Sopram ventos de esperança na Chapada Diamantina. Ventos que ganham força ao rodar a saia de mulheres que ousam lutar mesmo diante de inimigos muito poderosos. Enquanto empresas invadem territórios com megaprojetos de mineração, de energia eólica e solar buscando lucro, as mulheres, cujas famílias vivem nessas terras há séculos, gritam por vida. São elas, as mulheres, que estão de pé e organizadas para defender sua comunidade. São elas que ecoam vozes que traçam e trançam outros caminhos para se pensar a geração de energia. E que, abraçadas, em meio às lágrimas, colocam para fora desejos de liberdade. “Seremos felizes de novo. Nossa comunidade vai ser feliz de novo”, diz uma delas.
No mês de luta das mulheres, cerca de 60 lutadoras populares se reuniram no município de Piatã e na Comunidade Quilombola da Bocaina, na Chapada Diamantina, Bahia, no Encontro de Mulheres em Movimento: A Energia da Chapada. Realizada nos dias 7 e 8 de março, a atividade é parte do projeto A Guerra de Oyá: Comunicação, Mulheres e Transição Socioenergética e buscou debater os impactos da transição de energia sob uma perspectiva de gênero. A agenda foi organizada pelo Observatório dos Conflitos Socioambientais da Chapada Diamantina (OCA) com o apoio do Fundo Casa Socioambiental, da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e da Universidade do Estado da Bahia (Uneb).
“O encontro surge a partir da demanda das próprias mulheres, que há algum tempo vêm acompanhando o avanço desses megaprojetos, e quando a gente fazia os encontros de formação, pleiteavam espaços só de mulheres. A gente tem percebido que o pensar a energia, a transição energética, os megaprojetos, desde a perspectiva de gênero, traz recortes muito interessantes. Tanto das mulheres como sendo as principais vítimas das violências que esses megaprojetos trazem, como também [as principais portadoras] de soluções inovadoras para o problema da transição”, explica Gislene Moreira, coordenadora do projeto.

Escritora e artista, Moreira é também professora da Uneb e atualmente desenvolve uma pesquisa de pós-doutorado sobre mulheres e transição socioenergética. Ela salienta que, dentro do debate de modelos de energia, a organização das mulheres cumpre um papel fundamental.
“Dentro dessa estrutura patriarcal, as mulheres são cuidadoras de seus territórios. E não cuidam só da família, mas elas têm a vida como princípio. São elas que normalmente estão preocupadas com a questão da água, com o cuidado com o futuro da juventude, dos filhos. Então tem uma perspectiva aí que é intergeracional, não tem só o imediatismo do lucro”, aponta.
Construir redes, amplificar vozes
O artigo Quem ouve as vozes silenciadas no debate das energias renováveis?, de Gabriela Amorim, que faz parte da pesquisa Vozes Silenciadas Energias Renováveis: a cobertura da mídia sobre a transição energética do Brasil, produzido pelo Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, aponta que as mulheres compõem apenas 30% das pessoas entrevistadas pela mídia comercial quando se trata dos impactos da transição energética. Nos territórios, no entanto, são elas as que mais sofrem os impactos desse processo.
“Esses impactos vão desde o empobrecimento da comunidade, com diminuição da produção de alimentos, aumento da dificuldade de acessar políticas públicas como educação e saúde, até o crescimento dos casos de violências sexuais com a instalação de canteiros de obras temporários com a presença de tantos homens estranhos à comunidade”, aponta o documento.
Não à toa, são as mulheres também que permanecem nos seus territórios para defendê-los. “Mulher é quem fica”, disse uma das entrevistadas na pesquisa, que preferiu não se identificar. Segundo ela, quando os impactos das obras de energia renovável começam a aparecer, muitos homens vão embora, em busca de melhores condições e empregos. Mas as mulheres permanecem. E permanecem plantando sementes, cuidando das crianças, lutando pela sua vida, a vida dos seus e das terras que são de todos que lá vivem.

Vanusia Santos é uma dessas mulheres que permanecem e resistem. Liderança quilombola da Bocaina, ela conta o diversos impactos que seu território vem sofrendo após a exploração mineral na região.
“Meu território é rico em biodiversidade e possui uma cultura vibrante que está intimamente ligada à natureza. No entanto, a instalação de uma mina de ferro tem trazido diversos impactos negativos. Temos visto a degradação das nossas terras, do nosso modo de viver e a alteração dos ecossistemas locais”, denuncia.
Para Santos, o encontro de mulheres é uma oportunidade de compartilhar experiências e fortalecer laços. Diante de um cenário cada vez mais hostil para a organização comunitária entre os povos do campo e das comunidades tradicionais, a liderança também salienta o papel estratégico da organização das mulheres.
“Quando nos unimos, conseguimos articular nossas vozes e reivindicar com mais força. Nós mulheres temos um papel fundamental na preservação das tradições, na gestão dos recursos naturais e na educação das próximas gerações. Ao nos organizar, criamos um espaço seguro onde podemos compartilhar estratégias, trocar informações e nos apoiar mutuamente na luta contra as injustiças que enfrentamos”.
Arte como resistência
Durante o encontro, também foi gravado o clipe Salve a Chapada Diamantina da multiartista e compositora Nevolandia. O projeto, que também contou com a colaboração dos artistas John Belik, Morris, Kayla Barreto e Milena Brandão, traz uma reflexão sobre a realidade vivida pela comunidade da Bocaina e o grito feminino de resistência. Nevolandia ressalta que tem sentido os efeitos das mudanças climáticas no seu dia a dia, mas que é necessário pensar um modelo de energia que respeite o povo e o meio ambiente.
“Filha dessa terra, pertencente a esse povo e como ser humano que necessita dos recursos naturais para viver bem e com saúde, se faz necessário pensar sobre o que estão fazendo com nossa terra, nosso povo e nossos destinos. Estamos vivendo um momento em que a natureza está pedindo socorro, que o planeta está aquecendo, que a água está secando e isso está naturalizado. É importante estar do lado certo, do lado que visa bons frutos e no lado que me religa com a terra e meus ancestrais”, aponta.
O encontro foi apenas mais um rodopio nessa dança de resistência que precisa de muitos passos. Mas são passos dados em coletivo, em comunhão, em rede. Com ventos que sopram a favor da vida, não do lucro. É o que explica a professora Gislene Moreira:
“A gente precisa construir redes e organizar essas mulheres para o enfrentamento dos megaprojetos, mas principalmente colocar a vida como pauta principal no debate da transição. Acho que essa é uma questão séria e trazer essa Chapada rica de abundância, de alegria, essa Chapada viva como elemento simbólico”.