A recente criação de um grupo técnico de trabalho para debater a participação de entes privados nas atividades de inspeção de animais destinados ao abate reacendeu a preocupação de entidades quanto à privatização desse tipo de atividade.
Publicada no mês passado, uma portaria do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) diz que o objetivo é “subsidiar a regulamentação sobre o credenciamento de pessoas jurídicas para prestação de serviços técnicos ou operacionais de inspeção”.
A movimentação é encarada por quem defende a fiscalização pública como um processo que dá continuidade a uma demanda antiga do agronegócio, que ganhou força no governo de Jair Bolsonaro (PL). A gestão de extrema direita conseguiu aprovar a legislação que ficou conhecida como Lei do Autocontrole. Na prática, ela tira do governo a exclusividade das inspeções.
Vista por alguns setores como uma tentativa de transferir para a iniciativa privada uma atribuição essencial do Estado, a medida tem gerado manifestações de alerta quanto aos riscos para a saúde pública, a segurança alimentar e a credibilidade do sistema de controle sanitário nacional.
Em entrevista concedida ao Brasil de Fato, Guilherme Coda, dirigente do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais Federais Agropecuários (Anffa Sindical), reforça a importância da centralidade do poder público na atividade.
“A fiscalização agropecuária é uma atividade típica de Estado, exercida por servidores concursados, investidos em cargo público, que possuem poder de polícia administrativa, zelando pela saúde coletiva e pela saúde única. A inspeção sanitária é um ato da fiscalização agropecuária, sendo uma atribuição intransferível para a iniciativa privada, visto que os servidores responsáveis devem ter a autoridade de Estado para condenar, apreender, destruir, interditar, autuar, exercendo sempre que preciso o poder de polícia administrativa.”
Linha do tempo
A portaria que instituiu o grupo de trabalho é um desdobramento de um decreto sancionado já no governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT),em 2023, que regulamentou as atividades de autocontrole dos agentes privados, previstas na Lei 14.515 de 2022.
Aprovada na gestão bolsonarista, a lei alterou o modelo de fiscalização feito exclusivamente por agentes públicos do Ministério da Agricultura. Depois dela, o controle de qualidade – inclusive sanitária – passou a ser feito também pelos próprios produtores.
A discussão sobre a ampliação da participação da iniciativa privada na inspeção agropecuária não é recente no Brasil e sempre enfrentou resistências. A defesa principal sempre foi a de que o Estado não tem estrutura suficiente para dar conta de toda a demanda, sob o argumento de modernização e aumento da eficiência.
Um dos entraves para o avanço dessa proposta eram os acordos comerciais internacionais e o reconhecimento do sistema brasileiro de inspeção, mas, apesar disso, a proposta persistiu.
Na conversa com o Brasil de Fato, Guilherme Coda aponta a questão internacional como um dos grandes focos de preocupação. Segundo ele, envolver a iniciativa privada no Serviço de Inspeção Federal (SIF) pode colocar em risco as exportações de carne.
“Os protocolos internacionais para a exportação desses produtos foram elaborados com base em acordos sanitários oficiais entre o Brasil e os países importadores. Um estabelecimento de abate que possui interesse em se registrar junto ao Mapa [Ministério da Agricultura e Pecuária], sob Serviço de Inspeção Federal, deve possuir estrutura de funcionamento que atenda às exigências sanitárias regulamentadas ao longo de todos esses anos com base na experiência dos servidores do SIF.”
No governo Bolsonaro, a então Ministra da Agricultura, Tereza Cristina, retomou a pauta da “simplificação”, defendendo atuação do ministério baseada em auditorias periódicas em vez da inspeção diária nos frigoríficos, visão alinhada à bancada do agronegócio.
Embora a lei aprovada na gestão bolsonarista foque no autocontrole das empresas, ela abriu caminho para discussões sobre uma maior participação do setor privado na fiscalização. Nas últimas semanas, a preocupação quanto a essa possibilidade voltou a entrar no debate do setor.
As principais críticas ressaltam que a inspeção sanitária é um ato de fiscalização inerente ao poder de polícia do Estado e não pode ser delegada à iniciativa privada. A Constituição Federal estabelece que as ações e serviços de saúde são de relevância pública, cabendo ao Poder Público dispor sobre sua regulamentação, fiscalização e controle.
Transferir essa responsabilidade para empresas privadas, cujo objetivo principal é o lucro, poderia comprometer a imparcialidade e a objetividade necessárias para garantir a saúde pública.
Além disso, a figura do Auditor Fiscal Federal Agropecuário é considerada crucial para o sistema de inspeção, pois esses servidores possuem poder de polícia sanitária e administrativa, sendo os únicos com a prerrogativa legal para realizar autuações, interdições e apreensões de produtos que não estejam em conformidade com as normas sanitárias.
As entidades também alertam para os riscos à segurança alimentar e à saúde dos consumidores. A flexibilização ou o menor rigor na inspeção, motivada por interesses econômicos, poderia levar à circulação de produtos de qualidade inferior ou contaminados, colocando em risco a saúde da população.
O Mapa já designou a composição do grupo de trabalho criado pela portaria. Ele inclui, além de representantes do poder público, três associações da indústria pecuária e apenas uma entidade que atua em nome de trabalhadores e trabalhadoras do setor. Para Guilherme Coda, a discussão deveria envolver múltiplos setores.
“Se há necessidade de revisão do modelo de defesa agropecuária brasileiro, o governo federal deveria recorrer às diversas categorias envolvidas, não apenas a representação do agronegócio, mas da agricultura familiar, profissionais das áreas de fiscalização agropecuária, de saúde e meio ambiente, a academia, movimentos sociais e sindicais. Essa discussão deveria ser pautada junto aos conselhos de controle social das políticas públicas, como Conselho de Desenvolvimento Rural Sustentável, Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional, Conselho de Saúde, Conselho de Meio Ambiente dentre outros”, defende.
E na prática?
O Brasil de Fato conversou também com uma médica veterinária, que atua no setor público em Mato Grosso, estado que já conta com a inspeção terceirizada. Sob condição de anonimato, ela relatou que a preocupação global com a fiscalização é tão rígida que os produtos que passarem apenas pelo crivo privado não poderão ser exportados.
Segundo a fonte, países que compram produtos animais do Brasil exigem que a inspeção, fiscalização e certificação sejam realizadas por servidores públicos, seguindo as recomendações de órgãos internacionais como a Organização Mundial de Saúde Animal (OIE) e o Codex Alimentarius, conjunto de padrões alimentares internacionais, criado pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) e pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Ela afirma que isso acontece “pois o inspetor irá realizar a inspeção de forma imparcial não havendo desta forma nenhum tipo de vínculo empregatício que possa induzir este profissional a algum vício de julgamento. Caso a inspeção não ocorra de forma imparcial , seguindo a risca o Regulamento de Inspeção Industrial e Sanitária de Produtos de Origem Animal (Riispoa) , poderemos colocar em risco a saúde da população , expondo todos a doenças que podem ser fatais e impactando negativamente a saúde pública com mais gastos com saúde”.
A veterinária também falou sobre a experiência com a inspeção terceirizada no Mato Grosso. Ela nota, por exemplo, que a maioria das amostras sugestivas de tuberculose analisadas vêm de frigoríficos com inspeção federal. Ou seja, foram realizadas por auditores fiscais do Mapa. Em contraste, pouquíssimas amostras vieram de estabelecimentos com inspeção estadual, conduzida por médicos veterinários terceirizados. Essa disparidade causa estranheza e levanta questionamentos sobre a eficácia da inspeção terceirizada na detecção de problemas de saúde animal.
Preço dos alimentos
Outro ponto recente e importante no debate sobre a fiscalização é a medida anunciada pelo governo recentemente que torna a fiscalização dos Serviços de Inspeção Municipal (SIM) equivalente à federal para alguns produtos. A política está na lista de ações para barateamento do preço dos alimentos.
A legislação brasileira estabelece diferentes âmbitos de atuação para os serviços de inspeção de produtos de origem animal. O SIM geralmente permite a comercialização dos produtos apenas municipalmente e tem critérios definidos considerando o risco do consumo local e a expectativa de um consumo mais rápido.
Já o Serviço de Inspeção Estadual (SIE) é feito com base na legislação e nos critérios sanitários de abrangência do território do estado. Mais amplo, o Serviço de Inspeção Federal (SIF) é feito pelo ministério e rege a comercialização interestadual e internacional de produtos de origem animal.
Com a nova medida, itens como ovos, leite e mel poderão ser comercializados em território nacional por um ano somente com aval municipal. Na ocasião do anúncio, o ministro da Agricultura e Pecuária, Carlos Fávaro (PSD), afirmou que esses produtos não têm “risco de precarização sanitária”.
Segundo o chefe da pasta, a equivalência entre os sistemas municipais e federal, inclusive, traria “competitividade e oportunidade para os produtos da agricultura familiar brasileira”. Mas a medida também é vista com preocupação.
Em nota enviada ao Brasil de Fato, o vice-presidente da Anffa Sindical, Ricardo Aurélio, afirma que a entidade está atenta aos desdobramentos da medida. Segundo ele, há um temor sobre os efeitos imediatos da decisão.
“A medida pode trazer um risco potencial, pois permite a comercialização imediata de alimentos produzidos em estabelecimentos que ainda estão em avaliação dos serviços de vigilância, seja municipal, consórcios de municípios ou estadual. Essa avaliação visa assegurar a equivalência e padronização de vigilância e fiscalização em todo o território nacional, ou seja, adesão ao Sistema de Gestão dos Serviços de Inspeção, o Sisbi. A medida libera imediatamente a comercialização sem as avaliações e concessão das adesões previstas nas etapas de gestão do sistema.”
O Sisbi, citado por Ricardo Aurélio, é um mecanismo estabelecido para permitir que produtos com inspeção estadual ou municipal alcancem mercados mais amplos. A adesão, no entanto, só pode ser feita se os serviços estaduais e municipais demonstrarem equivalência aos critérios federais.
O Brasil de Fato entrou em contato com o Ministério da Agricultura e Pecuária e enviou questionamentos sobre o GT criado para debater o credenciamento de pessoas jurídicas para prestação de serviços técnicos ou operacionais de inspeção. No entanto, até a publicação desta matéria, a pasta não enviou respostas. O espaço segue aberto.