A ditadura militar brasileira (1964-1985) deixou marcas profundas em toda uma geração, inclusive naqueles que viveram seus primeiros anos de vida sob o peso da repressão. Essa é a história resgatada no livro Crianças e Exílio – Memórias de infâncias marcadas pela ditadura militar (Carta Editora, 2025), que será lançado nesta terça-feira (18), às 19h, no auditório da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Porto Alegre (RS).

A obra reúne os depoimentos de 46 brasileiros que passaram a infância longe do país, forçados ao exílio pela perseguição contra seus pais – militantes de esquerda presos, torturados e assassinados pelo regime. Com relatos inéditos e comoventes, a coletânea expõe o impacto psicológico e social que essas crianças enfrentaram ao serem privadas de sua identidade e condenadas a crescer sem uma pátria.
A publicação da obra só foi possível graças ao apoio da Carta Editora, que tem se destacado na preservação da memória histórica e na valorização de narrativas sobre direitos humanos. Com um catálogo focado em obras que resgatam temas sociais, políticos e culturais, a editora reafirma seu compromisso com a democratização do acesso à informação e com a construção de um Brasil que reconhece seu passado para garantir um futuro mais justo.

O slogan da repressão: “Ame-o ou deixe-o”
Nos anos 1970, o governo militar lançou uma campanha publicitária para ridicularizar aqueles que precisaram fugir do país para sobreviver. O slogan “Brasil, ame-o ou deixe-o” era estampado em adesivos, jornais e propagandas de rádio e TV, como forma de justificar a expulsão de intelectuais, políticos e militantes progressistas. Mas, ao contrário da narrativa oficial, não foi uma escolha: essas pessoas foram banidas, e seus filhos, rotulados como persona non grata.
A repressão via essas crianças como uma ameaça. Algumas nasceram no exterior e sequer tiveram direito ao registro como cidadãos brasileiros. Outras foram levadas ao exílio após seus pais serem presos, mortos ou desaparecerem. Muitas passaram pelo Juizado de Menores antes de deixarem o Brasil, vivendo o medo constante de serem separadas, entregues para adoção ou até mesmo assassinadas.
“Em uma ocasião, ameaçaram-nos escrevendo em carvão nos muros de nossa casa que matariam toda a família enforcada nas árvores do nosso quintal. Eram ameaças muito concretas”, recorda Anacleto Julião de Paula Crêspo, filho do líder camponês Francisco Julião. “Recebíamos cartas anônimas, mas uma delas se referia a mim, que tinha apenas 10 anos.”

em 1962, para Cuba, onde os jovens ficaram aos cuidados de Fidel Castro – Foto: Divulgação
Anacleto e seus irmãos tentaram manter laços com o Brasil, mas foram rejeitados. “Fomos à embaixada suíça, que representava os interesses da ditadura brasileira em Cuba, para pedir nosso passaporte. Disseram-nos que éramos persona non grata, que não nos queriam de volta. Dali em diante, o único vínculo que ainda mantínhamos com o Brasil eram nossas certidões de nascimento desgastadas pelo tempo.”
Infâncias interrompidas pelo medo
A separação familiar foi uma realidade cruel para muitas dessas crianças. Isabel Maria Gomes da Silva, filha do líder sindical Virgílio Gomes da Silva, um dos dirigentes da Ação Libertadora Nacional (ALN), foi levada para o exílio ainda bebê, após ser retirada dos braços da mãe e encaminhada ao Juizado de Menores. Seus irmãos, Vladimir e Virgílio, então com 8 e 7 anos, tentaram protegê-la.
“Não lembro da nossa jornada pelo Paraguai, Argentina e Chile até chegarmos a Cuba. Três anos antes, fui arrancada do colo da minha mãe com apenas três meses de idade e levada para o Juizado de Menores. Descobri isso muito tempo depois”, relata Isabel. Seu pai foi preso e morto sob tortura em 1969.
Gregório Gomes da Silva, irmão de Isabel, lembra das idas constantes ao Juizado. “Eles (meus irmãos) relatam que foram levados, não sei quantas vezes, a casas grandes e bem cuidadas, onde eram tratados com gentileza. Só depois entenderam que poderiam ser entregues para adoção. Dormiam amarrados nos pés do berço de Isabel para garantir que ela não fosse levada.”
A violência nas unidades de internação compulsória era outra ameaça. Luís Carlos Max do Nascimento, sobrinho do operário Manuel Diaz do Nascimento, militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), viveu essa experiência antes de ser enviado ao exílio em Cuba.
“Meu irmão Samuel foi levado para um centro de menores infratores e sofreu maus-tratos. Eu e minha irmã Zuleide fomos para uma unidade com crianças menores de 7 anos. Nos tiraram nossos pertences, vestiram-nos com roupas do sistema, cortaram o cabelo de Zuleide brutalmente e até roubaram seu brinquinho de ouro, presente de nossa avó. Eles sabiam que éramos parentes de presos políticos”, relembra. Ele e sua família foram trocados pelo embaixador alemão Ehrenfried von Holleben, sequestrado por grupos de resistência.
O peso do silêncio e a busca pela memória
Os traumas do exílio ainda ecoam na vida dessas pessoas. O medo e o apagamento da identidade marcaram suas infâncias, e o resgate dessas memórias é um passo essencial para que sigam em frente.
“Minha infância foi esquecida para sempre”, reflete Marcia Curi Vaz Galvão, que viveu exilada na Argentina e na Espanha. “Por muito tempo, o ‘não lembrar’ foi necessário para sobreviver. Mas, assim como uma semente que encontra formas de romper muros, revisitar o esquecimento é essencial. Porque é preciso lembrar para poder esquecer.”

Ângela Telma Lucena Imperatrice, filha do militante Antônio Raymundo de Lucena, assassinado pela repressão em 1970, descreve o horror vivido nas instituições para onde foi enviada antes de partir para Cuba.
“Fomos colocados em camas com lençóis molhados e fedorentos. Uma senhora me ameaçava, dizia que por ser filha de terroristas eu era odiada por todos. Sentia muito medo e me escondia embaixo das camas. Uma garota mais velha me adotou e me protegeu. Estava longe dos meus irmãos, completamente vulnerável.”
Seu irmão, Adilson Oliveira Lucena, compartilha o mesmo sentimento. “Foi um horror para mim”, desabafa.
Zuleide do Nascimento, que também passou pelo Juizado de Menores, relembra o dia em que cortaram seu cabelo. “Uma das cuidadoras fez uma trança em mim e, ao lado, uma outra mulher disse que queria fazer uma peruca com meu cabelo. Isso me deixou doente de tristeza.”

Um Brasil desconhecido
Mesmo após o fim da ditadura, muitos exilados não conseguiram retornar. O país que os rejeitou se tornou um lugar estranho, onde eram vistos com desconfiança.
“Fomos obrigados a viver sem pátria, sem identidade. Alguns voltaram para um Brasil que mal reconheciam, enquanto outros nunca retornaram”, afirma o jornalista Eduardo Reina, que assina a introdução do livro. “Mas, apesar de tudo, essas histórias são exemplos de persistência. Eles se reinventaram e construíram suas vidas.”
O livro Crianças e Exílio resgata uma parte esquecida da história brasileira, dando voz àqueles que foram silenciados. Mais do que um relato de dor, é um testemunho de resistência, que expõe as cicatrizes deixadas pela ditadura e a necessidade de preservar a memória para que jamais se repita.
