Poeta, romancista e tradutora, mariam pessah (com iniciais minúsculas mesmo, por opção) é um dos novos nomes da literatura do Sul. Mesmo caso da psicanalista e escritora Taiasmin Ohnmacht.
Entre outros livros, mariam já lançou Grito de Mar e Em breve tudo se desacomodará. Seu novo livro A saliva que umedece, poemariam – um tratado sobre línguas, pela editora Libretos, será lançado dia 13 de abril, no esquenta da FestiPoa Literária. Taiasmin é autora dos romances Vozes de retratos íntimos e Uma chance de continuarmos assim, definindo o último como afrofuturista.
O Brasil de Fato RS conversou com as duas. O resultado desse encontro você acompanha agora:

Brasil de Fato RS: Quero começar perguntando o seguinte: a escrita é uma escrita feminina ou feminista?
mariam pessah: Adoro essa provocação. Minha escrita nunca vai ser feminina. Sempre vai ser feminista. Olha pra mim: eu sou feminina? Não me considero uma pessoa feminina. E, como a minha escrita é muito política e ideológica, vai ser feminista. Nem todas as pessoas, digamos assim, construídas mulheres, que a sociedade pretende que se tornem mulheres, vão ser femininas. Algumas escolheram ser femininas, mas todas deveríamos ser feministas. Passamos pelas eleições, tem o voto, tem a possibilidade de escrever. Isso não foi natural. Não foi dado. Isso (aconteceu) graças às lutas feministas.
Talvez seja necessário subverter também o que é ser feminina
Taiasmin Ohnmacht: Esta é uma boa discussão que nunca tivemos a oportunidade de fazer. Às vezes, acho que ser feminina não é esse estereótipo que se coloca. Ou é da mesma ordem, então, da discussão do que é ser mulher. Talvez seja necessário subverter também o que é ser feminina. Quem é que corresponde a esse ideal? Seguramente, não eu. Não correspondo a esse ideal, embora seja uma mulher hétero. Se formos pensar de uma forma subversiva, minha escrita nem sempre é ativista. Às vezes, é feminina se eu pensar que é uma mulher escrevendo e tem essa marca. Ser mulher também é uma sacola com muitas diferenças, um comum no qual habitam também muitas diferenças.
É interessante esse olhar sobre os estereótipos. O que é ser mulher? O que é ser feminina? O que é ser homem? O que é ser uma mulher negra? E o que isso carrega? O que é ser uma mulher lésbica? Vejo que a escrita está aí também para desmontar esses estereótipos.
mariam: Cada vez me assumo mais uma pessoa não-binária. Não me considero mulher. Nem homem, nem mulher. Não é que eu sou masculina, vou me tornar um homem, vou transicionar. Simplesmente vejo o fato de ser não-binária como uma provocação. Vivemos em uma sociedade em que é tudo binário. Digo que fomos formados pela Cecília Meirelles. É isto ou aquilo. Então, tem só duas opções. É Grêmio ou é Inter. Acho que essa provocação vai abrir e dizer que tem mil outras possibilidades. E eu quero essas mil outras. Quero sempre a porta aberta.
Não queria um gênero que me marcasse um horizonte para onde ir
Não sou nem homem, nem mulher. Certamente, vou ser lida nesta sociedade como mulher. Então, eu continuo usando ‘A’ porque, enquanto existe o patriarcado, quero estar com o meu grupo político. Quando troquei o meu nome – no documento continua sendo Mariana – tirei o ‘A’ final por questões de gênero. Não queria um gênero que me marcasse um horizonte para onde ir, como atuar, como agir. Depois eu troquei ‘N’ por ‘M’ por questões poéticas. Porque vivo a poesia também.
Taiasmin: Mas você é toda poesia. Porque vejo também essa não-binariedade como uma opção, sim, política, mas estética também. Então, para mim, isso é poesia. E é muito lindo. E me questiona também. Então, ela é uma poesia em ato.
O mais interessante desse debate é essas possibilidades que estão se abrindo. De uma pessoa que se considera não-binária, que é um termo novo para a sociedade, poder colocar isso na sua escrita, que é a abertura que estamos tendo para a literatura negra, que é a literatura de mulheres. Vocês enxergam que está cada vez maior essa abertura de portas?
Taiasmin: Sim, mas isso não se dá por concessões. Se dá por mobilização e organização. Em Porto Alegre, temos vários coletivos de escrita. Tem o coletivo de escritores negros, das mulheres escritoras negras, das mulheres escritoras.
A própria mariam coordena um sarau LGBTQIA+. É isso que cria esses espaços e que fortalece a escrita e que permite que possamos colocar os nossos escritos, publicarmos. A existência desse livro daqui tem muito a ver com isso. Passa, então, por essas companheiras de coletivos que me apontam: ‘Sim, você pode escrever poemas’.
mariam: Organizo o Sarau das Minas há sete anos. Mas não é um sarau nem lésbico nem LGBT. É das minas e todo mundo pode entrar. É um espaço em que somos protagonistas tanto as mulheres e as pessoas socializadas como mulheres. Digo que é para mulheres, lésbicas e pessoas não-binárias, mas, se vem homens, são bem-vindos ao privilégio da escuta. A respeito da escrita, eu, não como mulher, mas como lésbica, acho que isso politiza a escrita.
Taiasmin tem dois romances maravilhosos onde justamente se posiciona como uma mulher negra e isso faz uma diferença enorme. Um deles é Uma chance de continuarmos assim. Saiu pela (editora) Diadorim e, tem, inclusive, personagens lésbicas. É muito interessante. Temos falado sobre quem tem a possibilidade de escrever. Seria igual eu, como branca, escrever sobre personagens negras ou uma pessoa criada como hétero ou ter uma personagem lésbica.
Não via como possível ser escritora um dia. Escritores eram seres de outro mundo
Conta como foi começar a escrever. Você é psicanalista e a escrita veio depois disso?
Taiasmin: Na verdade, vem antes e de várias formas. Escrevo desde os meus dez anos de idade. Tem uma diferença entre escrever e publicar. Somos reconhecidos como escritoras a partir do momento em que publicamos. Mas essa escrita é anterior a isso. Posso parar de publicar agora e seguir escrevendo. Então, por ser uma pessoa negra, filha de pais periféricos que tiveram essa história, não via como possível ser escritora um dia. Escritores eram seres de outro mundo. Não aconteceria na minha vida. Só irá acontecer muito mais tarde.
Tinha em torno de 40 anos quando comecei a mostrar os poemas em redes sociais, o que também é uma trajetória bastante comum na vida das mulheres. Por não se verem nesse mundo de escritoras, por uma vida que tem jornadas duplas, triplas, de trabalho, enfim. Fizeram muita diferença as redes sociais como veículo para mostrar que eu escrevia e de certo reconhecimento entre os pares. E, para todas nós, a democratização do mercado editorial, quando passa a ser permitida a publicação de menores tiragens.
Afrofuturismo parte da premissa de poder imaginar um mundo no futuro em que o negro esteja em outra posição
Em 2019, você lançou o Visite o decorado, que foi o seu primeiro…
Taiasmin: Meu primeiro livro solo, uma novela. Depois, em 2021, o primeiro romance, Vozes de retratos íntimos, que foi finalista do (prêmio) Jabuti, finalista do São Paulo de Literatura, e ganhou o prêmio Ages e o Açorianos. Em 2023, lancei um romance afrofuturista, que é Uma chance de continuarmos assim.
O que é o afrofuturismo?
Taiasmin: É um movimento cultural que não se restringe à literatura, está em todos os campos das artes. É um movimento estético-cultural que parte da premissa de poder imaginar um mundo no futuro em que o negro esteja em uma outra posição, uma posição de cidadania, uma posição interessante na sociedade.
Como a escrita entrou na tua vida, mariam?
mariam: Comecei a escrever crônicas. Sempre escrevia diários, mas nunca considerei que isso fosse uma escrita. Escrevia para mim. Estive cinco anos muito próxima do MST, fotografando e tal, e voltei de uma situação pensando ‘Tenho que escrever, tenho que escrever’. Comecei até a sentir no corpo, sabe? Uma dor que só saía se eu escrevia. E eu comecei a me dar conta que a imagem só não me alcançava e fui migrando da fotografia quando notei que queria começar a explicar as fotos. Queria falar muito mais do que a imagem mostrava. Em 2012, me afastei diretamente do ativismo e me dediquei a estudar letras, a escrita criativa, a fazer traduções.
E você tem três livros lançados. Um deles é Em breve, tudo se desacomodará.
mariam: É um romance. Tenho outros, mas esses são os três mais… Os outros são autopublicações. Grito de mar é de poemas bilíngues.
Nós, negros, somos atravessados pelo racismo também
Taiasmin, nesses romances, principalmente o Vozes de retratos íntimos, você traz muito da sua vida. Como foi escrever sobre isso?
Taiasmin: É a história ficcionalizada da minha família. Vai da metade do século 19 até a metade do século 20. Foi bem difícil. Levei cinco anos para escrevê-lo. Tinha vários entraves. Um deles é que, por mais paradoxal que seja, embora eu tenha um corpo negro, foi muito difícil escrever sobre um corpo negro. Encontrar as palavras, porque esse português que compartilhamos é extremamente racista. E, cada vez que ia descrever o corpo negro, era como se um racista estivesse do meu lado ditando o texto. Saía de uma forma muito violenta. Nós, negros, somos atravessados pelo racismo também. Claro que com efeitos diferentes dos brancos.
Outra dificuldade foi como lidar com uma herança porque essas histórias eram histórias contadas pelos meus pais. E a sensação de estar traindo a memória deles bateu forte. Em algum momento, achei que não era eu quem que tinha que estar escrevendo essa história. Eram eles. Tive que me permitir trair essa memória, pensar que herança é aquilo que recebemos dos outros, mas decidimos o que fazer com ela. Essas memórias agora são minhas. E eles me contaram por algum motivo também. Vou supor que seja porque eles queriam que eu contasse. E aí eu contei. Me autorizei a contar do jeito que me pareceu melhor.
O terceiro ponto que é o que nos torna escritores também ou escritoras, é sermos leitoras. Quando o texto não estava funcionando e eu não sabia mais o que fazer, eu li. Não para resolver, mas acabou me ajudando. Li Ponciá Vicêncio, da Conceição Evaristo. O livro me fez virar uma chave. E é interessante porque a resolução que dei não é uma cópia de nada do Ponciá Vicêncio mas mexeu com alguma coisa em mim. Tive a ideia de colocar uma outra voz narrativa no texto. Quando terminei, eu não precisei perguntar para ninguém. Sabia que tinha acabado de escrever.
O que seria normal? Ser parte da norma. Então, eu sou anormal, porque não faço parte da norma e nem quero ser
Tem uma questão importante que é da linguagem enquanto ferramenta de poder…
Taiasmin: Sim, é muito utilizada como instrumento de poder. E o que torna a nossa linguagem cotidiana imensamente pobre, é que a gente trabalha com binarismos – branco, preto, homem, mulher ─ que não dão conta da riqueza do ser humano, da experiência, bem e mal. Todos os binarismos são uma simplificação violenta. Tem o (filósofo e semiólogo francês) Roland Barthes que diz no seu texto, na aula, que a língua é fascista. E é fascista porque tem uma certa gramática que nos obriga a dizer as coisas de uma certa forma. Então, a literatura – e ele diz isso – é esse instrumento para trapacear o fascismo da língua. Mas prefiro dizer que é a poesia. Não estou pensando na poesia como as formas poéticas mas na subversão da língua, e mariam é muito ciosa em relação a isso. Vai usar a linguagem neutra. É uma forma revolucionária, é fazer poesia.
Sempre me espanta que os nossos colegas, inclusive escritores, achem estranho, ‘Não, para que isso? O português é assim mesmo’. Sim, o português é assim mesmo, o Brasil é assim mesmo, essa violência, vamos compactuar com isso, vamos nos fazer de conta que a linguagem não tem nada a ver com isso quando somos feitos de linguagem? Hoje em dia – e acho isso maravilhoso – existem mulheres com pênis e homens com vagina. Isso é linguagem. A gente pode dizer ‘Mas são homens diferentes’. Que bom! A gente não quer mais homens iguais e sim realmente outra forma de masculino, de feminino…
mariam: Estávamos conversando sobre o seu livro e tem pessoas que notavam um certo desconforto. E justamente essas pessoas são brancas. Perguntávamos se não vai ter um glossário, uma explicação? Não, aqui é literatura negra. Desde aí, discuto sempre com o Barthes: será que a língua é fascista? A língua pode chegar a me obrigar a determinadas coisas, mas posso escolher, por exemplo, não usar a sigla LGBTQIAPN+, e tal, porque não me representa, não é isso que vai me representar. Então, se falamos de dissidências, entra todo mundo e vai me representar mais, porque isso vai trazer junto a rebeldia e vai trazer junto a visão de um outro mundo. Ouvi de algumas pessoas que se dizem normais, que são um horror as lésbicas. O que seria normal? Ser parte da norma. Então, eu sou anormal, porque não faço parte da norma e nem quero ser.
Taiasmin: Fazer parte da norma é compactuar com esse mundo extremamente violento. Não é isso que eu quero, quero a implosão desse mundo.
Cheguei a criar palavras porque queria certa musicalidade
mariam: Quando escrevi Grito de mar fiz também a tradução. Então, pensei: sou autora, a tradutora, o livro é meu, eu faço o que quero. Então, tinha horas que me perguntava como iria traduzir. Cheguei a criar palavras porque queria certa musicalidade. E eu criei a palavra.
Eu me lembro, muitos anos atrás, estava em um encontro e uma super ativista, me disse que não usava a palavra lésbica, porque lésbica vem de Lesbos, vem de Safo, vem da Grécia. ‘O que eu tenho a ver com a Grécia? Temos nossas próprias palavras, e por isso que eu reivindico muito me chamar sapatão, pois sapatão é mais da periferia, é mais daqui, e também como a gente é ouvida, como a gente é chamada e como a gente quer reivindicar’. Será que eu deveria usar tal palavra ou vamos nos apropriar? Acho um tema superinteressante.
É um tema que dá outra entrevista. Lembro que, nos anos 1990, quando começou a entrar o neoliberalismo, veio a palavra ‘flexibilizar’ e nós, na esquerda, começamos a usar também, tipo ‘flexibilizar as leis trabalhistas, flexibilizar o Estado’. E a sociedade internalizou isso e olha o que estamos vivendo hoje. Realmente, temos que ter muito cuidado com as palavras.
Taiasmin: A disputa do poder se dá muito pela linguagem e isso o fascismo tem… Falo agora não do fascismo citado pelo Barthes mas do que estamos enfrentando aí. Eles (os fascistas) têm pegado palavras que são próprias da esquerda e distorcido, uma ocupação muito perversa especialmente da linguagem política.
