é uma prática que a gente faz há muitos anos. E isso traz a vida pro solo, é essa riqueza que tá aí.”
A assentada relata também que as demais hortas do assentamento são agroecológicas. “Todas as hortas estão no mesmo patamar que a nossa. Todo mundo faz esse trabalho, esse tipo de manejo, e esse cuidado que a gente tem, de preservar, de manter ao máximo a produção de variedades, né? Porque isso também ajuda.”
Arrozais agroecológicos voltam a produzir
Marildo Mulinari, conhecido como Tubiano, celebra a retomada da produção dos arrozais agroecológicos. Após tanta adversidade, o ano promete uma boa colheita.
“Nós nos obrigamos a retomar, após a enchente, na verdade estava tudo destruído e, por incrível que pareça, tá com um aspecto bom, a lavoura. A gente teve que reconstruir os levantes de luz, reconstruir as bombas, os canais, as estradas que a enchente devorou com tudo. E hoje, passados oito meses da enchente, nos alegra ver o aspecto do arroz e a nossa expectativa é produzir a nossa média de sempre, em torno de 100 a 120 sacos por hectare”, afirma.
O estudo feito em junho de 2024 indicou que a enchente não afetou as características físicas e químicas do solo. É o que conta o professor Paulo César Nascimento, da Faculdade de Agronomia, que integrou a equipe de pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) responsável pela análise do solo das hortas.
“Naquela região, as águas não foram tão violentas. Não teve uma energia, uma velocidade de arraste, assim como aconteceu, por exemplo, no Alto Rio Taquari, no Alto Rio Caí, né? Então isso, sem dúvida, acabou minimizando pelo menos esse problema. Mas a gente avalia que efetivamente o manejo, o cuidado que eles têm, contribuiu para isso também”, comenta.
Ele pontua o benefício do manejo e do cuidado com as características químicas da terra. “A manutenção da matéria orgânica do solo, o uso de plantas que também servem como cobertura do solo, cobertura viva em alguns, em alternância com as espécies alimentícias, as espécies de interesse comercial, isso contribuiu.”
Bioinsumos: tecnologia agroecológica
Entre as técnicas usadas há anos pelos assentados da região e que melhoram a qualidade dos alimentos sem agredir o meio ambiente estão os bioinsumos. Dionéia Soares Ribeiro, coordenadora da Unidade de Bioinsumos Ana Primavesi, localizada em Viamão (RS), conta que a prática é usada há anos nos assentamentos.
“Inclusive eles [os bioinsumos] começaram pelos camponeses e agricultores, né? E agora eles estão ganhando bastante espaço, inclusive no agronegócio”, pontua. “Para nós, que não utilizamos o agrotóxico, ele vem para fortalecer a nossa agricultura, os nossos costumes.”
Ela explica que o bioinsumo é parecido com a compostagem que muitas pessoas fazem em casa. “O produto biológico, ele é coletado, é uma cepa que é coletada e isolada. E aí, feita em laboratório. E aí a gente compra esse fermentinho e reproduz no nosso biorreator.”
Na unidade Ana Primavesi são produzidos quatro tipos de bioinsumos: o azospirillum, o bacillus subtilis, o bacillus thuringiensis e o pseudomonas. “Esses quatro tipos de bionsumos a gente utiliza para as lavouras de arroz e para as hortas orgânicas que o movimento tem aqui no estado do Rio Grande do Sul também”, complementa Dionéia.
Parte das famílias quer reassentamento
Apesar da retomada na produção, há famílias que não querem mais permanecer no local. A luta pelo reassentamento junto ao governo do estado vem de antes enchente de 2024. Parte do assentamento que fica em área mais baixa já enfrentou oito enchentes em pouco mais de vinte anos. Foram várias perdas de produção, mas na enchente de 2024, pela primeira vez a água não só entrou nas casas, mas chegou aos telhados.
Ao lado da horta já com boa produção, o agricultor assentado Daniel Audibert mostra um pomar com árvores mortas. “Era um pomar doméstico que a gente tinha, já são árvores plantadas há 28 anos. E aqui a gente tinha toda uma barreira de proteção com bananas, para segurar o vento forte, para não dar impacto nas hortaliças. Então, quando tu vem aqui, tu vê uma produção linda. Não significa que o solo não esteja bom, mas não é só o solo que te dá condições de sobrevivência nesse local”, pondera.
Segundo ele, 33 famílias do assentamento estão dispostas a serem realocadas, desde os anos de 1999 e 2000. “Mas os governos não efetuaram essa transferência e a gente foi sobrevivendo aí”, comenta. O assentamento Integração Gaúcha foi feito pelo Governo do Estado e, após anos sem avanço, o diálogo pelo reassentamento de parte das famílias voltou com força após a enchente de 2024, após a mobilização do MST.
Para sair da promessa e manter os agricultores na região, o reassentamento precisa superar entraves burocráticos entre o Governo do Rio Grande do Sul, a União e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Em nota, o Executivo estadual disse que pediu ao governo federal o repasse de uma área em Eldorado do Sul (RS) em troca de uma área estadual para realocar as famílias.
Sucessão familiar
Em frente às estufas que não serão mais consertadas após seguidas enchentes, Alice Audibert reflete sobre o futuro. “A gente conseguiu produzir, a gente conseguiu tirar o alimento, conseguimos voltar às feiras, que tá em grande escala. O espaço, ele é belíssimo, pena que não é o nosso espaço, do ser humano estar aqui.”
Segundo ela, a avaliação dos moradores da área é que o local onde vivem e produzem é o leito do rio. “Aqui é o lugar do rio, já chegou oito vezes aqui, a um nível que ninguém imaginava. Então o mais consciente é deixar pra natureza o que é dela e que um dia a gente tomou, o ser humano tomou, e respeitar isso.”
Alice conta que para as famílias da área mais baixa do assentamento, o local não permite a sucessão familiar. “Em uma parte do assentamento a gente consegue ver que talvez tenha uma sucessão familiar, porque é um ambiente que você consegue ficar ali com uma segurança. Foi uma única vez que chegou a água até lá e aqui chegou oito vezes. Eu sou agricultora, trabalho aqui, mas eu não consigo ver uma perspectiva de vida”, lamenta.
Festa da Colheita do Arroz Agroecológico
Enquanto parte das famílias aguardam a destinação de novas terras, a produção não para no assentamento. O mês de março promete ser de celebração de um dos produtos de maior destaque do MST, o arroz agroecológico.
“Vai ser a nossa 22ª festa do arroz, em Viamão (RS), no Assentamento, Filhos de Sepé, no dia 20 de março. Então a gente vai festejar, vai confraternizar essa essa retomada depois dessa enchente”, pontua Tubiano.
A 22ª Festa da Colheita do Arroz Agroecológico inicia às 9h da quinta-feira, dia 20 de março. Realizada anualmente pelo MST do Rio Grande do Sul, foi suspensa em 2024 porque a semeadura do grão, que geralmente começa em setembro, precisou ser adiada em razão de duas enchentes históricas na região metropolitana de Porto Alegre no ano anterior.
Em 2024, quando 50% do arroz plantado em dezembro ainda não havia sido colhido, veio a maior enchente da história do Rio Grande do Sul. Agora, em 2025, depois de muito trabalho, a comemoração será retomada e celebra a maior produção de arroz orgânico da América Latina.
E tem mais…
Falando do maior produtor de arroz orgânico da América Latina, a chef Gema Soto ensina a fazer um delicioso e saudável pão de arroz, sem farinha e sem leite.
O programa traz também as mulheres de Belo Horizonte (MG) que lideram luta pela floresta, cultura e o direito LGBTQIA+.
Que cheiro Belém (PA) tem? Se prepare para ser hipnotizado pelas ervas da mata dos perfumes, poções e banhos paraenses.
E o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) dá um salve de Sergipe sobre a luta pela produção de alimentos sem veneno.
Quando e onde assistir?
No YouTube do Brasil de Fato todo sábado às 13h, tem programa inédito. Basta clicar aqui.
Na TVT: sábado às 13h; com reprise domingo às 6h30 e terça-feira às 20h no canal 44.1 – sinal digital HD aberto na Grande São Paulo e canal 512 NET HD-ABC.
Na TV Brasil (EBC), sexta-feira às 6h30.
Na TVE Bahia: sábado às 12h30, com reprise quinta-feira às 7h30, no canal 30 (7.1 no aparelho) do sinal digital.
Na TVCom Maceió: sábado às 10h30, com reprise domingo às 10h, no canal 12 da NET.
Na TV Floripa: sábado às 13h30, reprises ao longo da programação, no canal 12 da NET.
Na TVU Recife: sábados às 12h30, com reprise terça-feira às 21h, no canal 40 UHF digital.
Na UnBTV: sextas-feiras às 10h30 e 16h30, em Brasília no Canal 15 da NET.
TV UFMA Maranhão: quinta-feira às 10h40, no canal aberto 16.1, Sky 316, TVN 16 e Claro 17.
Sintonize
No rádio, o programa Bem Viver vai ao ar de segunda a sexta-feira, das 11h às 12h, com reprise aos domingos, às 10h, na Rádio Brasil Atual. A sintonia é 98,9 FM na Grande São Paulo e 93,3 FM na Baixada Santista. Além de ser da transmissão pela Rádio Agência Brasil de Fato, segunda a sexta-feira, das 11h às 12h.
O programa conta também com uma versão especial, Conversa Bem Viver , transmitida pelas plataformas Spotify, Google Podcasts, iTunes, Pocket Casts e Deezer.